sábado, 12 de maio de 2018

EUSTÁQUIO, O BATRÁQUIO!



      
Sou de um tempo antigo, onde toda criança do interior que prestasse, possuía algum tipo de dom paranormal, ou mutante. Quem não o fosse, tratava de inventar, pois, dominados pela sub-contracultura folhetinesca que nos chegava do mundo civilizado, mergulhados em revistas esotéricas de nome Planeta e Realidade, Seriados sobrenaturais como doutor WHO, Seres do Amanhã, com a Ficção Cientifica fervendo em nossas mentes, quem fosse normal era visto como um pária e desprezado por todos os colegiais. A grande maioria era mesmo de mentirosos, inventando canhestras e bizarras experiências brega-transcendentais! Mas alguns o eram de fato e vou me limitar a descrever três casos entre mais de uma dezena que conheço. Começo pelo meu próprio, mais singelo e acreditável. Com cinco anos de idade, acho que até os sete anos, eu possuía o dom de ver pessoas nas ruas, nas feiras, ou visitantes de nossa casa e, mesmo nunca as tendo visto antes, ser capaz de adivinhar o nome delas! Gritava para minha babá ou que estivesse comigo: “VEJAM! LÁ VAI DONA GALDINA! BOM DIA, SEU SIFRÔNIO! COMO VAI, DONA LUBIANA?” Todos eles, confirmando a veracidade de seus nomes ao responderem aos meus cumprimentos, ficavam admirados e curiosos em saber como eu os havia conhecidos! A coisa foi ganhando tanta proporção que rapidamente percebi não ser isso um dom natural, um conhecimento acessível a todos. Tão logo meus familiares reagiram com espanto e temor, eu travei. Nunca mais desde então fui capaz de olhar para o rosto de alguém e adivinhar-lhe o nome. Mutação muito mais escabrosa teve um garoto de minha cidade chamado Eustáquio, O Batráquio, como o apelidamos. Era filho de um ferreiro chamado Coló, que possuía sua forja na rua principal da cidade, improvisada na sala da sua casa, onde passava as tardes atiçando o fogo com um fole de couro, derretendo metais e forjando os apetrechos de montaria, estribos, fivelas e forjando na bigorna a rude cutelaria de arar a terra que depois vendia na feira. Recordo de que, sempre que eu não tinha dinheiro para ir ao cinema, costumava ficar sentado na janela de sua casa olhando as faíscas das labaredas e ouvindo o retinir vigoroso de sua bigorna, como um pálido substituto dos filmes cobiçados e proibidos pela penúria da infância. Seu filho, Eustáquio, talvez por não suportar o fogo dentro de casa, o pai autoritário e seu ambiente infernal, encontrou na água um elemento mais liso para fugir e reinar. Pulava o muro do quintal, atravessava algumas quadras e chegava ao rio Verruga, onde mergulhava e se banhava por todas as ociosas tardes. Ajudava as lavadeiras a estender as roupas, desenganchava o anzol dos pescadores e, a cada ano de vida que passava, mais fundo penetrava nas águas do outrora vigoroso rio, até atingir o rio Pardo, muitos metros mais adiante e lá passar temporadas cada vez maiores sem voltar para casa. Quando voltava, era sempre mais e mais esquisito: coberto de limo até o pescoço, olhos vitrificados e quase sem cílios ou sobranceira, uma fina pele nascendo entre os dedos e o dentes crescendo serrilhados (tudo isso eu via, assustado, quando ele passava perto da forja gritando de dor com as fagulhas que pulavam das labaredas e queimavam sua pele escamosa ou por algum tabefe que seu rude pai lhe aplicava como castigo por aquelas escapadas prolongadas. Um dia Eustáquio desapareceu para sempre e foi muito pouco o esforço da família e do delegado Nozinho Gusmão para lhe encontrar. Sua anomalia e a superstição da mentalidade rural então dominante, muito cedo o estigmatizou como um ser diabólico e muitos até se sentiram aliviados com o seu desaparecimento. Quem o encontrou, quase uma década depois, vivendo há cerca de 50 quilômetros de distância de Itambé, já nos limites urbanos da vizinha Itapetinga, dentro das locas do rio que para lá seguia em direção ao mar, foi o vaqueiro Domício quem, procurando por uma rês desgarrada, encontrou sobre um lajedo ao luar, o monstro em forma de peixe deitado a gemer com um cari, peixe escuro e espinhoso, engasgado na garganta. Entre esconjuros e persignações, Domício teve tempo de apontar sua carabina e sentar uma rolimã no espinhaço de Eustáquio que morreu cuspindo fora o peixe atravessado, golfando sangue e chamando por sua mãe cujo nome esqueço agora. Na autópsia improvisada que foi feito no corpo dele, em um sala escura do Hospital Municipal de Itambé, por um médico recém-chegado da capital, descobriu-se uma singela anomalia, um alargamento anormal, congênito ou desenvolvido por uso reiterado, da trompa que liga, nos mamíferos, o ouvido médio à faringe e que ajuda a manter o equilíbrio da pressão do ar entre os dois lados da membrana auditiva. Essa tuba auditiva, em Eustáquio, tinha a largura de um dedo indicador e era cheio de finíssimas pelancas onde a água borbulhava e deixava preso o oxigênio, permitindo a Eustáquio respirar por ela, engolindo água e a expelindo pelos ouvidos, retendo o oxigênio diluído na água. Parece que, graças ao relato minucioso que fez o médico aos seus renomados professores, este órgão do corpo foi batizado de Trompa de Eustáquio, conforme podemos agora pesquisar nos manuais de fisiologia e no Google. Ainda hoje me acontece de ter pesadelos com Eustáquio nadando pelas águas escuras e leito pedregoso do outrora caudaloso rio Pardo, ejetando água pelos ouvidos, mastigando peixes vivos encontrados na sua trajetória e procurando por algum anel precioso no fundo das águas, feito o antológico Golum ou Smigol de O Senhor Dos Anéis, um hobbit tropical e nordestino que bem poderia ter encontrado nas páginas preciosas de Tolkien uma inspiração, se fosse esta uma daquelas histórias de mutação inventadas pelas crianças da minha infância; infelizmente, é tudo verdade! 
   O terceiro e último mutante deste meu relato, “lest but don’t least” foi Waldiney, o algoz da minha infância, e de muitas outras crianças. Todos o temiam. Um dia escreverei sobre seu reinado de terror entre os alunos do Ginásio Gilberto Viana, em Itambé-Ba. Hoje me contentarei com uma nota sobre uma esquisitice sua que causa espécie. Desde a tenra infância, Waldiney desenvolveu o hábito de elaborar papas de comida, geralmente mel, coalhada ou manteiga, sempre alimentos pastosos misturados com farinha. Com essa papa, escondido dos pais, ele preenchia o orifício monstruoso que era o seu umbigo, cobria com um largo esparadrapo e dormia com aquilo. De manhã não havia absolutamente nada no orifício. O umbigo absorvia toda a papa como se o porco dorminhoco fosse outra vez um feto. Dizia ele que isso o impedia de acordar com fome ou ter pesadelos que os roncos estomacais produzem no cérebro, como ruídos assustadores que ouvimos sair de uma caverna e os atribuímos a monstros imaginários. Certo é que esse hábito inveterado, com o passar dos anos, foi lhe desenvolvendo o órgão, criando-lhe no meio da barriga uma boca sinistra que ele disfarçava suspendendo bastante as calças. Feia de se imaginar, horrível de ver, a boca só faltava falar e, mesmo sem dentes nenhum - soube depois que parti para estudar na capital –, era capaz de mascar um chiclete, cuspir e assoprar. Um fenômeno! Waldiney cresceu e finalmente assumiu sua aberração, indo trabalhar no Grande Circo Internacional, em seguida em circos maiores em tournées pela América Latina, Central e Caribe. Sua tia me conta que ele era capaz de engolir duas bananas caturras pelo umbigo diante de uma platéia extasiada! Contou-me também que ele se aposentou precocemente após um mal que ela disse ser “nó nas tripas” sem, contudo, saber o nome correto. Nessa mesma noite, sonhei com Waldiney. Ele estava trabalhando em uma boate parisiense. Era prostituto e fazia programa para homossexuais. Dançava algo parecido com a dança do ventre e depois, com sua lúbrica e horripilante boca, fazia sexo umbilical com seus clientes. Ao vê-lo fazer isso, saquei meu revólver – incrível como minha arma, nos sonhos, sempre tem um cano maior do que uma mangueira de bomba de gasolina....- e dei-lhe um tiro dentro de suas pervertidas tripas! Não pela sua prática homossexual, pois que já havia me acostumado com sua aberração, mas pelas maldades que ele havia perpetrado contra as meninas internas no colégio de freiras, fato que contarei depois. Nem o tiro, nem o remorso subseqüente me fizeram despertar e calhei-me a dormir até meio-dia desse domingo ensolarado!

Share this post

3 comentários :

Unknown disse...

Texto maravilhoso!

Letras Vernáculas disse...

História interessante.vale a pena ler!

Blog do Cassi disse...

COMPARTIlHEM QUE EU TIRO SEUS ESPARTILHOS!