segunda-feira, 10 de maio de 2021

UMA VOZ ESTENTÓREA!

SARDES ou Talus, como os gregos o chamavam!


      De volta para casa, após a célebre guerra de Troia nas planícies da Anatólia, os gregos viveriam ainda memoráveis histórias, ofuscadas, porém, pelo brilho da Odisséia que narra as peripécias de Ulisses de volta ao lar. Agrupadas em torno de seus líderes, formada por tribos e clãs, as esquadras partiam ao sabor dos ventos favoráveis, sulcando de espuma branca as escuras águas do Mediterrâneo. Em um desses barcos viajava o lendário guerreiro Estentor (ainda hoje, quando qualificamos uma voz tonitroante com o adjetivo estentório, estamos aludindo a este legendário herói). Nas batalhas, sua vóz gutural e ensurdecedora era sua arma mais letal. Era capaz de impingir o terror e o desânimo em homens temperados no acero das espadas e derrubar revoada de pombos com a bestial reverberação de suas cordas vocais. Ocorreu de ventos adversos  desviar-lhe a rota e uma brumosa tempestade arremessar nos rochedos de Creta a sua nau ubérrima de homens e do ouro pilhado no palácio de Príamo. No outro lado da ilha, o perverso rei Minos sonhava com as areias da praia, sob os primeiros raios do sol, cintilando com os elmos, espadas e escudos dourados, vasos de prata e pratos de ouro, moedas e soldados pela areia desmaiados. Enquanto Estentor reunia os náufragos e os reanimava, enquanto recolhia o tesouro esparramado, o rei Minos, sobre a cama esculpida em uma raíz de carvalho, agradecia a Poséidon o presente lhe enviado pelas ondas do mar. Seu monstruoso filho, no labirinto, teria corpos para seu deleite, e sua esposa Pasífae, que havia perdido o juízo após parir o minotauro, teria um tesouro para polir e lustrar, reduzida que fora a uma torpe escrava. Saltou da cama e chamou o guerreiro Sardes que dormia no borralho do palácio, entre as brasas. Era ele o último remanescente da raça de bronze (segundo Hesíodo, houvera, antes da nossa, três raças de homens, os de ouro, os de prata e os de bronze e Pitágoras gostava de exibir uma faixa de ouro em suas coxas como prova de sua filiação com a primeira e semi-divina destas raças). Salvo por Minos do dilúvio que afundou toda a sua raça, Sardes servia ao palácio, cuidava do Minotauro quando este era bebê e saciava os desejos insanos da rainha louca. Era o único e suficiente guardião da ilha. O artífice Dédalo havia criado para ele uma arma triunfal: uma fornalha de pedra que era acesa sempre que navios estrangeiros se aproximavam. Nela, Sardes deitava-se até incandecer o metal do seu corpo; então saía feito uma brasa viva até o porto para receber os visitantes. Com um dissimulado sorriso nos lábios, Sardes abraçava os recém-chegados e os fritava entre seus bronzeados braços ( daí a origem da expressão “sorriso sardônico” para um rito de lábios convulsionados). O cenário de uma batalha etimológica se desenhava: Estentor reuniu seus homens em falanges e partiu desesperado em busca de comida e água. Marchava em silêncio pois a tempestade havia lhe roubado a vóz na forma de um jocoso resfriado. Não demorou a avistar o palácio de tortuosa geometria e mármores que espelhavam as negras nuvens ajuntadas pelo espírito sombrio das batalhas. Os portões rangeram uma eternidade e por eles passou, vestido com as armas do deus Ares, em brasa viva a iluminar a escuridão da tempestade, Sardes, trazendo no rosto seu riso emblemático. Mercenário a serviço dos gregos, Estentor era semita e cultuava o Deus de Noé que havia lhe salvado das águas e que agora, para ele, rolava sob o céu entre as trombas d’água. Sardes sabia não se tratar de visitantes ingênuos e sim, de ávidos soldados e partiu para o combate. Seu corpo metálico retinia na armadura lançando centelhas e fagulhas como um vulcão irado. O ar em volta ardia em labaredas e o retumbar dos seus passos escandia sua mórbida gargalhada. Estentor fincou-se na areia, estendeu a lança e esperou o gigante monstruoso. Sabiam que as armas não o conteriam e que sua vóz de arauto era fundamental para animar os seus homens atrás dele aninhados. Encheu os pulmões de ar e orou ao seu Deus inominável. Se morresse de um fogoso abraço, pelo menos sua vóz resfriada lhe pouparia de um vergonhoso gemido e ele seria fritado como um herói. Outra vóz, parecendo vir do centro da tempestade lhe ordenou que gritasse, quando Sardes já estava a poucos passos. Estentor soltou os pulmões. 

Um monstruoso trovão pipocou nos ares com um estalo de mil latas d’água dilaceradas. Uma rajada de gelo fino e água, parecendo sair-lhe do fragoroso hálito, apagou o fogo do homem de bronze que foi, em poucos minutos, tranformado em sucata pelas clavas sanguinárias do pasmo Estentor. E tudo que restou de tão sigular combate fora duas esquecidas palavras: Estentóreo e Sardônico! Talvez, como sequela dessa justa memorável, é que elas expressem sentidos tão distintos e ocupem páginas tão distantes em nosso homérico dicionário.

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