Conta a Odisseia que, retornando da Guerra de Troia, com sua esposa resgatada das unhas do playboy Páris, após uma década de refregas na planície da Anatólia, o rei Menelau, perdido entre ilhas sem fim, é aconselhado a capturar o ser mitológico Proteu, em uma caverna na praia e forçá-lo a revelar o caminho de volta para casa. Proteu é um tritão, masculino de sereia, embora as sereias daquela época fossem representadas como mulheres com corpos de aves marinhas (os iconógrafos nunca entenderam porque a representação delas mudou para mulheres com corpo de peixe. Em outra história contarei o porquê!) Além de conhecer todos os caminhos do mar, o tritão possuía também o poder de se metamorfosear em qualquer ser vivo que quisesse. Mesmo sabendo disso, Menelau entrou resoluto na caverna, quando baixa era a maré, e interpelou o filho de Netuno com a ninfa Péleas, a mesma mãe de Aquiles. Diante da esperada indiferença ao seu pedido (como irmão materno do orgulhoso Aquiles, era de se esperar) Menelau lançou-se sobre o monstro e começou a estrangular seu pescoço escamoso de guelras salientes. Começou então uma luta medonha e fantasmagórica. Para se libertar do intruso, Proteu se metamorfoseou em pantera, em um grifo, em bode das montanhas, delfim, serpente escorregadia, foca, lagostim gigante.. Em vão. Menelau não o larga e lhe vence pelo cansaço (dizem ter sido assim que ele possuiu Helena de Troia, sua digníssima!). O que a Odisseia não conta é que Ulisses também andou perdido por estas bandas e recebeu dos deuses a mesmíssima orientação: capturar Proteu de sete cabeças (Platão chamava os sofistas por este nome, pois vivia tentando enquadrá-los em suas armadilhas dialéticas e eles escorregavam!) e forçá-lo a revelar o caminho dos mares até a sua Ítaca natal! Ulisses prontamente adentrou a gruta na maré baixa e exigiu do tritão fabuloso a chave dos mares! Diante da esperada negativa, começou a luta feroz, porém com um desfecho bem diferente da primeira, quando fora forçado a revelar o caminho de volta para Menelau. No auge da justa, quase cansado de se metamorfosear em quase todo o repertório conhecido, com Ulisses grudado em suas carnes feito mordida de cágado, Proteu teve uma insidiosa ideia: transformou-se no próprio Uisses! O astuto guerreiro grego, por alguns segundos, ficou maravilhado e boquiaberto ao ver-se abraçado com o seu próprio eu, como se pudesse adentrar em um espelho e agarrar o que ali dentro habitava! Foi o átimo de segundo necessário para que Proteu, agarrando uma limosa e rotunda pedra d’água, lhe desferisse um violento e mortal golpe na fronte, tingindo de vermelho a água rasa que ondulava refletindo o poente como um vidro líquido. Tal crime arrancou um grito de dor da deusa Atenái, protetora de Ulisses e, como castigo para tão infame crime, retirou de Proteu o dom de se metamorfosear, deixando-o para sempre com a aparência do filho de Laertes! Para sempre é força de expressão, pois a deusa também lhe retirara a imortalidade ao lhe desprover da metamorfose, visto ser isto que é verdadeiramente eterno: a mudança! Proteu andou durante dias, desnorteado, pelas praias da sua ilha até ser encontrado pelos marinheiros de Ulisses que muito se regozijaram ao encontrar o seu líder julgado morto nas grutas do monstro! Proteu nada disse e voltou para o navio com seus marinheiros em profundo silêncio. Seus companheiros de odisseia deduziram que a perda de memória fora uma sequela da luta triunfal com Tritão, mas como este agora, em Ulisses transmutado, era capaz de indicar o rumo da navegação, grande era a alegria supondo ter ele vencido a peleja e extraído o segredo dos mares sob vara! A essa altura, Proteu já tinha um plano, em tudo astucioso como o lendário guerreiro em que havia definitivamente se transformado. Quando assumiu a forma de Ulisses, o encantamento fora apenas superficial, um eidolos, nada mais possuindo do guerreiro senão as façanhas na guerra de Tróia que as ninfas costumavam contar na areia cristalina da sua ilha aonde vinham repousar. Agora que iria ter uma vida curta de simples mortal e nada sabendo sobre a vida íntima e pessoal do novo ser que se tornara, era imprescindível adquirir tal memória, para gozar de uma existência simulada ou ter que passar o resto de seus breves dias como um desmiolado, pois seria certamente sacrificado se os marinheiros ao redor descobrissem sua secreta identidade original. Passava o dia inteiro na proa olhando as águas procelosas espumar na quilha e tentando inutilmente recuperar seus dons mágicos, transformar-se em um golfinho, uma enguia, um polvo espumando tinta e se perdendo nas águas profundas de seu infinito lar! Foi em um destes momentos que lhe veio a inspiração de conduzir o barco até o penhasco das sereias. Suas parentas não seriam capazes de reconhecê-lo, mas justamente, por tomá-lo pelo legendário guerreiro, iriam, como de praxe, cantar a música embriagante que leva os homens que a escuta ao delírio, pois esta música hipnótica nada mais é do que toda a vida pregressa daquele que a ouve cantada em versos comoventes e cadenciados capazes de reviver cenas esquecidas e dar sentido e beleza ao passado perdido, embelezando a existência e glorificando o protagonista que sente ânsia em se atirar ao mar, nadar para perto delas e passar a eternidade ouvindo na música da memória a redenção de sua alma! A esperança de Proteu era ouvir delas não apenas toda a verdade e os detalhes da vida de Ulisses como também os sentimentos e afetos que iria lhe constituir como humano, permitindo-lhe viver de corpo e alma a vida daquele que ele havia matado e superficialmente se transformado. Para que seus marinheiros não sucumbissem ao fascínio de tal experiência, ordenou que usassem cera nos ouvidos e que fosse ele amarrado no mastro da nau com ouvidos bem abertos. De tudo que Proteu ouviu das sereias no penhasco da Fólcida, nada o arrebatou mais do que o seu amor fiel à esposa Penélope! Seus momentos juntos e apaixonados, as juras de amor eterno, o perfume de suas melenas que, em uma espécie de bruxuleante sinestesia, o canto das sereias era capaz de reviver em seu cérebro arrebatado, o prazer vivido com ela sob a cama esculpida por Ulisses no tronco de um único e gigantesco carvalho serrado... Proteu saiu desta experiência totalmente transformado - agora com o download completo da alma da sua vítima - e completamente apaixonado, ansioso para voltar aos braços da sua amada! O resto é história, ou lenda! De posse de uma nova identidade espiritual e psicológica, Ulisses volta para casa e vive todas as aventuras magistralmente descritas pelo poeta cego sem que ninguém desconfiasse de outro se tratar – dizem que até mesmo a deusa Atenas se enganou e julgou ter sido um sonho o episódio do assassinato, e tomou Proteu como seu protegido de outrora o ajudando a enganar os moradores e os pretendentes de Penélope no seu palácio encrustados. Ao lado de sua amada, cercado de glórias que suas façanhas como Ulisses em Troia proporcionavam, em dimensões cada dia mais ampliadas pelos aedos e viajantes, Proteu viveu muitos anos em estado de felicidade profunda ao lado de sua amada Penélope até que seu dia final raiou sobre o mar! Morreu no leito de carvalho como um rei adorado pelos servos que choravam do lado de fora do quarto! Momentos antes de exalar seu último suspiro ao lado da esposa de cabelos prateados, resolveu contar para ela toda a verdade e Penélope ouviu com gravidade, julgando estar ele delirando com o passamento da hora fatal, ou tendo um sonho acordado, mas não teve coragem de lhe contestar e ouviu tudo em silêncio compenetrado. Assim que a alma de Ulisses – que as sereias lhe presenteara em forma de mavioso cântico e que ele devolvia agora em arremedos de uma confissão envelhecida e já sem empolgação nenhuma (como esse relato meu se comparado com a obra magistral de Homero) - o encantamento se desfez e seu corpo rapidamente foi se transformando no tritão de outrora: água salgada encharcando os lençóis de linho branco, escamas prateadas e vitrificadas por toda a pele, pernas fundidas em uma cauda estertorante de um imenso peixe, guelras se abrindo ao longo do pescoço, boca se alongando com fileiras de dentes pontiagudos, olhos mortos de peixe morto sem pestanas, um cheiro entorpecente de pralinas podres por todo o quarto se evolando... Dizem que Penélope enlouqueceu ao presenciar essa metamorfose reversa e os servos a acolhera quando ela saiu do quarto em gritos de dor e de loucura, julgando se tratar apenas da eterna dor que sentem aqueles que perdem seus entes adorados para a morte, ela que resistiu durante dez anos aos pretendentes de seu leito, ter sido por um outro, monstruoso e sobrenatural, enganada!
NOVOS APONTAMENTOS SOBRE ULISSES:
Voltando para casa, após dez anos de guerra na planície de Tróia, Ulisses se aproxima dos rochedos onde as sereias costumam pentear os cabelos, dourar a tez e enfeitiçar os marinheiros com o canto sublime e enlouquecedor. Ulisses, o astuto, se amarra no mastro da nau e espera ansioso pelo espetáculo, sem correr o risco de, arrebatado pela música, se jogar no abismo das águas. Na escuma murmurante do mar sobre as pedras, algumas sereias já surgiam e erguiam histéricas seus longos e fabulosos pescoços, surpresas com o intrépido marinheiro. Ulisses, segundo ouvira dos velhos aedos, esperava que elas cantassem o segredo da vida, a origem e a razão de todas as coisas, a música que, feito uma trilha sonora da criação, revelasse nos seus versos, a sabedoria profunda do oceano ubérrimo. Seus marinheiros, com cera nos ouvidos, remavam impassíveis, evitando fitar nos olhos os monstros gigantescos a debater suas caudas escamosas sobre os lajedos como se marcassem com elas o ritmo embriagante dos solfejos... Elas cantaram e Ulisses, ao ouvir, sentiu uma vontade enlouquecida de dançar, pois era na dança inspirada em tal música que estava toda a verdade e o segredo que as sereias ensinavam. Ulisses descobriu que os marinheiros enfeitiçados se atiravam nas águas não por um impulso suicida, mas sim por uma vontade embriagadora de sair dançando e de descobrir, na coreografia, a escrita da criação divina! Mas ele, o esperto Ulisses, estava fortemente amarrado ao mastro. Não pode dançar nem pode entender, assim, o sentido da melodia maravilhosa. Foi em vão. Continuou sendo um grego muito ardiloso, mas sem nenhuma inspiração!
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