segunda-feira, 27 de março de 2023

Leitura Dramática ROTEIRO CINEMA "O Suicídio do Escorpíão"




RELEASE

  Na pequena cidade de Vitória da Conquista, nas margens da Rodovia Federal BR-116 (Rio-Bahia) recém-inaugurada, uma revolução cultural atinge um segmento sensível das suas camadas sociais: as esposas de ricos fazendeiros que, ao mesmo tempo que possuem poder aquisitivo e formação escolar para absorver os novos modismos, são também as que mais sofrem o constrangimento de uma moral agrária e medieval. Enfurnadas nas fazendas de seus esposos a cuidarem da família e do lar, a contradição de valores nelas faz ninho e germina em seus corações uma síntese dialética macabra: O SUICÍDIO, A LIBERDADE PELA NEGAÇÃO ABSOLUTA DA LIBERDADE! Com suas letras cursivas de colégios de padres, elas escrevem lacrimosas cartas descrevendo suas agruras, sua infelicidade e sonhos proibidos ao se despedirem da vida. Nestas cartas, o grande culpado é sempre o marido opressor e brutal. As cartas são explicitamente copiadas e fica patente o seu efeito epidêmico, o mórbido contágio da desilusão e da melancolia. Mimeógrafos escolares reproduzem as cartas clandestinas que o povo perverso cuida de espalhar. O assistente do Delegado da Cidade cria uma rifa (Raid das moças), uma cartela com o nome de várias mulheres das famílias mais tradicionais e vende os bilhetes. Quem acertar o nome da próxima suicida, papa o prêmio! O inusitado conflito de "choque cultural" apanha a todos perplexos e sem recursos para enfrentar o problema. A S.M.O. Sociedade dos Maridos Opressores se divide. Uma parte decide aliviar o controle marital e franquear pequenas liberdades a seus cônjuges, levando-as ao cinema e comprando-lhes roupas fashions; mas a maioria prefere recrudescer e apertar mais ainda o torniquete da moral agrária, pondo moleques para vigiar suas esposas e cortando ao máximo o acesso ao rádio e revistas de moda. No auge da epidemia, já com cinco suicídios seriais, e expectativa de outros iminentes, o Delegado é pressionado a pôr um fim no problema e dá início a sua dramática perquirição. Sem métodos nem precedentes, para lidar com tão sutil ameaça, como um inefável vapor da morte mercurial cobrindo a cidade nebulosa em longas cenas madrigais de neblina e "gererê". Por essa neblina trafega os mais tradicionais e exóticos tipos de uma cidade do interior: beatas, comerciantes, professoras e seus alunatos, padre, doutor e coletores de impostos... Além de tipos singulares de decisiva participação na trama, como um jornalista socialista, um hermafrodita curandeiro e uma misteriosa maçonaria plena de métodos escabrosos e secretos. Histórias paralelas e menores vão se desenvolvendo para consolidar a personalidade dos protagonistas e a coalescência do universo cênico. São como arcos menores, as aventuras picarescas da rifa, das cartas clandestinas e dos larápios capturados pelo delegado, que, feito os arcobotantes de uma catedral, sustentam e anunciam o arco maior, o desfecho da tragicomédia em forma de um estratagema capcioso: o Delegado ameaça com um decreto oficial expor ao vexame público o corpo das próximas e quaisquer suicidas que doravante "baterem a caçoleta" na cidade ou na sua zona rural. O corpo da morta será exposto, nua, nos postes da praça central e lá ficando até apodrecer e ser comido pelos abutres. VITÓRIA DO PUDOR E DA MORAL! Nunca mais nenhuma senhorinha oprimida voltou a se matar pelas bandas de Vitória da Conquista, embora motivos, talvez, não viesse a lhes faltar!


ARGUMENTO (Lido por uma Atriz logo em seguida ao release)


"Aqueles foram anos difíceis, quando a cidade de Vitória da Conquista, de um dia para outro, se viu invadida pelo rádio, revistas e jornais e por engenheiros e operários da empresa que construía a Rio-Bahia, rodovia federal. Os costumes e modas que as famílias conservavam a intocáveis gerações caíram em desuso como mangas maduras à brisa do tempo. O ponto alto desta crise se deu quando Dinorá, esposa do coronel Durvalino Mendes, suicidou-se com um tiro de repetição na boca e, em uma longa e caligráfica carta, culpou o marido pela infelicidade e vida de escravidão que este a submetia na sede da fazenda Santa Rosa. A carta correu a cidade, comoveu a ricos e pobres que carregaram nos ombros o caixão da oprimida, do velório ao cemitério; dois meses depois, quando o episódio parecia digerido, dona Banúria, esposa de outro rico fazendeiro, teve a mesma ideia infeliz e se afogou no rio Pardo com os bolsos do vestido cheios de pedras. Na carta sobre a penteadeira e endereçada ao povo da cidade... um pungente relato de privações, perversidades e humilhações diante das amantes do marido. Como corolário e arremate, a suicida compadecia e loava sua antecessora de desespero, Dinorá. O rastilho de pólvora fora aceso. A consciência do gênero feminino acordara e histórias horríveis de opressão começaram a se ouvir nas feiras e nas festas, no confessionário e nas praças. Temendo por suas mulheres, os pais-de-família redobraram a opressão, acreditando se dever ao ócio e ao tempo perdido com radionovelas e revistas de modas, tal sinistra solução. O padre vociferava no púlpito contra o demônio que induzia os suicídios, as armas foram trancadas e moleques vigiavam dia e noite os passos de suas patroas... mas em vão! Três semanas depois, tivemos a terceira vítima com direito a foto e à íntegra da carta publicada no jornal da Capital. O viúvo, com medo de ser linchado por manter a esposa na fábrica de queijos dezesseis horas por dia, fugiu para Minas Gerais. Ao fim de dois anos, seis esposas se suicidaram e a cidade, em uma espécie de embriaguez macabra, esperava e apostava quando e quem seria a próxima vítima. Fora por essa época a nomeação de Crispin Corcoran como delegado de polícia da cidade. Sem nenhuma experiência de como lidar com suicídios, foi-lhe, contudo, pressionado a resolver esse problema que ameaçava migrar para as camadas mais pobres e numerosas, agravando ainda mais a fábrica de delinquentes (como ele chamava o orfanato). Não cabe nos dedos o número de noites em claro a cismar sobre o caso, sentado de pijamas sobre a mesa da cozinha - Corcoran tinha fobia de pintos, mas o sogro insistia em criar e chocar galinhas no quintal, e se um entrasse pela porta dos fundos...! Nesse santuário, ele engolia colheradas de requeijão e farinha de goma em uma caneca de café-com-leite, baforava seu hálito no anel de esmeralda e a polia na flanela do pijama, enquanto cismava feito um neurótico miserável. Deve-se a uma destas noites meditabundas o insight que ele teve (outros dizem que foi ideia do seu assistente de nome Bruzega): mandou colar, nos postes elétricos, portas de casa e balcões de bar, uma circular informando que, daquela data em diante, qualquer mulher que se suicidasse na região, rica ou pobre, casada ou solteira, jovem ou idosa, com ou sem razão para tal, teria o cadáver despido e pendurado na porta da delegacia, na praça principal, com todas as vergonhas expostas até a catinga do cadáver empestear a cidade. Talvez por coincidência, com os maridos mais ternos e compreensivos, talvez pelo terror gerado com essa medida extrema, o certo é que, daquela data até hoje, quando de Crispin não resta sequer os ossos já exumados, nenhuma mulher oprimida tem se suicidado na comportada cidade de Vitória da Conquista.

O SUICÍDIO DO ESCORPIÃO!

Senhoras e senhores;

A escabrosa história que vou lhes apresentar hoje aconteceu aqui em nossa cidade, no final dos anos 50 do século passado. Perdoem-me usar essa muleta do texto escrito, pois não posso mais confiar na memória, que tanto trai os homens mais idosos, assim como as mulheres traem os mais jovens! De algumas cenas, fui testemunha ocular, menino de calças curtas que eu era então; mas a maioria delas são cenas que ouvi, escutando atrás da porta os idosos cochicharem! Vitória da Conquista, naqueles dias, ainda era uma típica e sonolenta cidade do interior, de ruas bucólicas e costumes muito conservadores (hoje não temos mais costumes, temos modas: modas passam, costumes, não!); era uma donzela sonhadorora e dorminhoca, encravada em um planalto distante e esquecido, até ser acordada abruptamente pelos ruídos do mundo moderno. De um dia para o outro, fora chegando as revistas e fotonovelas, as estações de rádio do sul do país, cinemas, livros e uma rodovia federal cortando a cidade e trazendo comerciantes de todo o país em busca de novas praças. Assim como hoje, no mundo que estamos vivendo agora, ninguém faz ideia do rumo que estamos tomando, para onde estamos indo, naquela época também, ninguém tinha ideia do que estava acontecendo! O segmento social de onde emergiu a maioria dos protagonistas dessa história era o que hoje chamamos de elite ou aristocracia: os homens ricos, na maioria latifundiários e políticos, e suas esposas, mas a história aqui narrada transbordou em profunda repercussão sobre todos os habitantes do lugar! As esposas desses homens poderosos de outrora, constituía um grupo muito peculiar nessa mudança de mentalidade que a cidade passou a experimentar, por conta desta guerra cultural entre o antigo e o moderno, por assim dizer. E foi no meio destas senhoras que tudo começou! Eram mulheres que possuíam recursos de sobra para consumir as novidades crescentes. Tinham dinheiro para irem aos cinemas, comprar revistas de modas, tinham rádios de válvula potentes em suas residências, tanto na cidade como nas fazendas, eram educadas e letradas, muitas eram professoras e íntimas de livros, romances e novelas cada dia mais numerosos..., mas também eram aquelas mais submissas e doutrinadas no que chamamos de moral agrária: a mulher era uma propriedade legal e material de seus maridos! Era a "Rainha do Lar"! Sua função era gerar e educar os filhos que herdarão o nome das famílias e o seu patrimônio; seu comportamento era objeto de observação e o povo gostava de observar, nas festas cívicas e nas lojas do comércio, o desfile das sinhazinhas bem-vestidas, melindrosas e afetadas, em seus raros momentos de exposição pública! Todos vocês aqui presentes já devem ter sido motivo de alguma fofoca, certamente! Pois saibam que, antigamente, antes das redes sociais, a fofoca era muito mais intensa. Era quase uma instituição social. A fofoca servia como um recurso de controle moral: acusava uma pessoa de ter feito algo que ela não havia feito, para com isso mostrar para ela que, se um dia ela viesse a cometer de fato aquilo de que era acusada, o castigo da maledicência já era aplicado como uma espécie de amostra grátis! Essas mulheres eram vítimas das mais terríveis fofocas! Vivendo nas fazendas de seus maridos boa parte do tempo, nas margens da sociedade, em contato com a natureza e com a bestialidade, quem garante que elas não fizessem coisas proibidas? Me recordo de alguns boatos, quando criança, e que julgava verdadeiros: Dona Sebastiana Flores dormia com um lobisomem que lhe pulava a cerca em noites de lua-cheia... Dona Bilu Parteira, uma das primeiras enfermeiras formadas da cidade, esposa do Dr. Braulindo, comia a placenta das parturientes para ficar eternamente com aquele rostinho de porcelana... Filó Gusmão, habilidosa fabricante de queijos, coava o coalho deles em suas calçolas e deixava apaixonado todas que provassem suas iguarias... Era desta maneira, bem ingênua, convenhamos, que a sociedade da época mantinha vigilantes as madames cuja riqueza tanto invejavam! Seus maridos também, não eram flores que se cheire! Mantinham uma vigilância estrita sobre suas esposas, regrando seus horários de virem à cidade, reduzindo seu poder de compra e escalando sempre um moleque para lhes acompanhar aonde quer que fossem! Todas elas viam esta ingerência e governo de suas vidas como uma fatalidade, uma missão e mesmo como o sentido de suas vidas! Nunca se soube de uma delas se queixar ao padre (o psicólogo da época) de algum sofrimento insuportável por conta de privação de liberdades. Dizem que o burro se acostuma com a cangaia e se recusa a marchar se não houver peso em seu lombo! Mas havia também as mulheres mais citadinas, professoras, costureiras, esposas de comerciantes... O certo é que, em poucos anos, toda uma nova imagem de como ser mulher foi se espalhando. Passou a ser moda fumar, usar decotes mais avançados, votar... Até já se cogitava que mulheres ocupassem um cargo na câmara de vereadores... CRUUUZES! As novas gerações eram quem mais sentiam o espírito dos novos tempos e a cada dia encurtava-se as saias das meninas na porta dos colégios, os namoros nos portões se esticavam até tarde da noite, e muitas vezes, nas matinês do Cine Trianon, quando um rolo de filme queimava e as luzes se acendiam subitamente, que flagra!!! E toda a censura, evidente, caía sob os ombros das mães, acusadas agora de falharem na educação de suas filhas! Não sei, sinceramente, se descrevo com exatidão algo tão imponderável, melindroso e subjetivo como são os dilemas morais, afinal, coração de gente é terra que ninguém anda, mas sei que a barra era pesada, pois foi nessa época exatamente que a formosa e sensível professora Margareth Ferraz se matou, na fazenda do seu marido, lá pras bandas de Inhobim, enchendo os bolsos do vestido de pedras e entrando resoluta no rio Pardo. (Anos depois, estudante na Capital, li sobre o suicídio da grande escritora Virgínia Woolf da mesma maneira e até hoje trago a suspeita que Dona Margot, como era carinhosamente chamada, leu em alguma revista, ou prefácio de livro, sobre esse tragico final da célebre escritora!). Antes de morrer, Dona Margareth escreveu uma carta que seu marido, temendo alguma leviana acusação - pois a carta o acusava explicitamente de mil pequenos e tirânicos espezinhos, pirraças, castigos e maus-tratos - resolvera levar esta carta até o delegado Crispim Corcoran, de cuja mesa, não se sabe como, a carta se extraviou. horas depois, em cópias feitas por um mimeógrafo - antigo recurso de reimprimir uma página usando tinta e álcool - toda a cidade já conhecia o teor de suas derradeiras e comoventes palavras. Contra a vontade de seu marido, durante o seu velório, com gente encarapitada nos muros do jardim, alpendres e janelas, a irmã mais velha da suicida leu a carta em voz alta:


"Meus filhos, irmãos, alunos e amigos,

Não faço a menor ideia de como lhes preparar para esta notícia do meu fim prematuro, aliás, não sei de quase nada, tal o estado de esgotamento a que cheguei. Não sei se tratar de coragem ou de covardia, a opção que escolhi para pôr fim a uma triste comédia que se arrasta a anos, desde que meus pais me forçaram a casar com este que, não fosse o pai dos nossos dois filhos, seria para sempre o carrasco dos meus dias! Diante de todas as dificuldades da vida e das horas mortas que tem sido minha vida, sempre encontrei um refúgio nos livros que aprendi a amar desde menina e, se esta carta ressente da afetação típica dos romancistas, é que não tive outras experiências melhores, como a destes astutos vendedores e políticos que sabem usar a palavra muito melhor do que eu o sei. Mas a minha dor é sincera. Vivendo entre a escola municipal rural, onde ensino as criancinhas pobres do povoado, e a casa do meu marido onde vivo sobrecarregada de tarefas domésticas, pouco tenho ido à cidade, mas sei que as coisas estão mudando muito rapidamente, existem outras profissões além do magistério sendo exercidas por nós, mulheres, tais como advogadas, médicas, empresárias... Tantas possibilidades que me foram furtadas tão cedo, como se um baile estivesse sendo dado e eu chegasse minutos após os portões serem encerrados. Tenho orgulho da minha humilde profissão, mas queria algo mais, sempre tem que haver algo mais em todas as formas de viver! Isso muito me angustia, mas pode ser apenas o pretexto para um lodaçal de desesperanças que não saberia bem examinar. Meu juízo não anda bem. Ontem cheguei a sonhar que alguém estava colocando veneno no chá que bebo antes de dormir e estou evitando comer muitas coisas daquela cozinha imensa onde meu esposo acumula tanta comida como se o mundo fosse acabar a qualquer momento - que ele se farte com ela! É justamente esta cozinha enorme o palco maior da minha tragédia (o outro, o leito conjugal onde sou forçada a me deitar todas as noites com um homem que não amo!). Meu esposo é maçom e tem por hábito, digo, ritual, trazer em meses alternados, toda a maçonaria para jantar em nossa casa, na cidade, onde quase não resido, mas tudo é preparado aqui e levado para lá em caldeirões e panelas no fundo da sua camionete. Para cada um dos 33 graus da sua venerada confraria, ele exige um prato específico, segundo uma hierarquia de sabor ou outra simbologia qualquer que não me interessa saber, e fico mesmo alegre em saber que vou partir desse mundo e nunca mais ver essas iguarias que há muito me nauseiam: Era feijões brancos para o Mestre Secreto; rabanadas para o Mestre Perfeito; rins de veado para o Secretário Íntimo, pastéis de aletria para o Preboste e Juiz; carneiro ao molho para o Intendente dos Edifícios; Requeijão gratinado com baunilha e cinamomo para o Sublime Cavaleiro; ovos de pavão para o Grão-Mestre Arquiteto; lentilhas com aspargos para o Cavaleiro do Arco Real; sardinhas no espeto para o Cavaleiro do Oriente; codornas ao sarcófago para o Príncipe de Jerusalém, purê de castanhas para o Mestre Ad Vitam; carpaccio com pepinos japonês para o Cavaleiro Proussiano; Ninhos de andorinha trufados para o Cavaleiro do Real Machado, coalhada de leite de cabra com mel para o Príncipe do Líbano, escargot com raspas de laranja para o Chefe do Tabernáculo; chocolate alpino para o Cavaleiro da Serpente de Bronze, tâmaras e figo Remy para o Escocês Trinitário; pato selvagem ensopado para o Grande Comendador do Templo, sorvete de pistache para o Cavaleiro do Sol e Príncipe Adepto; canelone com pescoço de frango Rhodia para o Grande Escocês de Santo André, mocotó de búfalo para o Cavaleiro Kadosh; geléia de pétalas de rosa para o Inspetor Inquisidor Comandante, biscoitos de polvilho com água gaseificada para o Sublime Cavaleiro do Real Segredo; arroz doce com pau de canela para o Soberano Grande Inspetor Geral... Eram verdadeiros banquetes de deixar enfastiados qualquer Gargântua ou Pantagruel, onde o meu esposo gastava todo o património e o futuro dos nossos filhos, nada ficando para mim. Nunca mais comprei um livro e fico em silêncio quando minhas colegas de magistério, nas reuniões da Secretaria, comenta os filmes maravilhosos assistidos no Cine Trianon! Como são arrogantes esses enfatuados maçons espalhados pela casa como se fossem o tabernáculo deles! Fumando e impregnando as cortinas com seus charutos fedorentos, sorvendo jarras de café e tratando-me como uma escrava, tendo que os servir na porta que era automaticamente trancada em seguida, pois que mulheres são proibidas de ouvir o teor das suas macambúzias reuniões! Se é verdade que eles cultuam um bode em seus ritos secretos, o bode era meu marido, tenho certeza, pois até sonhei que ele vestia uma grande pele de cabra cabeluda, usava uma máscara de um bode velho do olho bem vermelho e subia na mesa com cascos pontiagudos, bailando danças insanas e gritando imprecações em hebraico ou sei lá que língua fosse... Citei esse episódio, pois foi justamente deles que partiu a ideia do que veio a ser o dissabor maior, a gota d'água que me levou a tomar esta decisão desesperada. Não é segredo para ninguém que sempre gostei de escrever, que as histórias utilizadas nas aulas de português de todas as minhas colegas são de minha autoria, registro acontecimentos e correspondências para o povo humilde que tem filhos morando longe e não sabem ler ou escrever; tenho meu diário, enfim, é o meu refúgio e o meu consolo para uma vida tão rude e enfadonha! Acontece que estes maçons começaram a encher a cabeça do meu pobre marido de que eu estava escrevendo coisas imorais, revelando segredos da confraria deles e dando mau exemplo para as adolescentes da cidade! Meu marido sequer ensaiou conversar comigo sobre o assunto. Estava prestes a ser promovido a um grau altíssimo da maçonaria, o que lhe daria o direito de comer ovas de esturjão ou qualquer outra dessas iguarias de merda e estava ultimamente um verdadeiro zumbi, obedecendo cegamente qualquer sugestão, explícita ou insinuada, que lhe fosse ventilada em suas orelhas de asno venerável! Um dia voltei da escola, com meus filhos pequenos que estudavam comigo, e encontrei uma grande fogueira ardendo no pátio da casa. Com um atiçador de lareira, ele queimava meus cadernos, meus livros, minhas cadernetas de poesia e desenhos! Parecia possesso e dizia que eu devia me limitar a dar aulas, que escrever livros e poesia era coisa de mulher liberta, que eu era mal falada na cidade e que a promoção dele não saía por conta de uma esposa abelhuda... Nem ouvi tudo que o louco dizia! Tranquei-me no quarto em franco desespero, pois a quem eu iria recorrer? Que direito tenho eu sob a sua autoridade? Nem dinheiro para fugir e levar meus filhos comigo chego a ter!... Minha fé eu perdi, não tenho vergonha em confessar isso, e se fé tivesse talvez conseguisse suportar essa vida mesquinha que tenho até desânimo em descrever! Sobre a minha partida, tudo isso que disse nem foi mesmo o motivo maior, não há de interessar mesmo a ninguém! Estou indo embora e levando comigo até mesmo as razões profundas - se é que existam - para a falência da minha vontade de viver! Basta! Não dá mais! Fui! Que as mulheres da nossa terra possam um dia conquistar uma vida mais digna e humana! Que neste dia eu possa ser lembrada e perdoada por todos, ou quase todos pois de meus filhos queridos não ouso sequer pedir perdão...


No contexto do velório em que foi lida esta carta, a comoção contagiou a todos! Pálida dentro do caixão, feito Ofélia a boiar nas águas, após se matar por amor a Hamlet, Dona Margareth Ferraz parecia suplicar por algum tipo de vingança, com o eloquente silêncio que só os mortos são capazes de exigir! Uma inquietude percorreu a multidão em volta do féretro que percorreu as ruas da cidade em direção ao cemitério. O padre Gilberto fez questão de fechar as portas da igreja com medo de que alguém fosse solicitar a unção proibida aos suicidas, o esposo da falecida trancou-se no seu escritório, com medo de algum linchamento, moral ou mesmo físico e houve muito pranto derramado. Havia no ar a impressão difusa e não verbalizada de que a doce professorinha não havia se matado, mas que fora "suicidada", induzida ao gesto extremo por forças ocultas muito bem identificadas. De um dia para o outro, a cidade começou a ver com maus olhos a vetusta instituição da Maçonaria e a Loja Maçônica da cidade, providencialmente, entrou em reformas, suspendendo por tempo indeterminado as reuniões solenes. Não adiantou muita coisa, pois, coincidência ou não, uma nova esposa de um maçom - desta vez um ex-membro que se afastou da instituição por nebulosos negócios com jogo e casas de tolerância, além de inveterado alcoolismo - veio a cometer esse gesto extremo, menos de um mês depois, quando a cidade ainda comentava o passamento trágico da primeira! Essa nova "vítima" - digo vítima porque ela também deixou uma carta comovente, e também acusando a vida sufocante e sem sentido que levava ao lado do esposo, trabalhando como uma escrava doméstica. Dona Abigail, se pobre em recursos literários ao escrever sua carta, por isso mesmo se inspirando na carta da primeira em seus primeiros parágrafos, logo foi se perdendo em queixumes íntimos e histéricos, ao mesmo tempo que revelava todo um ritual de constrangimentos, como um insuportável moleque-de-recados chamado Etevaldo que lhe vigiava dia e noite, as ameaças do marido em lhe entregar para um curandeiro como último recurso em curar suas choradeiras contínuas ao dormir, quando ela se recusava em consumar o "Afeto Maritalis" (sexo, palavra proibida então), e querendo passar uma temporada na casa da sua mãe, em Jacobina! Seu marido começou a acreditar que ela tinha um amante e chegou a espancar seu primo Elzo, um costureiro efeminado que vivia emprestando a sua esposa revistas picantes com fotos de homens seminus! Na véspera do suicídio, seu esposo havia, revistado todo o quarto dela em busca de "obscenidades" (na carta não fica bem explicado que obscenidades seriam estas) e, não as encontrando, deu de lhe espancar também! O padre Gilberto, versado em influências ocultas, exorcista oficial e notório em todo o estado, foi o primeiro a pressentir um vínculo entre os dois fúnebres eventos e comentou no sermão dominical que os paroquianos deveriam evitar copiar e espalhar a carta deixada por esta senhora, alertando com palavras da ciência em voga então no mundo civilizado, a Psicologia, sobre os perigos de expor coisas tão pessoais e pecaminosas; nada foi muito feliz; um terceiro e um quarto caso aconteceram em menos de dois meses e ninguém então pode mais duvidar que algo muito sinistro e anormal estava acontecendo! O fato em si tão morboso de ver uma delicada senhora se suicidar - e nesse ato extremo acusar os pais de seus filhos - ganhou contornos sobrenaturais, ao se tornar epidêmico. Era inevitável que fosse o padre, autoridade espiritual maior, quem fosse procurado para fazer alguma coisa; e este imediatamente delegou a escabrosa missão ao delegado de então, o lendário Crispim Corcoran Júnior. Homem intuitivo e de métodos inescrupulosos, arrebatado pela moda dos filmes de cowboy, a novidade da época, era, na aparência e no proceder, um arremedo de cowboy, e como tal procurou resolver aquele caso inusitado. O problema era não ter nenhuma referência para lhe orientar. Não sabia ele - nem ninguém, óbvio - como lidar com algo tão imponderável! Começou então este delegado a visitar as sedes de fazendas aleatoriamente, privilegiando aquelas onde suspeitasse de haver algo similar a trabalho escravo, embora nem mesmo essa percepção trabalhista estivesse consolidada. Em muitas casas foi ele mal recebido e teve que usar da sua autoridade e atrevimento para vasculhar a vida íntima e os queixumes, sendo obrigado a pensar como um psicólogo e um adivinho. Era patético e frustrante sua empreitada. Enquanto assim agia, entre os senhores da aristocracia local, uma divisão se notava quanto ao que deveria ser feito, e essa divisão era captada nas conversas de bar, da maçonaria, na porta dos Bancos e cafés, sempre que houvesse um alto grau de intimidade e parentesco entre estes. Alguns, mais liberais, defendiam um afrouxamento nas permissões, dando mais liberdade as suas esposas, mais recursos e mais independência; outros, mais reacionários e inseguros, avisavam que iriam por rédeas curtas nessas novas tendências e "mudernagens", no que eram ostensivamente aplaudidos e recompensados com tapinhas nos ombros pelos membros das rodas de conversa! Entre os moradores mais humildes da cidade, curiosos do que estava acontecendo, havia muita galhofa e censura rancorosa, a maioria julgando essas pobres coitadas como pecadoras ociosas, a ponto de que um assistente do delegado, um tipo oriundo desta classe mais humilde e muito perverso, criar um "raid das moças", uma rifa onde o jogador apostava em qual seria a próxima mulher a se suicidar na cidade, e o sucesso desta loteria foi estrondoso! Foi justamente desse assistente ladino e malicioso que surgiu a inspiração genial que levou nosso delegado a resolver o problema. Ao relatar ao seu superior uma briga que teve que separar na Rua da Granja, ele se empolgou ao descrever a indignação de uma senhora que partiu para as vias de fato contra uma vizinha, por esta ter dito que a foto de mulher nua exibida em uma borracharia. Tratava-se, na verdade, de uma modelo dos famosos calendários Pirelli, outra das novidades escandalosas de então. A fofoca era de que seria dela, desta senhora indignada, a foto nua e exibida naquele ambiente público! Enquanto o assistente descrevia a fúria desta mulher, o delegado ficou absorto e a imaginar o impacto que uma situação de nudez constrangedora seria capaz de causar em uma alma conservadora e puritana; como vinha a ser a alma da maioria daquelas senhoras das tradicionais famílias de Vitória da Conquista! Foi quando um raio caiu sobre sua cabeça na forma de uma ideia genial. O delegado arrastou o assistente, que era também o seu motorista particular, e foram acordar o único gráfico da cidade, um tipógrafo cuja oficina no velho bairro do Magassapo trabalhou por toda aquela madrugada produzindo uma centena de cartazes coloridos. A manhã veio a surpreender os dois, delegado e assistente, colando os cartazes nos postes e muros de todo o centro da cidade. Nestes, era possível ver a imagem de uma mulher nua e pendurada em uma árvore, com a seguinte legenda em letras ostensivas: EU, DELEGADO DR. CRISPIM DOUGLAS CORCORAN JÚNIOR, DECLARO QUE, A PARTIR DESTA DATA E PELO TEMPO QUE FOR PRECISO, TODA MULHER QUE SE SUICIDAR EM NOSSA CIDADE OU NA ZONA RURAL, TERÁ O SEU CORPO NU EXPOSTO NA PRAÇA MUNICIPAL, POR LÁ PERMANECENDO ATÉ QUE APODREÇA E SEJA DEVORADO PELOS URUBUS, SENDO AUTORIZADO A ESTE DELEGADO E SEU ASSISTENTE A ATIRAR EM QUALQUER UM QUE OUSE RETIRAR DE LÁ O CADÁVER!

E foi assim, Senhores e senhoras, como em um passe de mágica, que a cidade viu o fim daquela macabra epidemia que nem marcas deixou em nossa história, pois a vergonha foi tão grande que não apenas inibiu novas tentativas de pôr fim à própria vida, como fez com que todas as mortes anteriores fossem enterradas, como um trauma, na memória coletiva de nossa cidade, como se aquelas mortes fossem um ato obsceno de nudez moral que deveria ser para sempre cobertas pelas cortinas de um espetáculo sombrio que finalmente chega ao fim! Na mesma proporção com que os dias sonolentos se passavam sem mais notícias de outra suicida, foi-se apagando os registros nos cartórios, nos jornais, na boca do povo e na memória dos nossos historiadores, a ponto desta minha narrativa estar condenada a ser apenas uma fábula mórbida e escatológica! É o preço!














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