Aqueles foram anos difíceis, quando a cidade de
Itambé, de um dia para outro, se viu invadida pelo rádio, revistas e jornais e
por engenheiros e operários da empresa que construía a Rio-Bahia, rodovia
federal. Os costumes e modas que as famílias conservavam a intocáveis gerações
caíram em desuso como mangas maduras à brisa do tempo. O ponto alto desta crise
se deu quando Dinorá, esposa do prefeito Carrobério, suicidou-se com um tiro de
repetição na boca e, em uma longa e caligráfica carta, culpou o marido pela
infelicidade e vida de escravidão que este a submetia na sede da fazenda Santa
Rosa. A carta correu a cidade, comoveu a ricos e pobres que carregaram nos
ombros o caixão da oprimida, do velório ao cemitério; dois meses depois, quando
o episódio parecia digerido, dona Banúria, esposa de outro rico fazendeiro,
teve a mesma idéia infeliz e se afogou no rio Pardo com os bolsos do vestido
cheios de pedras. Na carta sobre a penteadeira e endereçada ao povo da
cidade... um pungente relato de privações, perversidades e humilhações diante
das amantes do marido. Como corolário e arremate, a suicida compadecia e loava
sua antecessora de desespero, Dinorá. O rastilho de pólvora fora aceso. A
consciência do gênero feminino acordara e histórias horríveis de opressão começaram
a se ouvir nas feiras e nas festas, no confessionário e nas praças. Temendo por
suas mulheres, os pais-de-família redobraram a opressão, acreditando se dever
ao ócio e ao tempo perdido com radionovelas e revistas de modas, tal sinistra
solução. O padre vociferava no púlpito contra o demônio que induzia os
suicídios, as armas foram trancadas e moleques vigiavam dia e noite os passos
de suas patroas... mas em vão! Três semanas depois, tivemos a terceira vítima
com direito a foto e à íntegra da carta publicada no jornal da Capital. O
viúvo, com medo de ser linchado por manter a esposa na fábrica de queijos
dezesseis horas por dia, fugiu para Minas Gerais. Ao fim de dois anos, seis
esposas se suicidaram e a cidade, em uma espécie de embriagues macabra, esperava
e apostava quando e quem seria a próxima vítima. Fora por essa época a nomeação
de Crispin Corcoran como delegado de polícia da cidade. Sem que tal lhe fosse
cobrado, deu-lhe na telha resolver esse problema que ameaçava migrar para as
camadas mais pobres e numerosas, agravando ainda mais a fábrica de delinqüentes
(como ele chamava o orfanato). Não cabe nos dedos o número de noites em claro a
cismar sobre o caso, sentado de pijamas sobre a mesa da cozinha - Corcoran
tinha fobia de pintos, mas o sogro insistia em criar e chocar galinhas no
quintal, e se um entrasse pela porta dos fundos... Nesse santuário, ele engolia
colheradas de requeijão e farinha de goma em uma caneca de café-com-leite,
baforava seu hálito no anel de esmeralda e o polia na flanela do pijama,
enquanto cismava feito um neurótico miserável. Deve-se a uma destas noites
meditabundas o insight que ele teve: mandou colar, nos postes elétricos, portas
de casa e balcões de bar, uma circular informando que, daquela data em diante,
qualquer mulher que se suicidasse na região, rica ou pobre, casada ou solteira,
jovem ou idosa, com ou em razão para tal, teria o cadáver despido e pendurado
na porta da delegacia, na praça principal, com todas as vergonhas expostas até
a catinga do cadáver empestiar a cidade. Talvez por coincidência, com os
maridos mais ternos e compreensivos, talvez pelo terror gerado com essa medida
extrema, o certo é que, daquela data até hoje, quando de Crispin não resta
sequer os ossos já exumados, nenhuma mulher oprimida tem se suicidado na bucólica cidade de Itambé.
quinta-feira, 30 de dezembro de 2021
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