sábado, 5 de fevereiro de 2022

ESPÍRITO DE ESCADARIA!


 Dr. Suterlânio (corruptela do holandês Shutterland e, provavelmente, descendente dos holandeses que aportaram em Pernambuco nos tempos-da-onça) era um coletor de impostos aposentado, dono de uma fazenda em Itajimirim-Ba - comprada sabe-se lá como – onde passava seus ociosos dias a cobrar uma extorsiva taxa dos viajantes que optavam por cruzar de balsa o rio Jequitinhonha. Sua casa ficava a vinte metros do rio, sobre um escarpado barranco e ali mesmo, na cancela, à sombra de uma jaqueira, exercia seus velho hábito de extorquir. Enquanto esperava a sonolenta barca voltar da margem oposta, conversava atencioso com os passageiros, cobrava o pedágio e convencia aos temerosos sobre a segurança da travessia. Vi em Atenas o sarcófago de um grego arcaico com uma moeda de prata entre a arcada dentária: era o costume dos gregos por uma moeda na boca dos mortos para pagar a travessia ao barqueiro Caronte que  levaria sua alma pelo Styx, rio de enxofre e bosta, aos quintos do inferno (como eram escrotos, os gregos!). Voltemos a Suterlânio, em águas bem mais românticas, mas de alma semelhante. Enquanto esperava a balsa, escutei ele persuadir um vaqueiro que rodava a região em busca da esposa que fugira com um bando de ciganos. 

_ Veja você, meu filho, o exemplo de Saul. Após dar por falta de duas mulas, seu pai lhe mandou ir a procura dos animais e foi nessa busca incerta que Saul encontrou o profeta Samuel. Impressionado com sua compleição e inspirado pelo espírito do Senhor, Samuel o escolheu para ser ungido como o primeiro rei de Israel. Vá! Quem sabe o que lhe aguarda nesta busca!

Um frêmito de entusiasmo percorreu o pobre marido que pagou o pedágio e dirigiu-se resoluto para a beira do cais. Eu ali fiquei mais um pouco e comentei indignado.

_ Valeria mesmo incentivar o coitado? Quem sabe onde andará sua mulher! E se ela o abandonou... Será que ele vai brigar com os ciganos se os encontrar?

Suterlânio cuspiu na terra úmida, bem na cabeça de uma lesma, pôs a moeda do vaqueiro no bolso e comentou:

_ Vai que ele encontre um destes circos de lona furada que vagueia pela região. O dono do circo pode levar as mãos aos céus e clamar: “finalmente! Achamos o nosso palhaço!” - e dizendo assim, dobrou-se sobre o ventre dilatado, espalhando no ar a estridente gargalhada de um velhaco. 

Percebi que ele sabia ser espirituoso e que o atavismo dos sátiros europeus não o abandonara. Inspirado não sei por que espírito, repliquei-lhe “na bucha”:

_ Se caráter fosse tributado no imposto de renda, Suterlânio, o senhor teria direito a uma bela restituição! – e desci para a barca sem pagar a passagem. Vi o pilantra levar a mão ao cabo do revólver, mas dei-lhe as costas fazendo pouco caso de sua valentia. Andei pela prancha receoso de que ele fosse, além de canalha, um covarde que atirasse pelas costas. Felizmente, ele era apenas um canalha!


P.S. Para ser honesto, esta resposta só a concebi quando já estava no meio da balsa. Tenho o que os franceses chamam de “spirit d’escalier”: espírito de escadaria. São aquelas pessoas que, quando confrontadas, obtemperam, resmungam ou nada lhes vem à telha... Somente depois, quando já desceram um ou dois andares da escada, é que se lembram de uma resposta à altura... quando já é tarde!!!

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