Vamos imaginar um candidato a policial sendo
submetido a um psico-teste. O psicólogo informa que irá lhe contar uma história
e ele, o candidato, no final terá que responder a uma pergunta sobre o que lhe
fora narrado:
_ Uma jovem - começa o psicólogo - perde uma tia querida e vai
ao velório desta. Lá, entre parentes, conhecidos e estranhos, ela vê um rapaz e
sente por ele uma súbita e carnal atração. O sentimento é recíproco. Ele a olha
fixamente, tenta se aproximar dela, mas parece não ter eles nenhum amigo em
comum que pudesse lhes apresentar. O flerte dura todo o velório. Durante o
féretro eles continuam se olhando, caminham próximos um do outro, até seguram
nas alças do caixão, mostrando que são relativamente íntimos da falecida. Pouco
antes das últimas pás de terra, ele desaparece. Em casa, ela se descobre
perdidamente apaixonada pelo estranho e faz de tudo para saber quem ele é. Telefona
para amigas, parentes, descreve o tipo físico, mas, estranhamente, ninguém
parece se lembrar de ter visto tal rapaz. Os dias passam, ela não consegue
parar de pensar no estranho desejo que sentiu e o sente redivivo sempre que se
recorda. Seu ânimo esmorece, ela adoece dos males de amor cujos sintomas nos
são assaz conhecidos. Uma noite de lua cheia, transtornada, aparentemente fora
de si, ela comete um crime brutal enforcando outra tia idosa que lhe parecia
saber do estranho rapaz, mas se recusando a lhe contar quem era! A questão é -
o psicólogo encara fixamente o candidato a policial - haveria alguma razão para
a moça tomar uma atitude tão extremada? Se sim, qual seria essa absurda razão?
Após muito pensar, o rapaz não encontra um
coerente motivo que justificasse a atitude da moça doente de amor para enforcar
a pobre tia idosa. Entrega a folha de respostas vazia e vai pra casa bastante
deprimido. Mal sabe ele que, justamente por não ter encontrado uma resposta
plausível, ele foi aprovado no psico-teste, pois o motivo da moça ter matado a
tia - resposta dada por muitos candidatos, e provavelmente por alguns leitores
desse texto - seria o desejo febril e incontrolado de que houvesse um novo
velório na família e que, assim, ela pudesse voltar a ver o rapaz cuja
recordação fazia sua alma arder de desejos! Segundo o psicólogo que aplicou o
teste, pensar dessa maneira, chegar a essa conclusão, seria pensar como a
psicopata pensou (evidentemente que entre pensar e agir há uma distância
imensa, mas também um terreno comum onde medra essa distância: as sombrias
colinas da loucura!) seria ter a predisposição para agir de modo parecido em
alguma outra e semelhante situação. O cargo de policial deveria ser preservado
de tais pendores e entregue para aqueles que jamais, sequer, viesse a cogitar
qualquer que fosse um motivo razoável para se matar alguém. Agora vamos
imaginar o pobre candidato voltando deprimido para casa. Toda a sua vida fora
dedicada à realização desse sonho. As imagens de seus pais lhe incentivando e
das noites sem dormir com as imaginárias aventuras românticas de um policial
torturam-lhe a alma. Todo o seu ser deseja ardentemente aquele cargo heroico da
Polícia Federal! Digamos, sem que talvez ele soubesse de modo objetivo, que
esse sonho era justamente a solução que ele havia introjetado para a sua
irremediável timidez e abstinência sexual. O cargo pretendido, o poder a ele
conferido, representava a realização de todas as suas fantasias sexuais. Era
como policial que ele iria enfim deixar de ser donzelo! Com dificuldades
tremendas, ele consegue, por fim, conciliar o sono. Sonha que está fazendo o
psicoteste com o mesmo psicólogo do dia anterior. De repente, no sonho, ele se
ergue da cadeira e, com um gesto firme e resoluto, estrangula até matar o pobre
psicólogo. Acorda em pânico, principalmente pelo prazer imenso que sentiu ao
estrangular, no sonho, a sua vítima! Vejam voces como são distintos, mas também
muito semelhantes, esses dois tipos: a psicopata do exemplo na prova aplicada e o aspirante à policial.
Este, um sujeito aparentemente normal, desejava algo intensamente: comer muitas
mulheres vestido de um impecável e lustroso policial Federal. Seguindo o
esquema freudiano, ao dormir o seu desejo aflora, mas a interdição moral do
superego sonolento força seu inconsciente a transmutar o conteúdo latente do
seu desejo no conteúdo manifesto do assassinato do psicólogo. Aquela outra, uma
psicopata que, perdendo as rédeas do superego e de suas interdições, é capaz de
matar uma tia idosa para de novo se encontrar com o objeto do seu desejo. Nossa
questão, nesse dramalhão mexicano, é justamente o prazer que o rapaz sentiu no
sonho ao matar o psicólogo. As fantasias do nosso inconsciente, ao serem
forçadas a se disfarçar, findam por realizar-se e proporcionam um tremendo
prazer de contrabando, não por terem sido liberadas, mas, precisamente por
terem sido liberadas sob disfarce, burlando a lei e arrastando consigo, no modo
disfarçado, a sua negação, negação essa que faz às vezes do desejo do outro no
palco do imaginário, e que caracteriza a sua mais profunda condição. Esta mesma
negação do desejo que, no ato sexual animalizado se caracteriza como orgasmo ou
amor-descarga (o prazer como fim do torturante desejo), no sonho do rapaz se dá
no âmbito de uma cena realizada e negada ao mesmo tempo. Daí o prazer do
assassinato, no sonho, como um mais-prazer, uma “jouissance”, ou - para
simplificar esses estúpidos hermetismos heiddegerianos de Lacan (outra tese que
apresento depois: a mania heiddegeriana de inventar neologismo e conceitos para
coisas simples influenciando o psicanalista francês) – uma VOLÚPIA, volúpia
essa que é próprio da cultura, do homem e que nenhum animal a possui, por
nascer da negatividade legal, da fantasia imiscuída e realizada de modo
pervertido (insisto no termo tão caro ao filósofo carioca Cláudio Ulpiano: DE
CONTRABANDO) Essa volúpia também se aplica a outra personagem dessa fábula: a
moça psicopata. Podemos dizer que ela não assassinou a tia com o coração
partido de dor e remorsos, mas que, ao contrário, todo o prazer prometido pelo
eventual reencontro com o rapaz lhe fora antecipado nesse ato. Um mais-gozar,
uma volúpia imensa que, muito provavelmente lhe fará até evitar o incerto e
romantizado encontro com o homem misterioso para se tornar uma serial-killer,
assassinando doravante dezenas de velhinhas idosas em busca de repetir, e
repetindo, o prazer original liberado pela transgressão da Lei. Para estupor de
muitos, posso dizer que esse prazer da psicopata, por ser de natureza
voluptuosa - e sendo a volúpia algo exclusivo do espírito humano - é um prazer
propriamente espiritual, o gozo espiritualizado no âmbito da cultura e de sua
infernal dialética! Não por acaso o cinema e a literatura nos apresenta os
seriais-killers como pessoas finas e requintadas, bem falantes e espirituosas,
como o inesquecível Hannibal Lecters! Na sua forma mais branda, nos sonhos do
aspirante a policial, a volúpia pode e deve ser permitida, mas nunca podemos
esquecer que é na forma animalizada da nossa sexualidade que se encontra a
verdadeira saúde, que romper com as interdições do superego na vida real é
loucura e que o prazer derivado dessas transgressões é criminoso e
desgovernado. Digo isso, para me ater à tradição de ter, toda fábula, por mais
grotesca que seja, um arremate em formas de predicação moral.
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