M. não saberia
precisar quando os sintomas voltaram.
Suava frio, ardia noites de febre e vomitava. Nas suas alucinações,
junto aos vômitos, as lembranças dos últimos anos e os hábitos adquiridos
pareciam lhe sair pela boca como se tudo na vida fosse carne. Não mais
reconhecia a esposa, os filhos, o rosto que o mirava no espelho. Falava-se de
epilepsia e amnésia parcial _ ele não se esquecia das fotos sempre no bolso do
casaco _ e sob o degelo uma experiência subterrânea aflorava. Primeiro foram os
sonhos: imagens soltas de gravetos rolados ao vento, crianças pálidas e
tambores nas matas que fizeram sentido no dia em que reviu, em sonhos, a guia
do acampamento, uma índia contratada entre os catequizados Mongoiós nos anos de
implantação das redes elétricas continentais. As imagens do pesadelo giravam em
volta do corpo magro da índia, os aparelhos elétricos estouravam e sorrindo com
os olhos em labaredas azuis ela gritava:
_ Oh! Breve irei partir! Tudo indica. _ E seu
corpo explodindo em jatos de luz coincidia com as persianas rompidas pela manhã
dourada.
_ Como era o
nome dela? _ perguntava Miro a sua esposa que amarrava as cortinas com uma mão,
a outra pingando gotas de remédio no café da manhã. Levou horas a se lembrar do
nome incomodado pelos excessivos cuidados da esposinha enfermeira. Um nome
árabe dado pelos mascates que cruzavam a região, um nome que expressava o
infinito e o destino dela:
_ NADIR! Miro gritou
derrubando os remédios, um clarão iluminou o fundo dos anos passados e o
destino, do qual em parte ele fora o responsável, caiu como um raio nas
vizinhanças apagando de vez a luz dos seus dias banais.
No hospital os
sonhos continuavam. Ele havia prometido partir com ela para um lugar infinito e
lhe parecia que o momento oportuno havia chegado. Sonhava agora flutuando no
espaço escuro onde a terra era apenas um ponto brilhante, quase desperto com os
cometas em chamas que passavam zumbindo, vagando por nebulosas de cores verdes
e metálicas, por entre galáxias espiraladas. Sentia que ela, a índia, estava o
tempo inteiro ao seu lado, no vento solar que lhe aquecia, nas planícies azuis
de planetas desconhecidos. Constelações explodiam por todos os lados e no ruído
astral ele ouvia os gritos selvagens de Nadir dizendo ser Zeferina, um espírito
a comandar todos os ventos e cuidar de todos os índios mortos em batalhas.
No
élan dos sonhos ele se alimentava, a crisálida tremia e quando se rompeu não
mais parecia o obeso engenheiro, havia perdido a flácida barriga que entre os
primitivos era um signo de respeito e moralidade. Não hesitou em eletrocutar
dois enfermeiros e fugir do cárcere hospitalar senhor absoluto dos movimentos,
desenhando no mapa da cidade sinuosas peripécias policiais.
O
dia raiava por trás das montanhas recolhendo flocos brancos de orvalho pelas
colinas, deixando ver a rodovia estirada por vales oxigenados. Miro respirava
melhor e seu carro em alta velocidade cruzava pássaros migrantes no céu azul
polar. Bebeu a água dos bosques surpreendendo o banho de lavadeiras, almoçou
carnes almiscaradas num restaurante da estrada e olhou no mapa o seu destino no
mesmo instante em que nuvens escuras erguiam-se no horizonte como sinais de
fumaça. Uma parte do caminho havia sido percorrida sem que ele soubesse ser por
instinto ou por memória involuntária. Um aperto no coração, um impulso em pisar
fundo impedia-lhe qualquer reflexão e a evidencia de não se encontrar nele o
motivo dessa viagem pairava inofensiva como um abismo aos pés de um sonâmbulo.
O acampamento estava a um dia de viagem, a distância no tempo não contava. Os
dias vividos ao lado de Nadir estendiam-se pela região como o tecido de um balão
insuflado no ar quente, no fogo de um reencontro iminente, abrindo no seu rosto
o sorriso, o frescor, a mesma disposição para a novidade e para o espanto e
fazendo das paginas do seu diário de vinte anos atrás um apontamento recente:
“Cheguei cedo na taba dos Mongoiós após longa
viagem, miséria por todos os lados, velhas, crianças com vermes, os homens
praticamente dizimados. Perguntei por alguém que conhecesse bastante a região e
que pudesse nos ajudar na implantação das linhas elétricas continentais.
Indicaram-me uma índia que morava afastada em uma casa de barro às margens do Rio
Jequitinhonha, rio de águas turvas cortando vales que a hidrelétrica iria
inundar. Ela era de uma linhagem de antigos curandeiros e se afastara aos primeiros
sinais de sincretismo e dos padres missionários. Uma forte ventania soprava a
terra batida em volta da casa, as aves piavam anunciando o eclipse solar
previsto no calendário. Chamei-a pelo nome e vi o seu vulto por trás da poeira,
do vento recolhido que girava em frente da porta. Grãos de terra caíram nos
meus olhos ao mesmo tempo que alguém me segurava pelas costas dizendo:
_
Entre, aqui chove em rápidas pancadas, você pode ficar encharcado. _ aquela voz
civilizada na clareira deserta, ao invés de me acalmar, deixou-me arrepiado.
Tentei abrir os olhos, o vento havia passado. Entre lágrimas vi um rosto moreno
pardo, manchas coloridas de um vestido, cabelos e colares. Logo estávamos
sentados numa sala escura onde ela soprou algo em meu rosto e os olhos
melhoraram. Quis abrir a janela e ver o ambiente, mas havia coisas se movendo
na parede e recuei muito assustado.
_
Soube que você procura um guia _ ela tranquilizou-me com sua voz que trinava
como pássaros em revoada.
_
Sim, disseram-me ser você a pessoa mais indicada...
_
Ah! Sim! Conheço cada arvore deste lugar, todas as trilhas e todos os ribeiros,
são neles que deposito as feridas do meu povo para serem levadas ao grande rio
de águas salgadas _ eu estava cansado da viagem, o pó soprado no meu rosto
havia me atordoado. Sentindo um medo inexplicável, as manchas na parede
parecendo se mover, perguntei:
_
Feridas? Como assim?
_
Como essas que vejo em você _ falava alisando minha pele aparentemente saudável
_ penduro elas na parede, curo-as e as devolvo aos seus verdadeiros donos, os
espíritos da água...
O
pavor congelava minhas pernas, a imagem de reflexos dourados deslizando nas
águas do rio em noites escuras nascia das suas mãos sobre minha pele arrepiada,
levantei-me mantendo o controle e lhe disse:
_
Devo ter vindo no lugar errado _ eu estava tonto e um zumbido forte deformava
minhas palavras.
_
Não acredita! _ gritou _ então olhe _ correndo as janelas e abrindo a luz
branca do céu nublado. Chagas imensas pulsavam nas paredes da sala, algumas tão
fundas que minavam sangue quando contraídas e ao expandir permitiam ver a
vegetação do lado de fora da casa. Tentei correr e penso que ela me segurava em
partes desconhecidas do meu corpo, partes que se rasgaram no esforço que fiz
pela liberdade. Corri pelas trilhas estreitas ferindo-me nos galhos. O dia
escurecido pelo eclipse do sol silenciava os ruídos da floresta em falso
crepúsculo com trevas no centro e luz dourada no horizonte que desorientava os
ritmos da vida animal. Olhei para trás de um local distante e elevado e ouvi o
riso de Nadir ressoar na fria atmosfera deformada pelos ventos rasteiros.
Avistei a porta da sua casa onde ela acenava-me com algo brilhante e vermelho,
vermelho dourado, cor dos dragões chineses. Parecia ser um lenço, um tecido
estranhamente animado repleto de cenas doloridas do meu passado traumático.
Entretanto eu ria, como se, liberto de tais dores, pudesse ver como eu tinha
sido ridículo em padecer daquela maneira. Ela também ria como se possuísse o segredo
das minhas mágoas. Minha alma seria aquela coisa vermelha em suas mãos? Oh!
Insensatez!...”
Miro não precisava desses apontamentos, os
elementos da natureza despertando sensações e repetindo acontecimentos com
maior nitidez, como se sua viagem fosse no espaço outrora percorrido, mas
também no tempo, e indiscerníveis, no caso. Guiava com extremo cuidado e agora
que a vida ressuscitava seu antigo corpo de zumbi ele sentia intensamente os
movimentos teleguiados lhe arrastando nas curvas fechadas, a brisa fresca e
asfixiante ao por a cabeça fora do carro, soltando gritos de alegria e
entusiasmo.
A tarde congelada sob nuvens densas
emanava um perfume de flores úmidas e terra molhada. O capim ondulava verdes
escuros e claros, um tapete onde vacas brancas mugiam de tédio, o ronco do
motor abafando a despedida das aves, a festa dos grilos, o coaxar dos sapos.
Havia também sob os tremores bruscos do milharal, nas plantações dos colonos,
ratazanas selvagens em movimentos que indicavam guerras mortais entre bandos
diferentes, guinchos estridentes e olhos amarelos como a lua nas noites
pálidas. Elas eram motivos de alegria para as velhas índias que proibidas de
usar os frutos da lavoura sabiam preparar variados pratos com a carne desses
ratos. Miro presenciou duas vezes _ nos apontamentos trata-se de sonhos _ Nadir
atraindo as ratazanas com o sopro de uma flauta de taquara pelos barrancos fora
das cercas e crianças nuas massacrando com bordões os animais peludos nos
bancos de areia aprisionados. Ele não tinha coragem de comê-los, mas observava
as crianças e idosos da tribo se banquetear com os roedores de banhado.
Lembrava-se de quando, cansado de medir e demarcar as terras, sentava-se com
Nadir após o jantar em uma dessas clareiras onde os ratos foram massacrados e,
sob o céu estrelado, improvisar com o seu teodolito um pequeno telescópio e lhe
explicar detalhadamente a natureza dos astros, ela com o corpo quente nele
recostado. Falava-lhe dos meteoros como fenômenos naturais, dos buracos negros
e dos pulsares fazendo-a segurar com medo e depois largar o braço frio do engenheiro
ao seu lado, ficando muito assustada em saber que Júpiter poderia explodir e
surgir no céu num sol noturno de fogo espiralado.
A noite perseguia o seu carro,
escoando sombras nas depressões do vale, nos desfiladeiros, arrastando nos seus
giros pela terra os pesadelos, os fantasmas que ficariam presos nas redes
elétricas que ele havia implantado. Fantasmas que correriam pelos fios fazendo
oscilar as lâmpadas dos vilarejos. Um pássaro eletrocutado que jazia pendurado
nos fios de alta-voltagem, a luz baça do crepúsculo, o solo das guitarras no
toca-fitas do carro, Eram muitos os detalhes interagindo com sua memória
teleguiada e lhe fazendo viajer por estradas vicinais, algumas sequer constando
nos mapas.
Estava sobre um planalto extenso e
largo, uma chapada que se estendia até uma fenda no horizonte onde, preso entre
as nuvens da tempestade, brilhava um crepúsculo escarlate. O ambiente estava
mudado, os lagos da represa formara nas margens pântanos e charcos. Árvores
afogadas e despidas de folhas, galhos nus e queimados de sol contorciam por
todo o vale um tecido de ramagens negras como o destino e entre elas, com os
faróis ligados, Miro procurava o que restou da velha estrada. Media o intervalo
cada vez menor entre os relâmpagos e as trovoadas, concluindo que uma
tempestade se aproximava. Um trepidar agudo e um vago luminar, as labaredas em
um arbusto afastado indicavam a queda de um raio e ele teve medo trancando-se
no automóvel, seguro sob as rodas de borracha. O temor lhe parecia ser inato,
trancando-se no quarto, no banheiro, sempre que ouvia um trovão na mais tensa
das idades. Agora o pânico crescia com os golpes da chuva no vidro, com o
reflexo dos relâmpagos no capô azul do carro. O fogo nas árvores que não se
apagava com a chuva confundia os seus cálculos e no meio deles, com fortes
dores no córtex cerebral, a lava quente do passado aflorava. O vento soprava as
folhas do seu diário onde ele havia narrado:
“_ Um curto-circuito e o perigo de incêndios
na floresta conduziram nossos diálogos para a natureza da eletricidade. Nadir
havia adquirido um hábito perigoso: encostava as partes do seu corpo nos fios
desencapados levando choques de baixa voltagem; dizia que isto eliminava o
torpor e lhe trazia mais vitalidade. Em silêncio concordei, pois entendia que o
espírito em todas as suas expressões e faculdades era um efeito das forças
cinéticas, da dinâmica elétrica nos feixes pelo corpo espalhados (lembrei-me
dos epilépticos e das tempestades cerebrais) também sabia que a função primária
dos seres vivos, a atividade das membranas da qual todas as outras derivavam,
se explicava por diferenças de potencial entre cargas elétricas e ela parecia
possuir este saber quando dizia que a vida era uma longa noite de trovoadas e
tempestades. Estava abraçado a ela e ouvia sua lenda de um tempo em que os
homens e mulheres viviam ligados um ao outro, cada um com a sua metade e o
castigo de Tupã recolhendo através de um raio a energia que unia as duas
partes. Agora os homens, querendo viver outra vez essa plenitude e essa felicidade
perdidas, dizia ela, deveria imitar os animais, o homem, um cão e a mulher, uma
cadela e se atracarem formando momentaneamente o casal original. Quis lhe explicar
que essa divisão de sexo ocorreu no fundo dos oceanos, quando a vida ainda era
um sonho e um projeto, e que esse raio, se houvesse, teria vindo do centro da
terra e não de um Deus celestial mas ela segurava então os meus bagos apertando
se eu tentasse fugir e, rosnando em meu pescoço, exigia de mim as volúpias do
sexo animal. Eu obedeci com as orelhas murchas, em silencio como se tivesse um
osso atravessado na boca que as palavras o fizesse cair... ah! O amor!
Depois dessa intimidade entre nós,
ela mudou de hábitos, pelos meus temores espero, ainda que os novos fossem mais
singulares. Agora para se eletrificar ela havia criado um dispositivo composto
por uma peneira de aço usada em construções onde um fio ligado às malhas tinha
a outra ponta colada em seu braço bronzeado. Com isto ela passava horas
perseguindo os ventos como se adivinhasse suas rotas turbulentas e opunha
contra eles a tela da peneira cuja rede deixava passar a massa de ar e retinha,
segundo ela, os demônios que viajavam no vento, impulsos dinâmicos deslocando a
mínima brisa e imantando os fios de aço conforme as descargas que senti quando
lhe acompanhava correndo ao seu lado de mãos dadas... ah! O tempo!...”
Ninguém
ouviria os gritos de Miro em convulsões no banco do carro. As mãos crispavam o
volante, suas vísceras pulsavam. A colonização estabelecida e as terras
demarcadas confinaram o resto da tribo nas reservas administradas e somente os
ratos se multiplicavam. Sobre um rochedo próximo, um bando deles amontoavam-se
molhados pela chuva que lavava o cheiro das linhagens diferentes, deslizando
uns sobre os outros e mostrando os dentes aos faróis do carro. Miro ouvia os
trovões como meteoros que desabavam e as chamas pelo vidro embaçado eram
nebulosas e supernovas estouradas. A febre e o delírio espumavam-lhe pela boca,
a extática do temporal deixando seus cabelos eriçados. Uma ratazana havia se
introduzido no banco da frente, encolhida e trêmula no canto extremo do tapete
e, quando Miro caiu deitado por um espasmo, ela não teve outra opção senão
saltar sobre seu rosto, o susto e os dentes finos devolvendo a Miro o sentido
da realidade. Abandonou o local e começou a andar pelo charco evitando os
ventos que lhe soprava no rosto fortes rajadas e tropeçando nas pedras que
pareciam levitar. Velhos e distintos hábitos agitaram seus movimentos como asas
de um pássaro renascido das cinzas e ele hesitava... os sons mais diversos lhe
serviam de guia, um filete respingando nos galhos, o murmúrio das nascentes,
tudo em seu ouvido soando desarticulado. Os velhos Mongoiós conseguiam provocar
um efeito semelhante entoando cânticos cada vez mais acelerados, inalando um pó
verde e repetindo os gritos em grande velocidade, acelerando até o naufrágio
das palavras deixarem ouvir as vozes de um mundo soterrado. Miro reviu no seu
transe o homem pardo e de rosto impreciso, músculos tensos sobre um esqueleto
bem desenhado que lhe ordenara na época explicar o segredo dos raios e ele
repetiu sob a chuva o que havia sonhado em voz alta:
_ Existem três tipos bem definidos: o
relâmpago que são descargas entre as nuvens; os raios alinhados que caem das
nuvens à terra e um tipo raro, o corisco, que sobe do solo em direção ao céu;
ele possui a estupenda voltagem da terra e é atraído pelas nuvens secas da
estratosfera, os nimbos e cúmulos na fronteira do espaço; partem dos lugares
elevados e de boa condutividade, colinas, nascentes de rios, para-raios nos
edifícios instalados...
_ Eles podem subir pelo nosso corpo?
Pela carne? Perguntava Nadir segurando seus braços que tremiam sob efeito das
ervas inaladas.
_ Não. Pode acontecer alguém
encontrar-se muito próximo de um desses pontos ou em contato direto e dizermos
então que ela foi atingida por um raio, um acontecimento acidental... para que
um corpo vivo conduza tal descarga suas partículas deveriam estar muito
aceleradas, suas fibras alinhadas, o organismo seco e aquecido para além dos
limites da vitalidade...
_ Ah! Isto não é impossível _ dizia
ela e de cabeça para baixo Miro via o seu rosto oval e iluminado sob o fundo
estrelado da via láctea.
O vento soprava suas roupas
encharcadas de frio e ele talvez desse voltas no mesmo lugar pois na terra de
barro molhado as pegadas duplicavam pés descalços ao lado dos sapatos. As
velhas da tribo falavam de um povo de sonâmbulos que se guiavam pelos sonhos
que a noite arrastava nas campinas e nos prados, mas nada havia naquela
escuridão além dos troncos de braços longos e das gotas cadentes que a sua
lanterna focava. Seu braço movia-se no ritmo de antigas aprendizagens. Uma
tarde, com o sol inclinado e a noite subindo pelos bosques e ravinas escarpadas,
Nadir o levou às ruínas de um antigo cemitério onde as cavernas e os mausoléus
de pedra amontoados projetavam mantos de sombra sobre a paisagem. Com um pedaço
de espelho ele deveria vasculhar, usando o reflexo da luz do sol, as zonas
escuras enquanto ela entoava cânticos e dançava; com isso ele poderia iluminar
o espírito dos antigos antepassados que viviam nas trevas e que os guiariam nos
caminhos da vida complicada. Ele efetuou os movimentos similares às contorções
do corpo dela, o rosto já marcado pelas rugas do pavor e quando o quadro de luz
ampliada recortou sobre as lajes as partes do corpo de um grupo de múmias que
dançavam e o rosto com dentes afiados de um velho emitindo guinchos abafados,
os movimentos congelaram-se nos seus braços, seu cérebro explodiu em confusas
descargas e ele caiu desmaiado. Agora, repetindo sob a chuva as linhas das
antigas danças com o facho da lanterna, uma outra tribo fora-lhe revelada.
Presos na lama os ratos fugiam vagarosos e Miro sentindo no calor da febre
crescente a proximidade da índia seguiu a trilha dos roedores, o cérebro em
tempestade lavando-lhe o horror e a náusea pelos roedores que se abrigavam
dentro de suas calças. Sentia saudades das tardes aquecidas, da ilusão de
eternidade que o sol vagaroso lhe dava, da alegria nos braços quentes de Nadir.
A atração que ela passou a sentir pelos astros, pelos turbilhões cósmicos que o
telescópio descortinava fizera-lhe andar mais leve pela terra, ressentir com
menor intensidade o ódio pelos segmentos da tribo colonizada onde ele esperava
encontrá-la gritando seu nome, ferindo-se nos acidentes do caminho e ouvindo em
resposta os ecos indiferentes como lágrimas e chuva no rosto molhado; sobre as
notas mais baixas da gama sonora, sobre o último acorde dos seus gritos na
noite escura e aquosa, sua memória insana se projetava:
_ Hoje pretendo lhe mostrar como
planejo fazer a viagem _ Nadir lhe dissera um dia enquanto bebiam um tônico chá
de ervas sagradas. Ansioso em saber como ela pretendia partir para o infinito
ele se levantou de um salto seguindo a índia que se enveredava no mato escuro e
molhado levando no braço uma gaiola coberta enquanto lhe explicava:
_ Retirei esta ratazana lá do velho paiol e a criei separada do seu
bando; elas só se reconhecem pelo cheiro e esta aqui é uma estrangeira agora,
quando eu a soltar no paiol e o instinto lhe fizer procurar o seu bando haverá
uma guerra dos diabos, espero que o tratamento que lhe dei traga bons
resultados _ Nadir olhava o horizonte que as vezes se iluminava e com o relógio
Miro, que não entendia o que isso tinha a ver com a viagem, calculava o
intervalo entre os relâmpagos e os trovoes prevendo a tempestade que se
aproximava.
A voz soava no lado direito na
direção do velho paiol agora em ruínas por onde, em busca de abrigo, os ratos
estavam lhe guiando. Ele estava enfim nas trilhas da reserva, mas o desconforto
de estar perdido não passava. Hesitando entre o impulso que o arrastava e o
desejo de esperar que o tempo melhorasse empurrou a porta do paiol e no guincho
que fez a dobradiça enferrujada ele relembrou da ratazana enfurecida degolando
com dentes comprimidos seus antigos familiares que ousaram atacá-la, Nadir
aprisionando-a outra vez na gaiola, o arrastando pelo braço a gritar:
_ Rápido, rápido.
Um vulto, um vento passa perto dele
na direção em que costumavam seguir correndo de mãos dadas sob a chuva que os
uniam no barro molhado. Miro desiste de esperar e parte como um sonâmbulo pelo
mesmo caminho que levava ao acampamento onde iria encontrá-la e na sua frente
projetada a memória o guiava. Nadir outrora continuando a explicar perto de uma
colina ritualmente preparada:
_ A ratazana agora está no ponto,
eliminou todos que quiseram impedir a presença do seu cheiro diferente; ela
está embriagada de liberdade, olhe, suas fibras não estarão alinhadas? Suas
partículas aceleradas? _ mostrando a Miro o animal sujo de sangue, arrepiado e
emitindo guinchos alucinados. A gaiola de aço é depositada no alto da colina
sobre linhas e arabescos escavados.
_ Como será essa viagem? _ Miro perguntava
sem cessar.
_ Olhe bem para o rio, para as poças
d’água _ a doce índia explicava-lhe _ a luz, os reflexos, são fagulhas,
elementos da própria água. Evaporando estas fagulhas separam-se formando o sol,
o fogo, as galáxias. Um corpo seco pelo espírito aquecido serve como veiculo;
você não conhece histórias de homens consumidos pelas chamas, carregados pelas
labaredas no grau máximo da liberdade?
Os dois, abraçados, conversavam
deitados sobre a grama molhada e observando a colina quando um campo elétrico
lento e azul envolveu os aros da gaiola e dela, com estrondo e fagulhas, um
raio cabeludo do tipo corisco partiu rasgando as nuvens pesadas e o céu irado,
um cheiro queimado chegando antes do trovão que começa chiando como ratos
alegres e desaba com o som de mil portas arrombadas.
Miro já se encontra perto do acampamento e
conversa sozinho, em voz alta:
_ Não havia nenhum sinal do animal na
gaiola, tenho certeza. O que teria acontecido depois, antes de acordar naquele
quarto de hospital?... Branco... tudo branco... a ficha branca sobre o leito
escrito ‘intoxicado’... ah! A vida!...
Um clarão de luz na colina que ele
havia cruzado ressuscita-lhe uma imagem esquecida, nadir arrastando-lhe do
local, dizendo-lhe com carinho:
_ Você irá comigo, querido, lhe
avisarei quando chegar a hora. Venha rápido sim? Não perca tempo procurando
significados.
Seus passos aumentam e logo ele está
correndo desesperado, pesado de chuva, o rosto lívido sob os clarões da
tempestade. Pela primeira vez seus pensamentos se alinharam na superfície de
uma única imagem: o espírito de Nadir, sua eletricidade apanhada pelo corisco,
atravessando as nuvens e os estratos e partindo como um jato de luz para os
confins das galáxias! Um relâmpago desenhou nas nuvens a figura da fênix, o
pássaro de fogo renascendo das cinzas e voando para a eternidade! De longe ele
avista as luzes do acampamento e antes que o alcance um menino da aldeia, vindo
em direção contrária, lhe segura pelo braço:
_ ajuda, moço, ajuda! Todos estão
mortos, eletrocutados.
_ Quem? Quem está morto? _ Perguntava
Miro soterrado na estrada enlameada.
_ Os guardas da reserva, os brancos e
os índios que viviam com o povo das cidades; só os nativos da floresta
escaparam. Queriam expulsar a curandeira e ela pôs todos eles sob uma rede de
fios camuflados dizendo ser uma espécie de despedida, depois, ligando o
transformador de alta voltagem...
_ Onde? Onde ela está agora?
_ Ela está lá no barraco de zinco,
trancada e gritando alto não permitindo ninguém entrar, gritando por um homem
que nós não conhecemos, um homem que ela vivia a esperar...
Miro quase sem fôlegos se detém a poucos
metros do barracão de ferragens intensamente iluminado. Um raio monstruoso
desaba no local vibrando como pratos de orquestra em longos segundos as paredes
do barraco logo chamuscadas.
_ NADIR! _ grita Miro derrubando com
os pés a porta incandescente. Ninguém... Nenhum corpo naquele pequeno espaço,
nem ao lado, nem atrás. Soando como infinitas portas sendo fechadas, o trovão
ecoava pelo vale. Parecia uma voz feminina a dizer:
_ TARDE DEMAIS! TARDE DEMAIS!
P.S. Miro hoje reivindica o original
das fotos, feitas por um satélite, de um feixe luminoso partindo da terra na
noite de 05/08/84 (latitude e longitude não reveladas) e divulgadas pelos
jornais; suspeitam ser ele o vulto que aparece durante os temporais no que
restou do acampamento, gritando para o alto e repudiando, com suas loucas esperanças,
a lenda de que um raio não cai duas vezes no mesmo lugar...
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