Relato de desabrigados pela enchente do Rio Verruga, em Itambé-Ba, no ano de 1969, escrito à mão em um estiolado caderno escolar, nos acervos do Pe. Juracy Marden Mendes Pires. Outros relatos, um deles sobre o Grand Circo Bartolo arrastado com jaulas e picadeiros pelas ruas do Papagaio e fundos do Mercado Municipal, estão sendo decifrados para breve publicação! A grafia castiça do relato e certos termos anacrônicos nos dá a impressão de ter sido ditado e anotado por algum seminarista letrado.
...Aqui vai tudo de mal a pior. Na semana passada morreu a minha tia Zenóbia, e no sábado, quando já a tínhamos enterrado e começava a abalar-nos a tristeza, começou a chover como nunca. Ao meu pai Filin isso irritou-o, porque toda a colheita de vagem estava a secar no murundu. E o aguaceiro chegou de repente, em grandes ondas de água, sem sequer nos dar tempo para esconder nem que fosse um pequeno molho; a única coisa que pudemos fazer, todos os da minha casa, foi ficarmos escorados uns aos outros debaixo do poleiro, vendo como a água fria que caía do céu chumbava aquela vagem tão recém-cortada. E só ontem, quando a minha irmã Vanuza acabava de fazer doze anos, soubemos que a vaca que o meu pai Filin lhe ofereceu para o dia do seu aniversário tinha-a levado o rio. O rio começou a crescer há três noites, lá para a madrugada. Eu estava muito adormecido e, no entanto, o estrondo que o rio trazia ao arrastar-se fez-me acordar imediatamente e saltar da cama com a minha manta na mão, meio a sonhar que se estava desmoronando o teto da minha casa. Mas depois voltei a adormecer, porque reconheci o barulho do rio e porque esse barulho foi-se tornando igual até me trazer outra vez o sono. Quando me levantei a manhã estava cheia de nuvens escuras e parecia que tinha continuado a chover sem parar. Notava-se que o barulho do rio era mais forte e ouvia-se mais perto. Cheirava-se como se cheira um aceiro na manga, o cheiro podre da água revolta. À hora em que fui espreitá-lo, o rio já tinha perdido as suas margens. Ia subindo pouco a pouco pelas bandas da rua Nova, e estava a meter-se a toda a velocidade em casa daquela mulher a quem chamam de Caroço. O chapiscar da água ouvia-se ao entrar pelo curral e ao sair em grandes jorros pela porta. A Caroço ia e vinha, caminhando pelo que era já um pedaço de rio, pondo na rua as suas galinhas para que se fossem esconder nalgum lugar onde não lhes chegasse a corrente. E pelo outro lado, por onde se encontra a curva, o rio deve ter levado, quem sabe desde quando, o abacateiro que estava na cerca da minha tia Zenóbia, porque agora já não se vê nenhuma folha dele. Era o único que havia no terreiro, e só por isso as pessoas dão-se conta de que a cheia que vemos é a maior de todas as que desceram o rio em muitos anos. A minha irmã e eu voltamos lá à tarde para ver aquele montoadeiro de água que cada vez se faz mais espessa e escura e que já passa muito por cima de onde deveria estar a ponte, se é que a corrente não a levou. Ali estivemos horas e horas sem nos cansarmos vendo aquela coisa. Depois subimos pelo barranco, porque queríamos ouvir bem o que diziam as pessoas, pois lá em baixo, junto do rio, há uma grande barulheira e só se vêem as bocas de muitos que se abrem e fecham e parece que querem dizer algo; mas não se ouve nada. Por isso subimos pelo barranco, onde também há gente olhando o rio e contando os prejuízos que fez. Foi ali que soubemos que o rio tinha levado a Pirulita, a vaca que era da minha irmã Vanuza porque o meu pai Filin lha ofereceu no dia do seu aniversário e que tinha uma orelha branca e outra avermelhada e muito bonitos olhos. Não consigo perceber por que é que a Pirulita se lembraria de passar o rio, quando sabia perfeitamente que não era o mesmo rio que ela conhecia de todos os dias. Nunca vi a Pirulita tão atarantada. O mais certo é ter vindo ainda a dormir para se deixar matar assim sem mais nem menos. A mim, muitas vezes tocou-me acordá-la quando lhe abria a porta do curral, porque senão, por vontade dela, ali estaria o dia inteiro com os olhos fechados, bem quieta e suspirando, como se ouvem suspirar as vacas quando dormem. E aqui deve ter acontecido isso, adormeceu. Talvez se tenha lembrado de acordar ao sentir que aquela água pesada lhe batia nas costelas. Talvez então se tenha assustado e tenha tentado regressar; mas ao virar-se encontrou-se enchanfrada e inteiriçada entre aquela água negra e dura como terra corrediça. Talvez tenha mugido pedindo que a ajudassem. Mugiu só Deus sabe como. Eu perguntei a um senhor, que viu quando o rio a arrastava, se não tinha visto também o bezerrinho que andava com ela. Mas o homem disse que não sabia se o tinha visto. Só disse que a vaca malhada passou de patas para o ar muito pertinho de onde ele estava e que ali deu uma reviravolta e depois não voltou a ver nem os cornos nem as patas nem nenhum sinal de vaca. Pelo rio rodavam muitos troncos de árvores, com raízes e tudo, e ele estava muito ocupado a tirar lenha, de modo que não podia reparar se eram animais ou troncos o que a corrente arrastava. Por isso, não sabemos se o bezerro está vivo, ou se foi atrás da mãe pelo rio abaixo. Se assim foi, que Deus os ampare aos dois. O problema que há na minha casa é o que poderá acontecer no dia de amanhã, agora que a minha irmã Vanuza ficou sem nada. Porque o meu pai Filin com muito trabalho tinha conseguido a Pirulita, quando ainda era uma vitelinha, para a dar à minha irmã, a fim de que ela tivesse um capitalzinho, e não se tornasse puta como fizeram as minhas outras duas irmãs, as maiores. Segundo o meu pai Filin, elas tinham-se deitado a perder porque éramos muito pobres lá em casa e elas eram muito topetudas. Desde pequeninas que já eram topetudas. E assim que cresceram deu-lhes para andar com homens da serraria, que lhes ensinaram coisas más. Elas aprenderam depressa e percebiam muito bem os assobios, quando as chamavam a altas horas da noite. Depois saíam até de dia. Iam a toda a hora buscar água ao rio e às vezes, quando uma pessoa menos esperava, ali estavam elas no curral, rebolando-se no chão, todas despidas e cada uma com um homem em cima. Então o meu pai Filin correu-as às duas. Primeiro aguentou-lhes tudo o que pôde; mas um dia já não pôde aguentá-las mais e deu-lhes saída para a rua. Elas foram para Cassilândia ou não sei para onde; e por lá andam como putas. Por isso lhe entra a consumição ao meu pai Filin agora pela Vanuza, pois não quer que lhe aconteça como às suas outras duas irmãs, ao sentir que ficou muito pobre com a falta da sua vaca, vendo que já não vai ter com que se entreter enquanto lhe dá para crescer e pode ainda casar-se com um homem bom, que a queira para sempre. E isso agora vai ser difícil. Com a vaca era diferente, pois não havia de faltar quem se animasse a casar-se com ela, só para levar também aquela vaca tão bonita. A única esperança que nos resta é que o bezerro ainda esteja vivo. Oxalá não se tenha lembrado de passar o rio atrás da mãe. Porque, se assim foi, a minha irmã Vanuza está a um pulo de se fazer puta. E mainha não quer. A minha mãe não sabe por que é que Deus a castigou tanto dando-lhe umas filhas assim, quando na sua família, da sua avó para cá, nunca houve gente má. Todos foram criados no temor de Deus e eram muito obedientes e não faltavam ao respeito a ninguém. Todos foram do mesmo estilo. Quem sabe de onde lhes viria, a esse par de filhas suas, aquele mau exemplo. Ela não se lembra. Dá a volta a todas as suas recordações e não vê bem onde esteve o seu mal ou o pecado para lhe nascer uma filha atrás de outra com o mesmo mau costume. Não se lembra. E cada vez que pensa nelas, chora e diz: «Que Deus as ampare às duas.» Mas o meu pai Filin alega que aquilo já não tem remédio. A perigosa é a que fica aqui, a Vanuza, que espicha como tronco de aroeira, cresce e cresce e já tem uns inchaços de seios que prometem ser como os das suas irmãs: pontiagudos e altos e meio alvoraçados para chamar a atenção. - Sim - diz ele -, vai encher os olhos a qualquer um em qualquer moita que a vejam. E acabará mal; já estou vendo que acabará mal. Essa é a consumição do meu pai Filin. E a Vanuza chora ao sentir que a sua vaca não voltará porque lha matou o Verruga. Está aqui, ao meu lado, com o seu vestido cor-de-malva, olhando o rio do barranco e sem parar de chorar. Pela sua cara correm jorros de água suja como se o rio se tivesse metido dentro dela. Eu abraço-a tentando consolá-la, mas ela não percebe. Chora ainda com mais vontade. Da sua boca sai um ruído semelhante ao que se arrasta pelas margens do rio, que a faz tremer e sacudir-se toda, e entretanto, a cheia continua a subir. O sabor a podre que vem de lá salpica a cara molhada da Vanuza e os dois peitinhos dela mexem-se de cima para baixo sem parar como se de repente começassem a inchar para começarem logo os trabalhos da sua perdição.
Ass: João Rufino da Gameleira!
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