Houve um tempo, séculos XVII/XVIII, na Inglaterra, onde uma acalorada discussão
intelectual para saber quem seria mais genial, se os modernos ou os antigos,
tomou conta dos eruditos. Sob o nome de Querela dos Modernos Versus os Antigos,
muito se escreveu e foi debatido, sendo o texto mais famoso, o livro de Jonathan
Swift, o clérigo louco, com esse título. Esta narrativa que apresento aqui,
moderna na data e antiga no tema tratado, é minha versão “em-cima-do-muro”!
Feito uma névoa se dissipando, o cenário foi se abrindo e pude ver uma colina
suave coroada por uma mansão imponente de vastos jardins. A primeira impressão
era o contraste entre a casa colorida e os jardins e arredores em cinza e
preto-e-branco. Por todos os lados, havia uma azáfama de pessoas ocupadas e
distintas, cuja característica maior era a diversidade profunda em seus trajes
e idiomas. Espalhados pelo gramado, cujos limites se perdiam no resíduo
brumoso, elas esculpiam, escreviam, afinavam seus instrumentos - alguns
completamente desconhecidos -, outros, semelhantes a címbalos, alaúdes, harpas
e violinos. Muitos escreviam em papiros, pergaminhos de couro, em folhas de
papel, em máquinas de escrever e rudimentares computadores... Facilmente,
podia-se identificar, pelos trajes e instrumentos, uma “raison d’être” e
deduzir que eram homens caracterizados como de distintas épocas e lugares da
civilização humana: egípcios empalhavam gatos e dissecavam múmias, gregos
desenhavam figuras geométricas sobre a grama, babilônios de inconsúteis túnicas
apontavam as estrelas e escreviam com ponta de juncos na argila mole. Perto
dali, sem que eu pudesse distinguir uma precisa ordem cronológica ou
geográfica, cartógrafos venezianos peroravam em torno de um globo terrestre e
bardos de saia tweed tocavam gaitas de fole por entre homens de paletó branco a
segurar retortas espumantes e tubos de ensaios. Que prazer inefável para um
lingüista encontrar seres falando com tão clara sonoridade, o hebraico bíblico,
o grego, os inusitados corpos fônicos das línguas atuais, um século ou dois
apenas de retardo e a prodigiosa babel das línguas perdidas na brumas
imemoriais! Alguns cantavam e era como se as sereias de Homero tramasse contra
o meu frágil coração um assassinato perpetrado pela beleza das notas, pelas
sublimes harmonias, pela doçura inebriante da melopeia! Só não fiquei mais
tempo hipnotizado pela cinematográfica cena devido à curiosidade de ver o que
se passava dentro da casa. Não encontrei portas, mas suas largas janelas me
permitiam ouvir e ver o que dentro dela se passava. Uma animada festa
transcorria em seu interior. Lá também havia os mesmos tipos díspares e
exóticos encontrados no jardim, com a diferença de estarem todos ali coloridos,
com rostos afogueados e vestes encarnadas. Entretanto, coisa não vista, por
mais que procurasse nos jardins, havia no grande salão outro grupo de pessoas,
sem um uniforme definido, mas facilmente identificável por trajarem roupas
extremamente modernas, jeans, tênis, celulares, relógios digitais, toda uma
indumentária e gadjets típicos do homem hodierno, e inconscientemente os
batizei de “modernos” em oposição aos outros agrupados todos na rubrica
“antigos”. Todos charlavam, consumiam bebidas espumantes e exibiam um ar de
grande bem aventurança e demorei a perceber algumas discretas nuanças de
conduta. Os antigos, reverentes e polidos, preferiam o contato com seus iguais,
mesmo de épocas disparatadas, a freqüentar os modernos que, por sua vez, não
perdiam uma chance de se aproximar dos antigos, entabularem conversações
arrastadas e tirar fotos sorridentes ao lado deles. Um antigo dentro do salão
me encarou através da janela e percebi que eles podiam ver os outros, pálidos
fantasmas no jardim (tal pensamento me assustou deveras!), enquanto os modernos
pareciam não ser capazes de tal percepção, visto o olhar perdido deles que me
atravessavam como se eu fosse um antasma! Ainda que não fosse capaz de
entender, pressentia um comércio freqüente de sinais entre eles, antigos,
através das diáfanas janelas. Foi ali que percebi outra diferença, presque
esoterique, como dizem os franceses: um antigo, no jardim, subitamente desabou,
derrubando a mesa cheia de bobinas, fios e descargas elétricas de indescritível
palor branco sobre branco onde trabalhava com afinco. Tão logo caiu, morto, seu
corpo desapareceu em fímbrias vaporosas, percorreu a úmida relva, passou por
entre fendas providenciais na parede e se materializou no centro da sala,
causando frisson e alvoroço (ele mesmo bastante espavorido com as novas cores,
apesar de usar terno cinza e ter a tez profundamente pálida do desnutrido
século XIX).
_ Bem vindo, Nicolau Tesla! – Uma tonitruante
voz se fez ouvir, em que idioma não se sabe, só sei que entendi (Na hora eu não
sabia que estava tendo um sonho!).
Bem verdade que não era todos a bajularem os
antigos, muitos até os desdenhavam ou demoravam muito tempo para aceitá-los,
geralmente começando com uma esnobe reserva sem, contudo, evoluir para uma
camaradagem ou emulação. A maioria, entretanto se portavam como netos esperando
que um tio-avô lhes incluísse em um testamento milionário, não medindo esforços
para tal objetivo. Solícitos e prestativos, acompanhando seus preferidos por
todos os salões da casa, pelo menos, por todos os que eu podia avistar da minha
janela privilegiada. Também presenciei como os modernos apareciam. A todo
instante a porta do banheiro se abria e de lá saía um moderno, moderninho em
folha, em roupas casuais e gestos afetados, disfarçando uma naturalidade
inexistente, como se ali tivessem entrado apenas para retocar a maquiagem (Sim,
havia muitas mulheres entre os modernos) sem jamais transparecerem que tiveram
tido, como líquido amniótico, a água do vaso sanitário. Também acontecia de um
moderno bater as botas, caindo estatelado no piso cintilante como uma jaca
mole. Vi isso acontecer com o Michel Foucault. Mas com eles eram diferentes! Do
nada, surgiam quatro prepostos em uniformes futuristas, apanhavam o corpo entre
lágrimas fingidas ou verdadeiras –vai saber – dos seus colegas de época,
levavam-no até um poço no pátio interno de um exótico jardim de inverno e
deixavam-no cair. Em vão esperei ouvir o som do corpo atingindo o fundo!
Arrastado, nesta minha visão, por um ritmo anômalo que não me permitia
distinguir as pegadas do caprichoso tempo, passando ali uns minutos ou uma
eternidade, acabei por sentir que do fabuloso palácio eu me afastava ao ver
tudo fugir, como se fosse eu um aeroplano em marcha-ré pelo contracampo. Pude
então perceber bem no alto, costurando as nuvens, um jocoso reclame feito de
nuvens condensadas e letras desenhadas com uma pasta esverdeada parecida com
titica de passarinho:
PALÁCIO DA GLÓRIA E DA GÊNIO UNIVERSAL!
HABITADO POR SÁBIOS MORTOS QUE EM VIDA NÃO PUDERAM ENTRAR E POR CELEBRIDADES
VIVAS QUE SERÃO EXPULSAS TÃO LOGO MORRAM!
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