segunda-feira, 10 de maio de 2021

SOMOS TODOS HANNIBAIS!



Vamos imaginar um candidato a policial sendo submetido a um psico-teste. O psicólogo informa que irá lhe contar uma história e ele, o candidato, no final terá que responder a uma pergunta sobre o que lhe fora narrado:

_ Uma jovem - começa o psicólogo - perde uma tia querida e vai ao velório desta. Lá, entre parentes, conhecidos e estranhos, ela vê um rapaz e sente por ele uma súbita e carnal atração. O sentimento é recíproco. Ele a olha fixamente, tenta se aproximar dela, mas parece não ter eles nenhum amigo em comum que pudesse lhes apresentar. O flerte dura todo o velório. Durante o féretro eles continuam se olhando, caminham próximos um do outro, até seguram nas alças do caixão, mostrando que são relativamente íntimos da falecida. Pouco antes das últimas pás de terra, ele desaparece. Em casa, ela se descobre perdidamente apaixonada pelo estranho e faz de tudo para saber quem ele é. Telefona para amigas, parentes, descreve o tipo físico, mas, estranhamente, ninguém parece se lembrar de ter visto tal rapaz. Os dias passam, ela não consegue parar de pensar no estranho desejo que sentiu e o sente redivivo sempre que se recorda. Seu ânimo esmorece, ela adoece dos males de amor cujos sintomas nos são assaz conhecidos. Uma noite de lua cheia, transtornada, aparentemente fora de si, ela comete um crime brutal enforcando outra tia idosa que lhe parecia saber do estranho rapaz, mas se recusando a lhe contar quem era! A questão é - o psicólogo encara fixamente o candidato a policial - haveria alguma razão para a moça tomar uma atitude tão extremada? Se sim, qual seria essa absurda razão?
Após muito pensar, o rapaz não encontra um coerente motivo que justificasse a atitude da moça doente de amor para enforcar a pobre tia idosa. Entrega a folha de respostas vazia e vai pra casa bastante deprimido. Mal sabe ele que, justamente por não ter encontrado uma resposta plausível, ele foi aprovado no psico-teste, pois o motivo da moça ter matado a tia - resposta dada por muitos candidatos, e provavelmente por alguns leitores desse texto - seria o desejo febril e incontrolado de que houvesse um novo velório na família e que, assim, ela pudesse voltar a ver o rapaz cuja recordação fazia sua alma arder de desejos! Segundo o psicólogo que aplicou o teste, pensar dessa maneira, chegar a essa conclusão, seria pensar como a psicopata pensou (evidentemente que entre pensar e agir há uma distância imensa, mas também um terreno comum onde medra essa distância: as sombrias colinas da loucura!) seria ter a predisposição para agir de modo parecido em alguma outra e semelhante situação. O cargo de policial deveria ser preservado de tais pendores e entregue para aqueles que jamais, sequer, viesse a cogitar qualquer que fosse um motivo razoável para se matar alguém. Agora vamos imaginar o pobre candidato voltando deprimido para casa. Toda a sua vida fora dedicada à realização desse sonho. As imagens de seus pais lhe incentivando e das noites sem dormir com as imaginárias aventuras românticas de um policial torturam-lhe a alma. Todo o seu ser deseja ardentemente aquele cargo heroico da Polícia Federal! Digamos, sem que talvez ele soubesse de modo objetivo, que esse sonho era justamente a solução que ele havia introjetado para a sua irremediável timidez e abstinência sexual. O cargo pretendido, o poder a ele conferido, representava a realização de todas as suas fantasias sexuais. Era como policial que ele iria enfim deixar de ser donzelo! Com dificuldades tremendas, ele consegue, por fim, conciliar o sono. Sonha que está fazendo o psicoteste com o mesmo psicólogo do dia anterior. De repente, no sonho, ele se ergue da cadeira e, com um gesto firme e resoluto, estrangula até matar o pobre psicólogo. Acorda em pânico, principalmente pelo prazer imenso que sentiu ao estrangular, no sonho, a sua vítima! Vejam voces como são distintos, mas também muito semelhantes, esses dois tipos: a psicopata do exemplo na prova aplicada e o aspirante à policial. Este, um sujeito aparentemente normal, desejava algo intensamente: comer muitas mulheres vestido de um impecável e lustroso policial Federal. Seguindo o esquema freudiano, ao dormir o seu desejo aflora, mas a interdição moral do superego sonolento força seu inconsciente a transmutar o conteúdo latente do seu desejo no conteúdo manifesto do assassinato do psicólogo. Aquela outra, uma psicopata que, perdendo as rédeas do superego e de suas interdições, é capaz de matar uma tia idosa para de novo se encontrar com o objeto do seu desejo. Nossa questão, nesse dramalhão mexicano, é justamente o prazer que o rapaz sentiu no sonho ao matar o psicólogo. As fantasias do nosso inconsciente, ao serem forçadas a se disfarçar, findam por realizar-se e proporcionam um tremendo prazer de contrabando, não por terem sido liberadas, mas, precisamente por terem sido liberadas sob disfarce, burlando a lei e arrastando consigo, no modo disfarçado, a sua negação, negação essa que faz às vezes do desejo do outro no palco do imaginário, e que caracteriza a sua mais profunda condição. Esta mesma negação do desejo que, no ato sexual animalizado se caracteriza como orgasmo ou amor-descarga (o prazer como fim do torturante desejo), no sonho do rapaz se dá no âmbito de uma cena realizada e negada ao mesmo tempo. Daí o prazer do assassinato, no sonho, como um mais-prazer, uma “jouissance”, ou - para simplificar esses estúpidos hermetismos heiddegerianos de Lacan (outra tese que apresento depois: a mania heiddegeriana de inventar neologismo e conceitos para coisas simples influenciando o psicanalista francês) – uma VOLÚPIA, volúpia essa que é próprio da cultura, do homem e que nenhum animal a possui, por nascer da negatividade legal, da fantasia imiscuída e realizada de modo pervertido (insisto no termo tão caro ao filósofo carioca Cláudio Ulpiano: DE CONTRABANDO) Essa volúpia também se aplica a outra personagem dessa fábula: a moça psicopata. Podemos dizer que ela não assassinou a tia com o coração partido de dor e remorsos, mas que, ao contrário, todo o prazer prometido pelo eventual reencontro com o rapaz lhe fora antecipado nesse ato. Um mais-gozar, uma volúpia imensa que, muito provavelmente lhe fará até evitar o incerto e romantizado encontro com o homem misterioso para se tornar uma serial-killer, assassinando doravante dezenas de velhinhas idosas em busca de repetir, e repetindo, o prazer original liberado pela transgressão da Lei. Para estupor de muitos, posso dizer que esse prazer da psicopata, por ser de natureza voluptuosa - e sendo a volúpia algo exclusivo do espírito humano - é um prazer propriamente espiritual, o gozo espiritualizado no âmbito da cultura e de sua infernal dialética! Não por acaso o cinema e a literatura nos apresenta os seriais-killers como pessoas finas e requintadas, bem falantes e espirituosas, como o inesquecível Hannibal Lecters! Na sua forma mais branda, nos sonhos do aspirante a policial, a volúpia pode e deve ser permitida, mas nunca podemos esquecer que é na forma animalizada da nossa sexualidade que se encontra a verdadeira saúde, que romper com as interdições do superego na vida real é loucura e que o prazer derivado dessas transgressões é criminoso e desgovernado. Digo isso, para me ater à tradição de ter, toda fábula, por mais grotesca que seja, um arremate em formas de predicação moral.


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