A moldura de uma obra quase nunca pode ser
considerada arte também, por mais caprichosos e criativos que sejam os
marceneiros (o suprematista russo Kazimir Malevich explorou essa questão em
1918 com a sua famosa tela Quadrado Negro Sobre Fundo Branco, mas ficou por aí
mesmo e não vingou essa abordagem). Talvez possamos encontrar arte verdadeira
na moldura de um quadro se ampliarmos esta para o entorno, a entourage onde a tela foi pintada ou se encontra exposta. Recentemente presenciei um caso
destes e gostaria de deixá-lo aqui registrado. Todos nós conhecemos o famoso
romance de Oscar Wilde, O Retrato de Dorian Gray, em que um dandy inglês faz um
pacto com forças ocultas de maneira que, seu auto retrato pintado a óleo e
guardado no sótão de sua casa comece a envelhecer, com as marcas do tempo e da
decadência moral reveladas nas linhas do rosto, enquanto o retratado permanece
indefinidamente jovem e imaculado, na vida imoral e dissoluta da alta sociedade
vitoriana. Recentemente, visitando com um amigo a casa do artista Allan de
Kard, em Vitória da Conquista, ele nos levou a um quarto no andar de cima,
sempre fechado e com declinada luminosidade, onde se encontra emoldurados e perfilados uma dúzia de retratos
– a maioria dos ali retratados são pessoas do seu círculo de amizades e parentela.
As imagens foram originariamente distorcidas e é impossível, para quem leu o
romance, não imaginar que aqueles rostos deformados não sejam avatares de vidas
pecaminosas ou, no mínimo, tortuosas, distantes da retidão, vividas no
dia-a-dia pelos parentes retratados (claro está se tratar de minha exclusiva leitura
particular e subjetiva). Há de conferir
visitando a casa do nosso caríssimo conterrâneo e pedindo para acessar o quarto
dos quadros malassombrados! Recomendo! Para finalizar este esboço
despretensioso, mantendo o mesmo foco no artista citado e na reflexão
contextual de suas obras, publico como ilustração as fotos de uma de suas
esculturas, um gari feito em metal. Vamos primeiro ao contexto: anos atrás,
estudante na UERJ, presenciei uma insólita experiência de um mestrando cuja
tese, na cátedra de psicologia, versava sobre anomias e percepção social. Para
ilustrar e demonstrar sua suposição de que nossa percepção social é condicionada
pelos valores investidos em cada tipo de profissão, este estudante registrava
uma brilhante experiência usando como laboratório seus próprios colegas de
disciplina. Minutos antes de terminar a aula, ele saía da sala, ia até o
banheiro, vestia um uniforme de gari e se dirigia para o pátio da cantina onde
ficavam todos os seus amigos matando o tempo do intervalo entre uma e outra
aula. Ali ele se imiscuía entre todos, varrendo o piso e pedindo licença para
passar a vassoura. Absolutamente ninguém reconhecia a sua voz ou se interessava
em olhar para o seu rosto. Eram amigos de intenso convívio, uma ou outra
ex-namorada, a própria namorada atual, parceiros de caronas e aventuras
extraclasse... De nada servia isto para lhe identificar. O uniforme falava mais alto e interditava o interesse em reconhecer
alguém investido de tão simplória e desprezível profissão. Era preciso chamar
as pessoas pelo nome para que elas o reconhecesse! Voltando ao escultor, sem
nunca ter ouvido esta história minha ou semelhantes, ele criou esta escultura
onde um gari é visto na sua integridade se tomado de perfil, mas, à medida que
vamos contornando em busca de um foco frontal, vemos ser ele composto de lâminas
intermitentes e vazadas onde a sua identidade se esvai, dissolvendo o frontispício no
anonimato e na imperceptibilidade. Tanto no primeiro caso dos rostos deformados, como no ilusionismo do segundo, vemos os efeitos de uma distorção originária, um ponto-cego ou um estrabismo como golpes de vista de quem tem uma inconsciente intimidade com a Arte.
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