Sou de um tempo antigo, onde toda criança do interior que
prestasse, possuía algum tipo de dom paranormal, ou mutante. Quem não o fosse,
tratava de inventar, pois, dominados pela sub-contracultura folhetinesca que
nos chegava do mundo civilizado, mergulhados em revistas esotéricas de nome
Planeta e Realidade, Seriados sobrenaturais como doutor WHO, Seres do Amanhã,
com a Ficção Cientifica fervendo em nossas mentes, quem fosse normal era visto
como um pária e desprezado por todos os colegiais. A grande maioria era mesmo
de mentirosos, inventando canhestras e bizarras experiências
brega-transcendentais! Mas alguns o eram de fato e vou me limitar a descrever
três casos entre mais de uma dezena que conheço. Começo pelo meu próprio, mais
singelo e acreditável. Com cinco anos de idade, acho que até os sete anos, eu
possuía o dom de ver pessoas nas ruas, nas feiras, ou visitantes de nossa casa
e, mesmo nunca as tendo visto antes, ser capaz de adivinhar o nome delas!
Gritava para minha babá ou que estivesse comigo: “VEJAM! LÁ VAI DONA GALDINA!
BOM DIA, SEU SIFRÔNIO! COMO VAI, DONA LUBIANA?” Todos eles, confirmando a
veracidade de seus nomes ao responderem aos meus cumprimentos, ficavam
admirados e curiosos em saber como eu os havia conhecidos! A coisa foi ganhando
tanta proporção que rapidamente percebi não ser isso um dom natural, um
conhecimento acessível a todos. Tão logo meus familiares reagiram com espanto e
temor, eu travei. Nunca mais desde então fui capaz de olhar para o rosto de
alguém e adivinhar-lhe o nome. Mutação muito mais escabrosa teve um garoto de
minha cidade chamado Eustáquio, O Batráquio, como o apelidamos. Era filho de um
ferreiro chamado Coló, que possuía sua forja na rua principal da cidade,
improvisada na sala da sua casa, onde passava as tardes atiçando o fogo com um
fole de couro, derretendo metais e forjando os apetrechos de montaria,
estribos, fivelas e forjando na bigorna a rude cutelaria de arar a terra que
depois vendia na feira. Recordo de que, sempre que eu não tinha dinheiro para
ir ao cinema, costumava ficar sentado na janela de sua casa olhando as faíscas
das labaredas e ouvindo o retinir vigoroso de sua bigorna, como um pálido
substituto dos filmes cobiçados e proibidos pela penúria da infância. Seu
filho, Eustáquio, talvez por não suportar o fogo dentro de casa, o pai
autoritário e seu ambiente infernal, encontrou na água um elemento mais liso
para fugir e reinar. Pulava o muro do quintal, atravessava algumas quadras e
chegava ao rio Verruga, onde mergulhava e se banhava por todas as ociosas
tardes. Ajudava as lavadeiras a estender as roupas, desenganchava o anzol dos
pescadores e, a cada ano de vida que passava, mais fundo penetrava nas águas do
outrora vigoroso rio, até atingir o rio Pardo, muitos metros mais adiante e lá
passar temporadas cada vez maiores sem voltar para casa. Quando voltava, era
sempre mais e mais esquisito: coberto de limo até o pescoço, olhos vitrificados
e quase sem cílios ou sobranceira, uma fina pele nascendo entre os dedos e o
dentes crescendo serrilhados (tudo isso eu via, assustado, quando ele passava
perto da forja gritando de dor com as fagulhas que pulavam das labaredas e
queimavam sua pele escamosa ou por algum tabefe que seu rude pai lhe aplicava
como castigo por aquelas escapadas prolongadas. Um dia Eustáquio desapareceu
para sempre e foi muito pouco o esforço da família e do delegado Nozinho Gusmão
para lhe encontrar. Sua anomalia e a superstição da mentalidade rural então
dominante, muito cedo o estigmatizou como um ser diabólico e muitos até se
sentiram aliviados com o seu desaparecimento. Quem o encontrou, quase uma
década depois, vivendo há cerca de 50 quilômetros de distância de Itambé, já
nos limites urbanos da vizinha Itapetinga, dentro das locas do rio que para lá
seguia em direção ao mar, foi o vaqueiro Domício quem, procurando por uma rês
desgarrada, encontrou sobre um lajedo ao luar, o monstro em forma de peixe
deitado a gemer com um cari, peixe escuro e espinhoso, engasgado na garganta.
Entre esconjuros e persignações, Domício teve tempo de apontar sua carabina e
sentar uma rolimã no espinhaço de Eustáquio que morreu cuspindo fora o peixe
atravessado, golfando sangue e chamando por sua mãe cujo nome esqueço agora. Na
autópsia improvisada que foi feito no corpo dele, em um sala escura do Hospital
Municipal de Itambé, por um médico recém-chegado da capital, descobriu-se uma
singela anomalia, um alargamento anormal, congênito ou desenvolvido por uso
reiterado, da trompa que liga, nos mamíferos, o ouvido médio à faringe e que
ajuda a manter o equilíbrio da pressão do ar entre os dois lados da membrana
auditiva. Essa tuba auditiva, em Eustáquio, tinha a largura de um dedo
indicador e era cheio de finíssimas pelancas onde a água borbulhava e deixava
preso o oxigênio, permitindo a Eustáquio respirar por ela, engolindo água e a
expelindo pelos ouvidos, retendo o oxigênio diluído na água. Parece que, graças
ao relato minucioso que fez o médico aos seus renomados professores, este órgão
do corpo foi batizado de Trompa de Eustáquio, conforme podemos agora pesquisar
nos manuais de fisiologia e no Google. Ainda hoje me acontece de ter pesadelos
com Eustáquio nadando pelas águas escuras e leito pedregoso do outrora caudaloso
rio Pardo, ejetando água pelos ouvidos, mastigando peixes vivos encontrados na
sua trajetória e procurando por algum anel precioso no fundo das águas, feito o
antológico Golum ou Smigol de O Senhor Dos Anéis, um hobbit tropical e
nordestino que bem poderia ter encontrado nas páginas preciosas de Tolkien uma
inspiração, se fosse esta uma daquelas histórias de mutação inventadas pelas
crianças da minha infância; infelizmente, é tudo verdade!
O terceiro e último mutante deste meu relato, “lest
but don’t least” foi Waldiney, o algoz da minha infância, e de muitas outras
crianças. Todos o temiam. Um dia escreverei sobre seu reinado de terror entre
os alunos do Ginásio Gilberto Viana, em Itambé-Ba. Hoje me contentarei com uma
nota sobre uma esquisitice sua que causa espécie. Desde a tenra infância,
Waldiney desenvolveu o hábito de elaborar papas de comida, geralmente mel,
coalhada ou manteiga, sempre alimentos pastosos misturados com farinha. Com
essa papa, escondido dos pais, ele preenchia o orifício monstruoso que era o
seu umbigo, cobria com um largo esparadrapo e dormia com aquilo. De manhã não
havia absolutamente nada no orifício. O umbigo absorvia toda a papa como se o
porco dorminhoco fosse outra vez um feto. Dizia ele que isso o impedia de
acordar com fome ou ter pesadelos que os roncos estomacais produzem no cérebro,
como ruídos assustadores que ouvimos sair de uma caverna e os atribuímos a
monstros imaginários. Certo é que esse hábito inveterado, com o passar dos
anos, foi lhe desenvolvendo o órgão, criando-lhe no meio da barriga uma boca
sinistra que ele disfarçava suspendendo bastante as calças. Feia de se
imaginar, horrível de ver, a boca só faltava falar e, mesmo sem dentes nenhum -
soube depois que parti para estudar na capital –, era capaz de mascar um
chiclete, cuspir e assoprar. Um fenômeno! Waldiney cresceu e finalmente assumiu
sua aberração, indo trabalhar no Grande Circo Internacional, em seguida em
circos maiores em tournées pela América Latina, Central e Caribe. Sua tia me
conta que ele era capaz de engolir duas bananas caturras pelo umbigo diante de
uma platéia extasiada! Contou-me também que ele se aposentou precocemente após
um mal que ela disse ser “nó nas tripas” sem, contudo, saber o nome correto.
Nessa mesma noite, sonhei com Waldiney. Ele estava trabalhando em uma boate
parisiense. Era prostituto e fazia programa para homossexuais. Dançava algo
parecido com a dança do ventre e depois, com sua lúbrica e horripilante boca,
fazia sexo umbilical com seus clientes. Ao vê-lo fazer isso, saquei meu
revólver – incrível como minha arma, nos sonhos, sempre tem um cano maior do
que uma mangueira de bomba de gasolina....- e dei-lhe um tiro dentro de suas
pervertidas tripas! Não pela sua prática homossexual, pois que já havia me
acostumado com sua aberração, mas pelas maldades que ele havia perpetrado
contra as meninas internas no colégio de freiras, fato que contarei depois. Nem
o tiro, nem o remorso subseqüente me fizeram despertar e calhei-me a dormir até
meio-dia desse domingo ensolarado!
3 comentários :
Texto maravilhoso!
História interessante.vale a pena ler!
COMPARTIlHEM QUE EU TIRO SEUS ESPARTILHOS!
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