terça-feira, 11 de maio de 2021

A ÚLTIMA VIAGEM!(e a primeira que escrevi, ainda no século passado)

 


     M. não saberia precisar quando os sintomas voltaram.  Suava frio, ardia noites de febre e vomitava. Nas suas alucinações, junto aos vômitos, as lembranças dos últimos anos e os hábitos adquiridos pareciam lhe sair pela boca como se tudo na vida fosse carne. Não mais reconhecia a esposa, os filhos, o rosto que o mirava no espelho. Falava-se de epilepsia e amnésia parcial _ ele não se esquecia das fotos sempre no bolso do casaco _ e sob o degelo uma experiência subterrânea aflorava. Primeiro foram os sonhos: imagens soltas de gravetos rolados ao vento, crianças pálidas e tambores nas matas que fizeram sentido no dia em que reviu, em sonhos, a guia do acampamento, uma índia contratada entre os catequizados Mongoiós nos anos de implantação das redes elétricas continentais. As imagens do pesadelo giravam em volta do corpo magro da índia, os aparelhos elétricos estouravam e sorrindo com os olhos em labaredas azuis ela gritava:

 _ Oh! Breve irei partir! Tudo indica. _ E seu corpo explodindo em jatos de luz coincidia com as persianas rompidas pela manhã dourada.

_ Como era o nome dela? _ perguntava Miro a sua esposa que amarrava as cortinas com uma mão, a outra pingando gotas de remédio no café da manhã. Levou horas a se lembrar do nome incomodado pelos excessivos cuidados da esposinha enfermeira. Um nome árabe dado pelos mascates que cruzavam a região, um nome que expressava o infinito e o destino dela:

_ NADIR! Miro gritou derrubando os remédios, um clarão iluminou o fundo dos anos passados e o destino, do qual em parte ele fora o responsável, caiu como um raio nas vizinhanças apagando de vez a luz dos seus dias banais.

No hospital os sonhos continuavam. Ele havia prometido partir com ela para um lugar infinito e lhe parecia que o momento oportuno havia chegado. Sonhava agora flutuando no espaço escuro onde a terra era apenas um ponto brilhante, quase desperto com os cometas em chamas que passavam zumbindo, vagando por nebulosas de cores verdes e metálicas, por entre galáxias espiraladas. Sentia que ela, a índia, estava o tempo inteiro ao seu lado, no vento solar que lhe aquecia, nas planícies azuis de planetas desconhecidos. Constelações explodiam por todos os lados e no ruído astral ele ouvia os gritos selvagens de Nadir dizendo ser Zeferina, um espírito a comandar todos os ventos e cuidar de todos os índios mortos em batalhas.

No élan dos sonhos ele se alimentava, a crisálida tremia e quando se rompeu não mais parecia o obeso engenheiro, havia perdido a flácida barriga que entre os primitivos era um signo de respeito e moralidade. Não hesitou em eletrocutar dois enfermeiros e fugir do cárcere hospitalar senhor absoluto dos movimentos, desenhando no mapa da cidade sinuosas peripécias policiais.

          O dia raiava por trás das montanhas recolhendo flocos brancos de orvalho pelas colinas, deixando ver a rodovia estirada por vales oxigenados. Miro respirava melhor e seu carro em alta velocidade cruzava pássaros migrantes no céu azul polar. Bebeu a água dos bosques surpreendendo o banho de lavadeiras, almoçou carnes almiscaradas num restaurante da estrada e olhou no mapa o seu destino no mesmo instante em que nuvens escuras erguiam-se no horizonte como sinais de fumaça. Uma parte do caminho havia sido percorrida sem que ele soubesse ser por instinto ou por memória involuntária. Um aperto no coração, um impulso em pisar fundo impedia-lhe qualquer reflexão e a evidencia de não se encontrar nele o motivo dessa viagem pairava inofensiva como um abismo aos pés de um sonâmbulo. O acampamento estava a um dia de viagem, a distância no tempo não contava. Os dias vividos ao lado de Nadir estendiam-se pela região como o tecido de um balão insuflado no ar quente, no fogo de um reencontro iminente, abrindo no seu rosto o sorriso, o frescor, a mesma disposição para a novidade e para o espanto e fazendo das paginas do seu diário de vinte anos atrás um apontamento recente:

          “Cheguei cedo na taba dos Mongoiós após longa viagem, miséria por todos os lados, velhas, crianças com vermes, os homens praticamente dizimados. Perguntei por alguém que conhecesse bastante a região e que pudesse nos ajudar na implantação das linhas elétricas continentais. Indicaram-me uma índia que morava afastada em uma casa de barro às margens do Rio Jequitinhonha, rio de águas turvas cortando vales que a hidrelétrica iria inundar. Ela era de uma linhagem de antigos curandeiros e se afastara aos primeiros sinais de sincretismo e dos padres missionários. Uma forte ventania soprava a terra batida em volta da casa, as aves piavam anunciando o eclipse solar previsto no calendário. Chamei-a pelo nome e vi o seu vulto por trás da poeira, do vento recolhido que girava em frente da porta. Grãos de terra caíram nos meus olhos ao mesmo tempo que alguém me segurava pelas costas dizendo:

          _ Entre, aqui chove em rápidas pancadas, você pode ficar encharcado. _ aquela voz civilizada na clareira deserta, ao invés de me acalmar, deixou-me arrepiado. Tentei abrir os olhos, o vento havia passado. Entre lágrimas vi um rosto moreno pardo, manchas coloridas de um vestido, cabelos e colares. Logo estávamos sentados numa sala escura onde ela soprou algo em meu rosto e os olhos melhoraram. Quis abrir a janela e ver o ambiente, mas havia coisas se movendo na parede e recuei muito assustado.

          _ Soube que você procura um guia _ ela tranquilizou-me com sua voz que trinava como pássaros em revoada.

          _ Sim, disseram-me ser você a pessoa mais indicada...

          _ Ah! Sim! Conheço cada arvore deste lugar, todas as trilhas e todos os ribeiros, são neles que deposito as feridas do meu povo para serem levadas ao grande rio de águas salgadas _ eu estava cansado da viagem, o pó soprado no meu rosto havia me atordoado. Sentindo um medo inexplicável, as manchas na parede parecendo se mover, perguntei:

          _ Feridas? Como assim?

          _ Como essas que vejo em você _ falava alisando minha pele aparentemente saudável _ penduro elas na parede, curo-as e as devolvo aos seus verdadeiros donos, os espíritos da água...

          O pavor congelava minhas pernas, a imagem de reflexos dourados deslizando nas águas do rio em noites escuras nascia das suas mãos sobre minha pele arrepiada, levantei-me mantendo o controle e lhe disse:

          _ Devo ter vindo no lugar errado _ eu estava tonto e um zumbido forte deformava minhas palavras.

          _ Não acredita! _ gritou _ então olhe _ correndo as janelas e abrindo a luz branca do céu nublado. Chagas imensas pulsavam nas paredes da sala, algumas tão fundas que minavam sangue quando contraídas e ao expandir permitiam ver a vegetação do lado de fora da casa. Tentei correr e penso que ela me segurava em partes desconhecidas do meu corpo, partes que se rasgaram no esforço que fiz pela liberdade. Corri pelas trilhas estreitas ferindo-me nos galhos. O dia escurecido pelo eclipse do sol silenciava os ruídos da floresta em falso crepúsculo com trevas no centro e luz dourada no horizonte que desorientava os ritmos da vida animal. Olhei para trás de um local distante e elevado e ouvi o riso de Nadir ressoar na fria atmosfera deformada pelos ventos rasteiros. Avistei a porta da sua casa onde ela acenava-me com algo brilhante e vermelho, vermelho dourado, cor dos dragões chineses. Parecia ser um lenço, um tecido estranhamente animado repleto de cenas doloridas do meu passado traumático. Entretanto eu ria, como se, liberto de tais dores, pudesse ver como eu tinha sido ridículo em padecer daquela maneira. Ela também ria como se possuísse o segredo das minhas mágoas. Minha alma seria aquela coisa vermelha em suas mãos? Oh! Insensatez!...”

          Miro não precisava desses apontamentos, os elementos da natureza despertando sensações e repetindo acontecimentos com maior nitidez, como se sua viagem fosse no espaço outrora percorrido, mas também no tempo, e indiscerníveis, no caso. Guiava com extremo cuidado e agora que a vida ressuscitava seu antigo corpo de zumbi ele sentia intensamente os movimentos teleguiados lhe arrastando nas curvas fechadas, a brisa fresca e asfixiante ao por a cabeça fora do carro, soltando gritos de alegria e entusiasmo.

          A tarde congelada sob nuvens densas emanava um perfume de flores úmidas e terra molhada. O capim ondulava verdes escuros e claros, um tapete onde vacas brancas mugiam de tédio, o ronco do motor abafando a despedida das aves, a festa dos grilos, o coaxar dos sapos. Havia também sob os tremores bruscos do milharal, nas plantações dos colonos, ratazanas selvagens em movimentos que indicavam guerras mortais entre bandos diferentes, guinchos estridentes e olhos amarelos como a lua nas noites pálidas. Elas eram motivos de alegria para as velhas índias que proibidas de usar os frutos da lavoura sabiam preparar variados pratos com a carne desses ratos. Miro presenciou duas vezes _ nos apontamentos trata-se de sonhos _ Nadir atraindo as ratazanas com o sopro de uma flauta de taquara pelos barrancos fora das cercas e crianças nuas massacrando com bordões os animais peludos nos bancos de areia aprisionados. Ele não tinha coragem de comê-los, mas observava as crianças e idosos da tribo se banquetear com os roedores de banhado. Lembrava-se de quando, cansado de medir e demarcar as terras, sentava-se com Nadir após o jantar em uma dessas clareiras onde os ratos foram massacrados e, sob o céu estrelado, improvisar com o seu teodolito um pequeno telescópio e lhe explicar detalhadamente a natureza dos astros, ela com o corpo quente nele recostado. Falava-lhe dos meteoros como fenômenos naturais, dos buracos negros e dos pulsares fazendo-a segurar com medo e depois largar o braço frio do engenheiro ao seu lado, ficando muito assustada em saber que Júpiter poderia explodir e surgir no céu num sol noturno de fogo espiralado.

          A noite perseguia o seu carro, escoando sombras nas depressões do vale, nos desfiladeiros, arrastando nos seus giros pela terra os pesadelos, os fantasmas que ficariam presos nas redes elétricas que ele havia implantado. Fantasmas que correriam pelos fios fazendo oscilar as lâmpadas dos vilarejos. Um pássaro eletrocutado que jazia pendurado nos fios de alta-voltagem, a luz baça do crepúsculo, o solo das guitarras no toca-fitas do carro, Eram muitos os detalhes interagindo com sua memória teleguiada e lhe fazendo viajer por estradas vicinais, algumas sequer constando nos mapas.

          Estava sobre um planalto extenso e largo, uma chapada que se estendia até uma fenda no horizonte onde, preso entre as nuvens da tempestade, brilhava um crepúsculo escarlate. O ambiente estava mudado, os lagos da represa formara nas margens pântanos e charcos. Árvores afogadas e despidas de folhas, galhos nus e queimados de sol contorciam por todo o vale um tecido de ramagens negras como o destino e entre elas, com os faróis ligados, Miro procurava o que restou da velha estrada. Media o intervalo cada vez menor entre os relâmpagos e as trovoadas, concluindo que uma tempestade se aproximava. Um trepidar agudo e um vago luminar, as labaredas em um arbusto afastado indicavam a queda de um raio e ele teve medo trancando-se no automóvel, seguro sob as rodas de borracha. O temor lhe parecia ser inato, trancando-se no quarto, no banheiro, sempre que ouvia um trovão na mais tensa das idades. Agora o pânico crescia com os golpes da chuva no vidro, com o reflexo dos relâmpagos no capô azul do carro. O fogo nas árvores que não se apagava com a chuva confundia os seus cálculos e no meio deles, com fortes dores no córtex cerebral, a lava quente do passado aflorava. O vento soprava as folhas do seu diário onde ele havia narrado:

          “_ Um curto-circuito e o perigo de incêndios na floresta conduziram nossos diálogos para a natureza da eletricidade. Nadir havia adquirido um hábito perigoso: encostava as partes do seu corpo nos fios desencapados levando choques de baixa voltagem; dizia que isto eliminava o torpor e lhe trazia mais vitalidade. Em silêncio concordei, pois entendia que o espírito em todas as suas expressões e faculdades era um efeito das forças cinéticas, da dinâmica elétrica nos feixes pelo corpo espalhados (lembrei-me dos epilépticos e das tempestades cerebrais) também sabia que a função primária dos seres vivos, a atividade das membranas da qual todas as outras derivavam, se explicava por diferenças de potencial entre cargas elétricas e ela parecia possuir este saber quando dizia que a vida era uma longa noite de trovoadas e tempestades. Estava abraçado a ela e ouvia sua lenda de um tempo em que os homens e mulheres viviam ligados um ao outro, cada um com a sua metade e o castigo de Tupã recolhendo através de um raio a energia que unia as duas partes. Agora os homens, querendo viver outra vez essa plenitude e essa felicidade perdidas, dizia ela, deveria imitar os animais, o homem, um cão e a mulher, uma cadela e se atracarem formando momentaneamente o casal original. Quis lhe explicar que essa divisão de sexo ocorreu no fundo dos oceanos, quando a vida ainda era um sonho e um projeto, e que esse raio, se houvesse, teria vindo do centro da terra e não de um Deus celestial mas ela segurava então os meus bagos apertando se eu tentasse fugir e, rosnando em meu pescoço, exigia de mim as volúpias do sexo animal. Eu obedeci com as orelhas murchas, em silencio como se tivesse um osso atravessado na boca que as palavras o fizesse cair... ah! O amor!

          Depois dessa intimidade entre nós, ela mudou de hábitos, pelos meus temores espero, ainda que os novos fossem mais singulares. Agora para se eletrificar ela havia criado um dispositivo composto por uma peneira de aço usada em construções onde um fio ligado às malhas tinha a outra ponta colada em seu braço bronzeado. Com isto ela passava horas perseguindo os ventos como se adivinhasse suas rotas turbulentas e opunha contra eles a tela da peneira cuja rede deixava passar a massa de ar e retinha, segundo ela, os demônios que viajavam no vento, impulsos dinâmicos deslocando a mínima brisa e imantando os fios de aço conforme as descargas que senti quando lhe acompanhava correndo ao seu lado de mãos dadas...  ah! O tempo!...”

Ninguém ouviria os gritos de Miro em convulsões no banco do carro. As mãos crispavam o volante, suas vísceras pulsavam. A colonização estabelecida e as terras demarcadas confinaram o resto da tribo nas reservas administradas e somente os ratos se multiplicavam. Sobre um rochedo próximo, um bando deles amontoavam-se molhados pela chuva que lavava o cheiro das linhagens diferentes, deslizando uns sobre os outros e mostrando os dentes aos faróis do carro. Miro ouvia os trovões como meteoros que desabavam e as chamas pelo vidro embaçado eram nebulosas e supernovas estouradas. A febre e o delírio espumavam-lhe pela boca, a extática do temporal deixando seus cabelos eriçados. Uma ratazana havia se introduzido no banco da frente, encolhida e trêmula no canto extremo do tapete e, quando Miro caiu deitado por um espasmo, ela não teve outra opção senão saltar sobre seu rosto, o susto e os dentes finos devolvendo a Miro o sentido da realidade. Abandonou o local e começou a andar pelo charco evitando os ventos que lhe soprava no rosto fortes rajadas e tropeçando nas pedras que pareciam levitar. Velhos e distintos hábitos agitaram seus movimentos como asas de um pássaro renascido das cinzas e ele hesitava... os sons mais diversos lhe serviam de guia, um filete respingando nos galhos, o murmúrio das nascentes, tudo em seu ouvido soando desarticulado. Os velhos Mongoiós conseguiam provocar um efeito semelhante entoando cânticos cada vez mais acelerados, inalando um pó verde e repetindo os gritos em grande velocidade, acelerando até o naufrágio das palavras deixarem ouvir as vozes de um mundo soterrado. Miro reviu no seu transe o homem pardo e de rosto impreciso, músculos tensos sobre um esqueleto bem desenhado que lhe ordenara na época explicar o segredo dos raios e ele repetiu sob a chuva o que havia sonhado em voz alta:

          _ Existem três tipos bem definidos: o relâmpago que são descargas entre as nuvens; os raios alinhados que caem das nuvens à terra e um tipo raro, o corisco, que sobe do solo em direção ao céu; ele possui a estupenda voltagem da terra e é atraído pelas nuvens secas da estratosfera, os nimbos e cúmulos na fronteira do espaço; partem dos lugares elevados e de boa condutividade, colinas, nascentes de rios, para-raios nos edifícios instalados...

          _ Eles podem subir pelo nosso corpo? Pela carne? Perguntava Nadir segurando seus braços que tremiam sob efeito das ervas inaladas.

          _ Não. Pode acontecer alguém encontrar-se muito próximo de um desses pontos ou em contato direto e dizermos então que ela foi atingida por um raio, um acontecimento acidental... para que um corpo vivo conduza tal descarga suas partículas deveriam estar muito aceleradas, suas fibras alinhadas, o organismo seco e aquecido para além dos limites da vitalidade...

          _ Ah! Isto não é impossível _ dizia ela e de cabeça para baixo Miro via o seu rosto oval e iluminado sob o fundo estrelado da via láctea.

          O vento soprava suas roupas encharcadas de frio e ele talvez desse voltas no mesmo lugar pois na terra de barro molhado as pegadas duplicavam pés descalços ao lado dos sapatos. As velhas da tribo falavam de um povo de sonâmbulos que se guiavam pelos sonhos que a noite arrastava nas campinas e nos prados, mas nada havia naquela escuridão além dos troncos de braços longos e das gotas cadentes que a sua lanterna focava. Seu braço movia-se no ritmo de antigas aprendizagens. Uma tarde, com o sol inclinado e a noite subindo pelos bosques e ravinas escarpadas, Nadir o levou às ruínas de um antigo cemitério onde as cavernas e os mausoléus de pedra amontoados projetavam mantos de sombra sobre a paisagem. Com um pedaço de espelho ele deveria vasculhar, usando o reflexo da luz do sol, as zonas escuras enquanto ela entoava cânticos e dançava; com isso ele poderia iluminar o espírito dos antigos antepassados que viviam nas trevas e que os guiariam nos caminhos da vida complicada. Ele efetuou os movimentos similares às contorções do corpo dela, o rosto já marcado pelas rugas do pavor e quando o quadro de luz ampliada recortou sobre as lajes as partes do corpo de um grupo de múmias que dançavam e o rosto com dentes afiados de um velho emitindo guinchos abafados, os movimentos congelaram-se nos seus braços, seu cérebro explodiu em confusas descargas e ele caiu desmaiado. Agora, repetindo sob a chuva as linhas das antigas danças com o facho da lanterna, uma outra tribo fora-lhe revelada. Presos na lama os ratos fugiam vagarosos e Miro sentindo no calor da febre crescente a proximidade da índia seguiu a trilha dos roedores, o cérebro em tempestade lavando-lhe o horror e a náusea pelos roedores que se abrigavam dentro de suas calças. Sentia saudades das tardes aquecidas, da ilusão de eternidade que o sol vagaroso lhe dava, da alegria nos braços quentes de Nadir. A atração que ela passou a sentir pelos astros, pelos turbilhões cósmicos que o telescópio descortinava fizera-lhe andar mais leve pela terra, ressentir com menor intensidade o ódio pelos segmentos da tribo colonizada onde ele esperava encontrá-la gritando seu nome, ferindo-se nos acidentes do caminho e ouvindo em resposta os ecos indiferentes como lágrimas e chuva no rosto molhado; sobre as notas mais baixas da gama sonora, sobre o último acorde dos seus gritos na noite escura e aquosa, sua memória insana se projetava:

          _ Hoje pretendo lhe mostrar como planejo fazer a viagem _ Nadir lhe dissera um dia enquanto bebiam um tônico chá de ervas sagradas. Ansioso em saber como ela pretendia partir para o infinito ele se levantou de um salto seguindo a índia que se enveredava no mato escuro e molhado levando no braço uma gaiola coberta enquanto lhe explicava:

          _ Retirei esta ratazana lá do velho paiol e a criei separada do seu bando; elas só se reconhecem pelo cheiro e esta aqui é uma estrangeira agora, quando eu a soltar no paiol e o instinto lhe fizer procurar o seu bando haverá uma guerra dos diabos, espero que o tratamento que lhe dei traga bons resultados _ Nadir olhava o horizonte que as vezes se iluminava e com o relógio Miro, que não entendia o que isso tinha a ver com a viagem, calculava o intervalo entre os relâmpagos e os trovoes prevendo a tempestade que se aproximava.

          A voz soava no lado direito na direção do velho paiol agora em ruínas por onde, em busca de abrigo, os ratos estavam lhe guiando. Ele estava enfim nas trilhas da reserva, mas o desconforto de estar perdido não passava. Hesitando entre o impulso que o arrastava e o desejo de esperar que o tempo melhorasse empurrou a porta do paiol e no guincho que fez a dobradiça enferrujada ele relembrou da ratazana enfurecida degolando com dentes comprimidos seus antigos familiares que ousaram atacá-la, Nadir aprisionando-a outra vez na gaiola, o arrastando pelo braço a gritar:

          _ Rápido, rápido.

          Um vulto, um vento passa perto dele na direção em que costumavam seguir correndo de mãos dadas sob a chuva que os uniam no barro molhado. Miro desiste de esperar e parte como um sonâmbulo pelo mesmo caminho que levava ao acampamento onde iria encontrá-la e na sua frente projetada a memória o guiava. Nadir outrora continuando a explicar perto de uma colina ritualmente preparada:

          _ A ratazana agora está no ponto, eliminou todos que quiseram impedir a presença do seu cheiro diferente; ela está embriagada de liberdade, olhe, suas fibras não estarão alinhadas? Suas partículas aceleradas? _ mostrando a Miro o animal sujo de sangue, arrepiado e emitindo guinchos alucinados. A gaiola de aço é depositada no alto da colina sobre linhas e arabescos escavados.

          _ Como será essa viagem? _ Miro perguntava sem cessar.

          _ Olhe bem para o rio, para as poças d’água _ a doce índia explicava-lhe _ a luz, os reflexos, são fagulhas, elementos da própria água. Evaporando estas fagulhas separam-se formando o sol, o fogo, as galáxias. Um corpo seco pelo espírito aquecido serve como veiculo; você não conhece histórias de homens consumidos pelas chamas, carregados pelas labaredas no grau máximo da liberdade?

          Os dois, abraçados, conversavam deitados sobre a grama molhada e observando a colina quando um campo elétrico lento e azul envolveu os aros da gaiola e dela, com estrondo e fagulhas, um raio cabeludo do tipo corisco partiu rasgando as nuvens pesadas e o céu irado, um cheiro queimado chegando antes do trovão que começa chiando como ratos alegres e desaba com o som de mil portas arrombadas.

          Miro já se encontra perto do acampamento e conversa sozinho, em voz alta:

          _ Não havia nenhum sinal do animal na gaiola, tenho certeza. O que teria acontecido depois, antes de acordar naquele quarto de hospital?... Branco... tudo branco... a ficha branca sobre o leito escrito ‘intoxicado’... ah! A vida!...

          Um clarão de luz na colina que ele havia cruzado ressuscita-lhe uma imagem esquecida, nadir arrastando-lhe do local, dizendo-lhe com carinho:

          _ Você irá comigo, querido, lhe avisarei quando chegar a hora. Venha rápido sim? Não perca tempo procurando significados.

          Seus passos aumentam e logo ele está correndo desesperado, pesado de chuva, o rosto lívido sob os clarões da tempestade. Pela primeira vez seus pensamentos se alinharam na superfície de uma única imagem: o espírito de Nadir, sua eletricidade apanhada pelo corisco, atravessando as nuvens e os estratos e partindo como um jato de luz para os confins das galáxias! Um relâmpago desenhou nas nuvens a figura da fênix, o pássaro de fogo renascendo das cinzas e voando para a eternidade! De longe ele avista as luzes do acampamento e antes que o alcance um menino da aldeia, vindo em direção contrária, lhe segura pelo braço:

          _ ajuda, moço, ajuda! Todos estão mortos, eletrocutados.

          _ Quem? Quem está morto? _ Perguntava Miro soterrado na estrada enlameada.

          _ Os guardas da reserva, os brancos e os índios que viviam com o povo das cidades; só os nativos da floresta escaparam. Queriam expulsar a curandeira e ela pôs todos eles sob uma rede de fios camuflados dizendo ser uma espécie de despedida, depois, ligando o transformador de alta voltagem...

          _ Onde? Onde ela está agora?

          _ Ela está lá no barraco de zinco, trancada e gritando alto não permitindo ninguém entrar, gritando por um homem que nós não conhecemos, um homem que ela vivia a esperar...

          Miro quase sem fôlegos se detém a poucos metros do barracão de ferragens intensamente iluminado. Um raio monstruoso desaba no local vibrando como pratos de orquestra em longos segundos as paredes do barraco logo chamuscadas.

          _ NADIR! _ grita Miro derrubando com os pés a porta incandescente. Ninguém... Nenhum corpo naquele pequeno espaço, nem ao lado, nem atrás. Soando como infinitas portas sendo fechadas, o trovão ecoava pelo vale. Parecia uma voz feminina a dizer:

          _ TARDE DEMAIS! TARDE DEMAIS!

 

 

          P.S. Miro hoje reivindica o original das fotos, feitas por um satélite, de um feixe luminoso partindo da terra na noite de 05/08/84 (latitude e longitude não reveladas) e divulgadas pelos jornais; suspeitam ser ele o vulto que aparece durante os temporais no que restou do acampamento, gritando para o alto e repudiando, com suas loucas esperanças, a lenda de que um raio não cai duas vezes no mesmo lugar...

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