terça-feira, 8 de agosto de 2017

FÁBULAS FECININAS do DUQUE de CASSIS



Aquele inverno estava sendo o mais rigoroso já registrado na floresta. Os lagos e ribeiros congelados, a vegetação soterrada sobre a neve, o céu sombrio a esconder pássaros cinzentos que caiam mortos, rígidos e enregelados pelo frio excruciante.
 Dona Cigarra estava em apuros. Não lhe restava mais uma gota de néctar no velho e frio carvalho onde ela se abrigava, mas a sua ópera estava quase pronta! E estava linda! Um dia a primavera iria voltar e seria a glória quando ela sagraria os brotos novos e viçosos da floresta com a sua música embriagante e inspirada! O jeito é ir pedir algo na casa de dona formiga, pensou. E assim, resoluta, coberta por um roto manto de seda vegetal, se arrastou pela neve alva como a morte, até a porta da rabugenta D. Formiga. Nem precisou falar nada para a Formiga adivinhar o natureza daquela visita em pleno e sepulcral inverno. Todo ano era a mesma coisa. Sem sequer abrir a porta, pela janela mesmo, fora logo despachando a mendicante:
_ O que foi que a minha ilustre vizinha artista fez durante todo o outono, que não armazenou nada para se prevenir?
_ Eu compus e cantei! Compus lindas sinfonias para alegrar a a dura jornada das amigas formigas e de todos os seres da floresta! Você não ouviu?
_Não ouvi nada! Estava muito ocupada forrageando!
_Mas cantei. Não fiz outra coisa por todo o outono!
_ É mesmo - havia uma ponta de inveja na boca de D. Formiga, além de restos de figos secos, nozes e delicioso néctar em potes de cortiça acumulados. - CANTOU? POIS AGORA DANCE! - E dizendo assim fechou a janela na cara de D. Cigarra, arrancado-lhe os generosos e quentes raios de luz que ardia em sua lareira. Com muita fome, sede, frio e sofrimento, ela voltou para casa e teve mais sorte com as aranhas que lhe cederam um vistoso agasalho e pequenos insetos fritos, de cuja delícia ela jamais desconfiara. Terminou enfim a sua porfia musical, justamente quando o equinócio da primavera já esgrimia vitorioso sobre o solstício do inverno. Uma tarde, preparando-se para ir dar o seu show magistral, bateram-lhe à porta! Era nada menos, nada mas, do que D. Formiga, toda embaraçada e em frangalhos!
_ Voce precisa me ajudar, minha amiga artista! A minha filha! Hoje é o baile nupcial e todas as jovens formigas irão voar em torno do grande olmo da floresta para encontrar os seus pares e se acasalar! Mas ela... Coitada! Comeu um pouco além da conta, e está um pouco acima do peso. Não consegue voar. Veja como as asinhas tremulam inutilmente!
Dona Cigarra olhou para baixo e viu, agarrada às patinhas da mãe, uma pequena bola de cera, escorrendo óleo pela boca, e maciça como um requeijão prensado! Seus olhos pareciam saltar das órbitas, seguindo o adejar das pobres asas, mas o corpo não os acompanhava, apaixonado que estava pela lei da gravidade!
_ E como eu poderia ajudar a nossa linda princesinha?
(*detalhe para a ironia da Cigarra).
_ Eu pensei que, talvez, se a amiga cantasse para ela, o seu canto fecundo poderia atrair  um garboso formigão, um noivo forte o bastante para voar tão longe e ainda por cima apaixonado pela Arte! Não seria maravilhoso? Cante para nós, por favor!
D. Cigarra voltou-se para a pequena bola de cera e lhe perguntou:
_ O que foi que a minha princesa fez durante todo o inverno!
_ Eu comi! Comi Grãos! Comi mel! Comi sementes, comi folhas felpudas! Comi! Comi e comi!
_ Comeu? Pois agora CAGUE! 
E bateu a porta na cara das duas! 
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