Sou uma idéia, uma dessas loquazes idéias, e já tagarelava muito antes
de existirem filósofos.
Os primeiros homens a falarem de mim, disseram que eu, enquanto uma idéia, sou algo eterno, ao mesmo tempo em que meus detratores, ao longo dos séculos, disseram que sou uma invenção, um “ser de razão” apenas, e muitos até afirmam que as idéias nem existência psicológica possuem, sendo apenas um nome, um operador lingüístico, uma abstração... Não vou entrar nessa confusão. Certo é que, só muito tarde na história da humanidade, ganhei a atenção dos homens. Antes, para expressar seus pensamentos, eles usavam imagens, símbolos e mitos, feitos sombras que nós, idéias, projetávamos nas suas conversas e nos seus pergaminhos de lã. Éramos fogo, água, terra e ar, éramos Ciclopes e Titãs dobrando as montanhas e abrindo as águas, éramos o Masculino e o Feminino, o Limite e o Ilimitado... Digo nós, mas o primeiro homem a falar de idéias enquanto tal - um sisudo grego de barbas orientais chamado Parmênides - falou de uma idéia apenas, ao afirmar ter visto, arrebatado pela carruagem de uma deusa, a verdadeira e única idéia: o SER. Mandou bem, pra começo de conversa; considerando que na origem tudo é minúsculo e irrisório, o SER é uma grande e poderosa idéia que até hoje os homens não abandonaram (Vai ver algumas idéias sejam eternas mesmas... e tomara que eu seja também!); mas tive que esperar até que um discípulo de Parmênides, um colosso chamado Platão, nascesse para expor ao mundo a verdade sobre nós, quem e quanto somos, onde habitamos e como devem os homens agir para nos conhecer e conosco lidar. Vou lhes falar sobre o nascimento do Platão, aliás, sobre antes do nascimento dele, pois, a um mito de origem (a história em que ele nos inseriu) convém que retribuamos com outro. Vivíamos então, hipostasiadas, em um mundo de conto de fadas, o mundo das idéias, em tudo parecido com essas imagens deslumbrantes que o telescópio Hubble nos descortina no éter sideral. Para cada coisa desse mundo terreno, existe uma idéia correlata no nosso mundo, mais perfeita, mais duradoira, mais real... Por esse mundo ideal, passeiam as almas dos humanos em périplos perfeitos e espiralados; a cada volta ampliando o percurso e contemplando nosso elenco ilimitado, revendo-nos por outros ângulos e em perspectivas diferentes; haurindo nossa perfeição e nossa divindade; aumentando indefinidamente os seus conhecimentos e se exercitando na sabedoria que é memorizar essa gnose e recordar a miração fabulosa no mais profundo destas almas! Ali, no chamado segundo mundo, se perfilam as idéias de triângulos e poliedros, de justiça e de amizade, idéias de máquinas esquisitas e fórmulas matemáticas... Idéias de cada folha de relva ao lado das idéias mais universais como a idéia do Amor e a da Verdade! Os próprios liames de uma idéia com outra sendo uma nova idéia, a lógica, todas as lógicas possíveis, formais, dialéticas e combinatórias como peças de uma intuitiva e coruscante engrenagem... Que pena que, por ser apenas mais uma e das mais discretas destas idéias, não possa descrever com exatidão o mundo fantástico de que sou parte. Não me é permitido co-habitar com todas elas, assim como a idéia de fogo não combina com a de água, a de close com a de horizonte ou a de um círculo com um quadrado. Também há idéias que não se separam como a idéia de montanha e a idéia de um vale, a de pássaro com a de asas, ou a de nobreza e sua irmã, a dignidade... Você mesmo, caro leitor, já esteve por estas bandas, antes de nascer e esquecê-las, pois essa é a lei universal: todas as almas passeiam por esse mundo, tropeçam, caem aqui na terra e esquecem-se do que viu no paraíso da sabedoria.. Mas me adianto... Voltemos ao Platão... Lembro-me como se fosse hoje, da primeira vez que vi sua alma passar perto de mim. As almas são muito parecidas com uma carruagem, possuindo três partes bem definidas: Uma parelha de cavalos, sendo um cavalo branco que responde pelos nobres impulsos da alma, a coragem, a prudência e a temperança; e um cavalo negro, onde se move os impulsos mais indomáveis como a luxúria, a inveja, as torpes paixões que toda alma consigo arrasta. A segunda parte, um cocheiro, a Razão, que, ao mesmo tempo em que governa os cavalos, tenta contemplar as divinas idéias no cosmos estrelado e conhecer a sabedoria sub species eternitates. Sem rodas, um par de etéreas asas se abre nos flancos da carruagem, é o desejo, A terceira parte, que faz a alma flutuar e deslizar em sua jornada em busca do conhecimento. Perdi a conta de quantas carruagens passaram por mim, a maioria sem nunca me perceber, tanto que é o lume das incontáveis idéias de coisas que não existe ainda, de coisas sempiternas e de coisas ainda por existir! O desfecho desse passeio das almas é assaz conhecido, pois ninguém escapa dele: tão logo começa a contemplar a planície das idéias, o cavalo negro da alma começa a se inquietar, pois, fogoso, quer se apropriar das idéias, partir para cima de nós como se fôssemos opiniões vulgares sobre as coisas que podem ser possuídas por qualquer um, como tufos de ervas que um jumento arranca com os dentes e as rumina... Mas somos altaneiras, como os astros que parecem brilhar bem perto, mas na verdade estando a milhões de quilômetros de distância... O cocheiro da alma, a razão, precisa estar o tempo inteiro controlando as rédeas, de olho no seu impulsivo e destemperado cavalo negro; com isso, ele deixa de contemplar muitas idéias e acaba por adquirir sua parcela de sabedoria na exata proporção da qualidade de sua parelha, pois, como disse antes, todo o conhecimento verdadeiro que a alma humana possui é adquirido nesse passeio. O nascimento nada mais sendo do que queda e esquecimento, o pensamento não sendo outra coisa senão uma anamnese e nós, pobres idéias que um dia brilharam na sua alma, nada mais seremos do que as reminiscências desse seu recordar! Perto do fim, após suas cósmicas circunvoluções, a carruagem se aproxima do final, o centro da galáxia espiritual, o coração fulgurante da sabedoria onde brilham as idéias mais nobres e arcanas. A luz se intensifica e o coração dispara. Os cinco gêneros supremos: o Ser, o Mesmo, o Outro, o Movimento e o Repouso, como dimensões coevas, organizam a cintilante descontinuidade, agrupando as idéias em prodigiosas harmonias por onde se evola os vapores da dialética e da linguagem: é quando a alma aprende a falar! Quando ela entende que coisa pode ser conjugada com outra, que idéia não se combina com outra idéia. Nesse meu mundo, ver e ouvir não se distingue e tal noésis é semelhante a uma música, pois será como uma música que nos lembraremos dessa jornada quando estivermos mergulhados na existência terrena, no fluxo do tempo que é a imagem móvel da eternidade. Ali, nos pícaros mais hiperbóricos e alciônicos, podemos ver o Demiurgo, um espécie de pastor das estrelas, regendo com seus braços longos a harmonia das esferas gnoseológicas. Ele contempla a maravilha que é esse meu mundo e, lá em baixo, vê o mundo da matéria louca, do puro devir, o caos abissal onde tudo se mistura e se corrompe, onde tudo é mais e menos, pequeno e grande simultaneamente, onde todos os contrários se fundem e se dilaceram. O disparate, o descompasso, o mau-gosto e o horror da matéria enchem o peito do Demiurgo de piedade e ele então, molda a matéria lá de baixo impondo ao mundo dos humanos os modelos das idéias contempladas, produzindo boas cópias que mimam a magnificência dos nossos palácios úberes de ordem e sinastria. Ele, o Demiurgo, será o modelo, a forma ideal dos políticos, pois estes também, lá embaixo, ambicionam governar os homens e organizar suas vidas, e, como o sentimento que comove o Demiurgo é a compaixão, os verdadeiros políticos serão aqueles que sentirem e agirem movidos pela piedade por seus irmãos desse infortúnio que é viver longe da perfeição. Digo isso por que o Platão conseguiu chegar até esse ponto, viu o Demiurgo agir na primeira manhã do universo e, uma vez lá embaixo, quis imitá-lo, quis ser um político junto ao tirano Dionísio, na Ilha de Siracusa... Muitas vezes ele aqui voltou durante suas oito décadas passadas lá em baixo. Sob o translúcido manto de nuvens e vapores que separa-nos do mundo terreno, se vê freqüentemente infinitas almas, por breves segundos, pairar na fronteira, os olhos tomados de delírios eróticos (pois só Eros tem asas para chegar aqui) tentando nos ver de novo como quem quer morrer de vez para voltar. Isso acontece quando, lá embaixo alguém se encontra com algo de profunda beleza. Sendo alguém muito carnal, sendo muito indomável o cavalo negro da sua alma caída, ele irá se atirar sobre a beleza emprestada daquele corpo - digo emprestada, pois lá embaixo tudo apenas imita as idéias perfeitas daqui do alto - e buscar na comunhão com aquele corpo o gozo dessa visão (os estertores do sexo é bem um exemplo disso, do frenesi em possuir a beleza de um corpo que amamos, mas que não podemos possuir completamente pois o que amamos ali está apenas como um reflexo na água); se, porém, for uma alma temperada, que viu muito quando aqui esteve, esse alguém irá se lembrar da fulgurante idéia da Beleza que um dia contemplou, seu desejo lhe avivará as asas partidas da sua alma e esta alma, por um miserável instante, subirá às franjas do mundo ideal em busca de nós, o verdadeiro objeto do seu desejo. Assim foi que Platão voltou aqui incontáveis vezes para relembrar e nos eternizar em seus memoráveis livros. O porquê dessa idéia de beleza ser a mais propícia a despertar tais reminiscências tem a ver com o desfecho da história de Platão – e de todos vocês, gentis leitores, antes de nascerem – que narro agora. Na apoteose desse cortejo celestial, no ponto mais iluminado e central do nosso mundo, a alma consegue deslumbrar a vastidão profunda desses espaços infinitos de idéias que, só de pensar, nos enche de opressão o peito. Ali ela vê a idéia indescritível da Beleza que outra coisa não é senão o conjunto da mais louca harmonia, o Cosmos, o cosmético da alma que é a sabedoria absoluta. Proporção e ritmo, cadência e equilíbrio, a idéia de beleza é a síntese feliz de todas as idéias da eternidade, o corolário e o arremate de todos os princípios e de todos os fins. Tão grande é o fulgor dessa visão, dessa imediata apresentação do infinito no modo finito da alma; tão resplandecente é a Fácie Toties Universi (para falar como Espinosa – outro que não saía daqui) que a alma é fulminada de luz nesse instante, seus cavalos se empinam, seu cocheiro estertora de entusiasmo e suas asas se partem de tanto desejar. A alma cai no Caos Abissal e nasce, por fim, no corpo de um infeliz, onde não se lembra de mais nada!!! Até chegar a esse clímax, Platão não teve nenhum esforço em contemplar todas as idéias perfiladas ao longo do seu cortejo nupcial. Não que o cavalo negro da sua alma fosse um dócil alazão, muito pelo contrário. Ouçam este episódio na vida dele, narrado por Diógenes Laércio, transcorrido na sua primeira estadia em Siracusa: galopava Platão um vigoroso corcel pela praia quando decidiu subitamente fazer a volta e retornar à estrebaria. Ao saltar do animal e entregá-lo ao capataz, comentou que desistiu de montar assustado que ficara com a luxúria e com a fogosidade do animal! Não teria ele se assustado por ver ali, no impetuoso cavalo, a imagem dos mais secretos instintos da sua alma? Não por amá-lo, mas por me apiedar da pobre humanidade que tanto precisava de um filósofo, decidi ajudá-lo. Apaguei todo o meu brilho, toda a minha luz e, feito um manto de escuridão, cobri os olhos do seu cavalo negro, permitindo assim que, ao longo de todo o seu trajeto, o jovem grego pudesse deslizar sem percalços pelas ágoras da Sabedoria e tudo ver, tudo contemplar. Só o larguei no último instante para que seu cavalo negro pudesse participar da comoção final, do desastre que o lançaria aos panos perfumados da aristocrática mansarda onde lhe houvera estrear. Só lamento que, ao agir assim, Platão nunca pode me contemplar; nem ele, nem nenhum dos seus discípulos, nem ninguém da sua vasta vassalagem filosófica pode saber quem eu sou. Um menino que passou por aqui recentemente, o Richard Dawkins, autor de O Gene Egoísta, viu uma idéia que nos incluía todas em algo que ele chamou de Memos, um correlato aos genes que também só pensam em se replicar, tudo fazendo no espírito humano para passar de uma geração a outra. Imaginem então, sendo a minha mais profunda natureza brilhar, ser conhecida e perpetuada na memória dos homens, o que significa o meu sacrifício para lhes dar a obra do Platão. Um sacrifício que faz de mim a imagem do Crucificado que morre e manda seus profetas ao mundo divulgar seu evangelho filosofal!
Os primeiros homens a falarem de mim, disseram que eu, enquanto uma idéia, sou algo eterno, ao mesmo tempo em que meus detratores, ao longo dos séculos, disseram que sou uma invenção, um “ser de razão” apenas, e muitos até afirmam que as idéias nem existência psicológica possuem, sendo apenas um nome, um operador lingüístico, uma abstração... Não vou entrar nessa confusão. Certo é que, só muito tarde na história da humanidade, ganhei a atenção dos homens. Antes, para expressar seus pensamentos, eles usavam imagens, símbolos e mitos, feitos sombras que nós, idéias, projetávamos nas suas conversas e nos seus pergaminhos de lã. Éramos fogo, água, terra e ar, éramos Ciclopes e Titãs dobrando as montanhas e abrindo as águas, éramos o Masculino e o Feminino, o Limite e o Ilimitado... Digo nós, mas o primeiro homem a falar de idéias enquanto tal - um sisudo grego de barbas orientais chamado Parmênides - falou de uma idéia apenas, ao afirmar ter visto, arrebatado pela carruagem de uma deusa, a verdadeira e única idéia: o SER. Mandou bem, pra começo de conversa; considerando que na origem tudo é minúsculo e irrisório, o SER é uma grande e poderosa idéia que até hoje os homens não abandonaram (Vai ver algumas idéias sejam eternas mesmas... e tomara que eu seja também!); mas tive que esperar até que um discípulo de Parmênides, um colosso chamado Platão, nascesse para expor ao mundo a verdade sobre nós, quem e quanto somos, onde habitamos e como devem os homens agir para nos conhecer e conosco lidar. Vou lhes falar sobre o nascimento do Platão, aliás, sobre antes do nascimento dele, pois, a um mito de origem (a história em que ele nos inseriu) convém que retribuamos com outro. Vivíamos então, hipostasiadas, em um mundo de conto de fadas, o mundo das idéias, em tudo parecido com essas imagens deslumbrantes que o telescópio Hubble nos descortina no éter sideral. Para cada coisa desse mundo terreno, existe uma idéia correlata no nosso mundo, mais perfeita, mais duradoira, mais real... Por esse mundo ideal, passeiam as almas dos humanos em périplos perfeitos e espiralados; a cada volta ampliando o percurso e contemplando nosso elenco ilimitado, revendo-nos por outros ângulos e em perspectivas diferentes; haurindo nossa perfeição e nossa divindade; aumentando indefinidamente os seus conhecimentos e se exercitando na sabedoria que é memorizar essa gnose e recordar a miração fabulosa no mais profundo destas almas! Ali, no chamado segundo mundo, se perfilam as idéias de triângulos e poliedros, de justiça e de amizade, idéias de máquinas esquisitas e fórmulas matemáticas... Idéias de cada folha de relva ao lado das idéias mais universais como a idéia do Amor e a da Verdade! Os próprios liames de uma idéia com outra sendo uma nova idéia, a lógica, todas as lógicas possíveis, formais, dialéticas e combinatórias como peças de uma intuitiva e coruscante engrenagem... Que pena que, por ser apenas mais uma e das mais discretas destas idéias, não possa descrever com exatidão o mundo fantástico de que sou parte. Não me é permitido co-habitar com todas elas, assim como a idéia de fogo não combina com a de água, a de close com a de horizonte ou a de um círculo com um quadrado. Também há idéias que não se separam como a idéia de montanha e a idéia de um vale, a de pássaro com a de asas, ou a de nobreza e sua irmã, a dignidade... Você mesmo, caro leitor, já esteve por estas bandas, antes de nascer e esquecê-las, pois essa é a lei universal: todas as almas passeiam por esse mundo, tropeçam, caem aqui na terra e esquecem-se do que viu no paraíso da sabedoria.. Mas me adianto... Voltemos ao Platão... Lembro-me como se fosse hoje, da primeira vez que vi sua alma passar perto de mim. As almas são muito parecidas com uma carruagem, possuindo três partes bem definidas: Uma parelha de cavalos, sendo um cavalo branco que responde pelos nobres impulsos da alma, a coragem, a prudência e a temperança; e um cavalo negro, onde se move os impulsos mais indomáveis como a luxúria, a inveja, as torpes paixões que toda alma consigo arrasta. A segunda parte, um cocheiro, a Razão, que, ao mesmo tempo em que governa os cavalos, tenta contemplar as divinas idéias no cosmos estrelado e conhecer a sabedoria sub species eternitates. Sem rodas, um par de etéreas asas se abre nos flancos da carruagem, é o desejo, A terceira parte, que faz a alma flutuar e deslizar em sua jornada em busca do conhecimento. Perdi a conta de quantas carruagens passaram por mim, a maioria sem nunca me perceber, tanto que é o lume das incontáveis idéias de coisas que não existe ainda, de coisas sempiternas e de coisas ainda por existir! O desfecho desse passeio das almas é assaz conhecido, pois ninguém escapa dele: tão logo começa a contemplar a planície das idéias, o cavalo negro da alma começa a se inquietar, pois, fogoso, quer se apropriar das idéias, partir para cima de nós como se fôssemos opiniões vulgares sobre as coisas que podem ser possuídas por qualquer um, como tufos de ervas que um jumento arranca com os dentes e as rumina... Mas somos altaneiras, como os astros que parecem brilhar bem perto, mas na verdade estando a milhões de quilômetros de distância... O cocheiro da alma, a razão, precisa estar o tempo inteiro controlando as rédeas, de olho no seu impulsivo e destemperado cavalo negro; com isso, ele deixa de contemplar muitas idéias e acaba por adquirir sua parcela de sabedoria na exata proporção da qualidade de sua parelha, pois, como disse antes, todo o conhecimento verdadeiro que a alma humana possui é adquirido nesse passeio. O nascimento nada mais sendo do que queda e esquecimento, o pensamento não sendo outra coisa senão uma anamnese e nós, pobres idéias que um dia brilharam na sua alma, nada mais seremos do que as reminiscências desse seu recordar! Perto do fim, após suas cósmicas circunvoluções, a carruagem se aproxima do final, o centro da galáxia espiritual, o coração fulgurante da sabedoria onde brilham as idéias mais nobres e arcanas. A luz se intensifica e o coração dispara. Os cinco gêneros supremos: o Ser, o Mesmo, o Outro, o Movimento e o Repouso, como dimensões coevas, organizam a cintilante descontinuidade, agrupando as idéias em prodigiosas harmonias por onde se evola os vapores da dialética e da linguagem: é quando a alma aprende a falar! Quando ela entende que coisa pode ser conjugada com outra, que idéia não se combina com outra idéia. Nesse meu mundo, ver e ouvir não se distingue e tal noésis é semelhante a uma música, pois será como uma música que nos lembraremos dessa jornada quando estivermos mergulhados na existência terrena, no fluxo do tempo que é a imagem móvel da eternidade. Ali, nos pícaros mais hiperbóricos e alciônicos, podemos ver o Demiurgo, um espécie de pastor das estrelas, regendo com seus braços longos a harmonia das esferas gnoseológicas. Ele contempla a maravilha que é esse meu mundo e, lá em baixo, vê o mundo da matéria louca, do puro devir, o caos abissal onde tudo se mistura e se corrompe, onde tudo é mais e menos, pequeno e grande simultaneamente, onde todos os contrários se fundem e se dilaceram. O disparate, o descompasso, o mau-gosto e o horror da matéria enchem o peito do Demiurgo de piedade e ele então, molda a matéria lá de baixo impondo ao mundo dos humanos os modelos das idéias contempladas, produzindo boas cópias que mimam a magnificência dos nossos palácios úberes de ordem e sinastria. Ele, o Demiurgo, será o modelo, a forma ideal dos políticos, pois estes também, lá embaixo, ambicionam governar os homens e organizar suas vidas, e, como o sentimento que comove o Demiurgo é a compaixão, os verdadeiros políticos serão aqueles que sentirem e agirem movidos pela piedade por seus irmãos desse infortúnio que é viver longe da perfeição. Digo isso por que o Platão conseguiu chegar até esse ponto, viu o Demiurgo agir na primeira manhã do universo e, uma vez lá embaixo, quis imitá-lo, quis ser um político junto ao tirano Dionísio, na Ilha de Siracusa... Muitas vezes ele aqui voltou durante suas oito décadas passadas lá em baixo. Sob o translúcido manto de nuvens e vapores que separa-nos do mundo terreno, se vê freqüentemente infinitas almas, por breves segundos, pairar na fronteira, os olhos tomados de delírios eróticos (pois só Eros tem asas para chegar aqui) tentando nos ver de novo como quem quer morrer de vez para voltar. Isso acontece quando, lá embaixo alguém se encontra com algo de profunda beleza. Sendo alguém muito carnal, sendo muito indomável o cavalo negro da sua alma caída, ele irá se atirar sobre a beleza emprestada daquele corpo - digo emprestada, pois lá embaixo tudo apenas imita as idéias perfeitas daqui do alto - e buscar na comunhão com aquele corpo o gozo dessa visão (os estertores do sexo é bem um exemplo disso, do frenesi em possuir a beleza de um corpo que amamos, mas que não podemos possuir completamente pois o que amamos ali está apenas como um reflexo na água); se, porém, for uma alma temperada, que viu muito quando aqui esteve, esse alguém irá se lembrar da fulgurante idéia da Beleza que um dia contemplou, seu desejo lhe avivará as asas partidas da sua alma e esta alma, por um miserável instante, subirá às franjas do mundo ideal em busca de nós, o verdadeiro objeto do seu desejo. Assim foi que Platão voltou aqui incontáveis vezes para relembrar e nos eternizar em seus memoráveis livros. O porquê dessa idéia de beleza ser a mais propícia a despertar tais reminiscências tem a ver com o desfecho da história de Platão – e de todos vocês, gentis leitores, antes de nascerem – que narro agora. Na apoteose desse cortejo celestial, no ponto mais iluminado e central do nosso mundo, a alma consegue deslumbrar a vastidão profunda desses espaços infinitos de idéias que, só de pensar, nos enche de opressão o peito. Ali ela vê a idéia indescritível da Beleza que outra coisa não é senão o conjunto da mais louca harmonia, o Cosmos, o cosmético da alma que é a sabedoria absoluta. Proporção e ritmo, cadência e equilíbrio, a idéia de beleza é a síntese feliz de todas as idéias da eternidade, o corolário e o arremate de todos os princípios e de todos os fins. Tão grande é o fulgor dessa visão, dessa imediata apresentação do infinito no modo finito da alma; tão resplandecente é a Fácie Toties Universi (para falar como Espinosa – outro que não saía daqui) que a alma é fulminada de luz nesse instante, seus cavalos se empinam, seu cocheiro estertora de entusiasmo e suas asas se partem de tanto desejar. A alma cai no Caos Abissal e nasce, por fim, no corpo de um infeliz, onde não se lembra de mais nada!!! Até chegar a esse clímax, Platão não teve nenhum esforço em contemplar todas as idéias perfiladas ao longo do seu cortejo nupcial. Não que o cavalo negro da sua alma fosse um dócil alazão, muito pelo contrário. Ouçam este episódio na vida dele, narrado por Diógenes Laércio, transcorrido na sua primeira estadia em Siracusa: galopava Platão um vigoroso corcel pela praia quando decidiu subitamente fazer a volta e retornar à estrebaria. Ao saltar do animal e entregá-lo ao capataz, comentou que desistiu de montar assustado que ficara com a luxúria e com a fogosidade do animal! Não teria ele se assustado por ver ali, no impetuoso cavalo, a imagem dos mais secretos instintos da sua alma? Não por amá-lo, mas por me apiedar da pobre humanidade que tanto precisava de um filósofo, decidi ajudá-lo. Apaguei todo o meu brilho, toda a minha luz e, feito um manto de escuridão, cobri os olhos do seu cavalo negro, permitindo assim que, ao longo de todo o seu trajeto, o jovem grego pudesse deslizar sem percalços pelas ágoras da Sabedoria e tudo ver, tudo contemplar. Só o larguei no último instante para que seu cavalo negro pudesse participar da comoção final, do desastre que o lançaria aos panos perfumados da aristocrática mansarda onde lhe houvera estrear. Só lamento que, ao agir assim, Platão nunca pode me contemplar; nem ele, nem nenhum dos seus discípulos, nem ninguém da sua vasta vassalagem filosófica pode saber quem eu sou. Um menino que passou por aqui recentemente, o Richard Dawkins, autor de O Gene Egoísta, viu uma idéia que nos incluía todas em algo que ele chamou de Memos, um correlato aos genes que também só pensam em se replicar, tudo fazendo no espírito humano para passar de uma geração a outra. Imaginem então, sendo a minha mais profunda natureza brilhar, ser conhecida e perpetuada na memória dos homens, o que significa o meu sacrifício para lhes dar a obra do Platão. Um sacrifício que faz de mim a imagem do Crucificado que morre e manda seus profetas ao mundo divulgar seu evangelho filosofal!
0 comentários :
Postar um comentário