Menino arquetípico para tudo de ruim e que não presta, fui além
do simples desmontar brinquedos e desparafusar peças. Futucava armários,
revirava sótãos e olhava as carçolas por baixo das saias das professoras. Foi
assim que descobri algo que muito me inquietou. Quebrei um pequeno boneco de
ouro que enfeitava uma corrente de alguém, não me recordo quem, e, dentro do
boneco de ouro havia um outro, menor, óbvio, feito de retinto carvão. Somente
anos depois é que, fortuitamente, li algo na Enciclopédia Barsa - que devorei
inteira entre os anos de 1974 a 1977 - e que me solucionou o enigma já então
esquecido do boneco de carvão dentro do boneco de ouro. Tratava-se de uma
técnica muito difundida entre os ourives do mundo inteiro para confeccionar
suas peças. Esculpiam o objeto desejado em carvão poroso e macio; em seguida,
cobriam o molde com cera de abelha e nessa cera esculpiam os detalhes finais:
as feições do rosto, os cabelos, as dobras da roupas e os sapatos. Finalmente,
após a cera estar endurecida, revestiam toda a peça com argila, deixando apenas
um pequeno orifício no alto. Enquanto secava a argila, o ourives derretia o
ouro que iria usar. Com o ouro liquefeito e quente, ia-se derramando bem
devagar o ouro pelo orifício da peça revestida em argila seca. O ouro derretia
a cera que, lentamente ia sendo absorvida pelo carvão poroso enquanto
fortalecia a argila, pois esta, quanto mais quente, mais sólida fica. Após
algum tempo, toda a cera era absorvida e, no seu lugar, ficava a camada de ouro
que, esfriando lentamente, ia tomando a forma exata da cera esculpida enquanto
esta encharcava o carvão. Então, era só esperar o ouro solidificar e, com um
peteleco (Os franceses usam a palavra "chiquenaude" {Petit coup donné
en pliant le doigt contre le pouce et en le détendant}) faziam a argila
estourar, revelando dentro o perfeito e dourado objeto esculpido. Fiquei tão
impressionado que dormi pensando nisso. Acabei sonhando - ou inventei pois
tenho apenas as notas no meu estiolado diário, nada mais - um sonho onde um
velho alquimista me explicava em rude alemão da Baviera:
_ Esse boneco que voce quebrou para ver o que havia dentro, é
símbolo cabalístico do Homem. Nascemos com uma alma escura e porosa, da qual
nada sabemos. Em torno dela, temos o nosso corpo feito uma cera onde sentimos a
vida e onde ficam registrado todas as marcas, cicatrizes e memórias do que
vivemos; por fim, construímos para nos proteger uma dura couraça de argila, o
nosso ego ou nossa imagem social. O ouro que vertemos demoradamente dentro de
nossa cabeça é o conhecimento e o entendimento das coisas que vamos adquirindo
lentamente. Ele derrete as marcas, as mágoas e cicatrizes com o calor do
entendimento. A alma então vai absorvendo e retendo o que aprendemos,
tornando-se preenchida e encarnada, finalmente, após tanto endurecermos o
casulo para nos proteger do mundo enquanto o processo de transmutação está
acontecendo, um dia esse casulo de barro se esboroa e desaba: EIS ENTÃO O NOVO
HOMEM RENASCIDO, TRANSMUTADO, DE OURO E ALMA ENCARNADA CONSTITUÍDO! Acordei com
a luz dourada do sol de verão nas cortinas do meu quarto. Me lembrei de que
Pitágoras, para provar que era descendente da antiga raça de ouro citada por
Hesíodo, mostrava a todos uma faixa da sua coxa feita de ouro. Olhei-me de cabo
a rabo. A poeira do quarto, tingida de amarelo pela luz do sol, bailava no ar e
parecia se desprender dos pelos do meu braço. Por um segundo pensei que o
processo alquímico de transmutação houvera começado!
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