Nestor estava quase encerrando seu uísque sabatino e voltando para casa quando um desconhecido ao seu lado no balcão puxou conversa com ele e começaram a falar do seu assunto preferido: novelas policiais! Nestor escrevia novelas policiais de bolso para uma editora, traduzia outros e vivia disso. O desconhecido era um leitor voraz do gênero e conhecia vários obras suas. Quis o acaso que Nestor estivesse terminando aquele que seria, na sua entusiasmada opinião, uma das maiores novelas policiais de todos os tempos, a obra que iria tirar seu nome do anonimato e lhe fazer um escritor famoso no planeta inteiro! O desconhecido, de olhos pequenos e brilhantes por trás das grossas lentes e do cabelo sobre a testa, dizia ter muita curiosidade em ouvir sua história, pagou novas rodadas de bebida e esperou até que Nestor ficasse "alto" e lhe confiasse sua história magistral:
_ É um caso comum, até mesmo banal de um assassinato - narrava já com o braço sobre o ombro do amigo, como se apoiado em um velho amigo dos anos colegiais -, mas a vítima fora encontrada dentro de um quarto pequeno, sem janelas e com a porta trancada por dentro, com ferrolhos e travas. Uma linda corista, como essa garçonete aí que nos atende, chamada Silvana, morta com uma punhalada nas costas! A polícia teve que admitir que fora suicídio pois não havia como explicar um assassinato naquelas condições! Centenas de escritores de contos policiais, no mundo inteiro, tentaram resolver esse desafio, como fazer alguém ser assassinado dentro de um quartinho sem janelas e trancado por dentro. Era impossível, mas eu descobri! Na minha novela eu faço o detetive descobrir o assassino e o truque que ele usou!
Nestor bebia e falava, o desconhecido tudo ouvia extasiado e pedia uma dose atrás da outra. Finalmente, se despediram e tomaram o rumo de casa. Ébrio e sonhando com as páginas que iria escrever tão logo chegasse em casa, Nestor flutuava pela calçada escura e deserta, e atravessou a rua não tão deserta assim. Um táxi apressado o abalroou apanhando-lhe pelas pernas trôpegas e o atirando a metros de distância. Um violento choque da cabeça no fio da calçada fez Nestor desmaiar. A garçonete ouviu o freado brusco dos pneus, o choque e a queda, e correu até a porta do bar a tempo de ver o taxista fugir. Do outro lado da rua, parado a observar o ocorrido, a garçonete viu o desconhecido meio atônito, apoiado em um poste. Correu até o corpo de Nestor caído e gritou por ajuda ao desconhecido, mas esse, temendo não se sabe o que, fingiu não ter visto nada e fugiu também. Restou a ela ligar para a emergência e ficar ao lado do corpo enquanto surgia, não se sabe de onde, curiosos a cercar o moribundo como aves de mau agouro.
Nestor acordou uma semana depois em um leito de hospital, a cabeça enfaixada e sentindo fortes dores no corpo. Mas, fora o braço enfaixado com uma luxação no ombro quase recuperada, milagrosamente ele não havia quebrado nada. Teve alta tres dias depois e voltou para casa acompanhado por um sobrinho que vivia com ele e que era seu único parente. Em casa retomou as atividades de escritor e sentou-se em frente à máquina, ao lado de uma pilha de folhas datilografadas da sua obra prima A MÔNADA E A MORTE. A última página datilografada narrava a chegada do detetive na delegacia para explicar o assassinato. Foi quando Nestor tomou um susto medonho: não conseguia se lembrar do desfecho genial. Como o assassino pode matar Silvana dentro de um quarto sem janelas ou alçapão ou o que quer que fosse, com a porta fechada e aferrolhada por dentro, e depois ter desaparecido?! A pancada na cabeça apagou justamente essa parte, embora, aparentemente, mais nada dessa longa vida lhe houvesse sido subtraído pela caprichosa memória! Levantou-se e acendeu um cigarro, andou pela sala apertada e cheia de livros espalhados. Tentou ficar calmo, pensar em alguma outra coisa, mas nisso passou longos a angustiados minutos sem se lembrar de nada. Quanto mais a tarde escorria, mas a certeza se instalava de não ser um esquecimento passageiro. A lembrança desapareceu completamente e Nestor, em pânico, abriu uma garrafa de uísque e serviu uma dose cavalar e, equivocadamente, medicinal. Foi somente na terceira dose, quando já levemente alterado, como se os estados de embriagues formassem uma camada distinta na personalidade, um broto de um novo ser ou encosto na alma que se comunicassem, é que ele se lembrou do desconhecido no bar com quem havia bebido na noite do acidente. Ele havia lhe contado o argumento e o desfecho da sua novela! Ele sabia e poderia lhe relembrar! Vestiu apressadamente o casaco e partiu, com o incômodo braço ainda engessado, em direção ao bar!
Lá chegando, foi recebido com festa pelos clientes mais assíduos que o conhecia de longas datas. A garçonete comoveu-se sinceramente pois o temia morto ou gravemente enfermo. Comemorou jogando-se em seus braços e quase denunciando um amor secreto. Escreveu seu nome no gesso do braço de Nestor, gesto que acabou sendo imitado por todos do local, e findou por achar um tempo para retirar o avental e conversar com Nestor em uma mesa nos fundos do bar. Lamentou não ter ouvido a conversa dele com desconhecido para poder ter conservado o segredo da sua novela, mas lamentou muito mais ainda a atitude covarde deste estranho que, do outro lado da rua vira todo o acidente, mas que se recusara a dar-lhe socorro, fugindo como um rato de esgoto! Seria ele, além de um simples diletante, um escritor anônimo interessado em roubar a sua história? A suspeita era forte, pois somente um verdadeiro aficionado do gênero poderia estimar tanto um argumento desse tipo, a ponto mesmo de não socorrer o autor para que esse, morto, não mais reclamasse a paternidade da ideia! A garçonete lhe sugeriu por um anúncio nos jornais e Nestor achou ser essa uma excelente opção. Ela mesma se encarregou de ir na agência e por a nota nos classificados:
"Você, amante das novelas policiais, que na noite do dia 20 de Março, uma quinta feira, no bar Las Perequitas Rojas, no Bairro do Rio Vermelho, ouviu um escritor lhe contar o final de uma novela de autoria dele, e depois, na saída, vê-lo ser mortalmente atropelado por um táxi, favor fazer contato com sua viúva para uma grata e remunerada surpresa!", algo do tipo. Samantha, fez questão de fazê-lo passar por morto para tentar comover e tranquilizar o desconhecido (coisas de mulher que esse narrador, hora a escrever, não se sente conhecedor da psicologia que a motivou). O certo é que, por conta desse anúncio assim formulado, ou or outro motivo desconhecido - talvez apenas por nunca ter sido lido -, o certo é que ninguém ligou nas duas semanas seguintes. Nestor estava À beira de um colapso nervoso. Revirada todos os seus cadernos ilegíveis com rabiscos e apontamentos, notas, dedicatórias e até papéis avulsos dentro de casa, na esperança de encontrar algum registro da sua ideia genial. Torturava-se antes de dormir tentando sonhar com a sua novela inconclusa e passou até a dormir no quartinho de empregada, sem janela e todo aferrolhado por dentro (fora ali que ele concebera esse método, fazendo do lugar seu escritório de isolamento de toda a entourage da sua rua barulhenta). O rosto do desconhecido era bem singular e disso ele não tinha se esquecido, pelo contrário, parecia-lhe que a ausência da lembrança criara um buraco onde o sangue da memória banhava todas as lembranças ao redor como um tiro no peito de alguém com roupa branca que o sangue desenha uma fúnebre rosa. Lembrava da roupa que ele usava, das canções tocadas no bar, dos olhares da garçonete e da história que lhe contava com ares de celebridade na iminência de ser pelo prêmio Nobel laureado! Incapacitado de escrever qualquer outra coisa, Nestor passou a andar o dia inteiro de ônibus pela cidade, entrando no primeiro que passava e indo até o fim de Linha para de lá retornar, olhando como um cão farejador para todos os rostos das atarefadas ruas de Salvador. Sua obstinação findou-lhe por ser premiada. Descendo a Ladeira da Barra, em um fim de tarde crepuscular e outonal, ele viu passar ao lado do ônibus, tentando costurar o trânsito engarrafado, um motociclista sem capacete. Era ele! Nestor disparou aos berros e conseguiu que lhe abrissem a porta dos fundos. Correu pela rua até chegar ao lado do motociclista que se assustou pensando ser um assalto. Nestor pulou na garupa como um ginete que ponga em um cavalo e o segurou pela cintura:
_ Não se assuste, meu amigo! Não vou lhe fazer mal nenhum. Isso não é um assalto. Lhe reconheci de uma noite no Rio Vermelho e preciso muito falar contigo. Encoste aí!
O desconhecido tentou se safar mas Nestor era muito mais forte, resoluto e sua vóz imperativa tinha uma inflexão voluntariosa quase que magnética. Ele encostou e foi logo lhe dizendo:
_ Você é maluco, meu rei? Me tirando de tempo! Nunca lhe vi na minha vida!
Nestor não queria assustá-lo. Precisava desesperadamente da memória dele, mas, por isso, mesmo, tinha que insistir.
_ Olhe bem para meu rosto! Tomamos um pileque no Rio vermelho quase um mês atrás. No bar Las Perequitas! Conversamos sobre novelas policiais. Eu acabei lhe contando uma novela que eu estava escrevendo. Na saída fui atropelado. Voce ficou no outro lado da rua parado, me olhando, a garçonete...
O rapaz, pálido como quem não ia há muito tempo à praia, passando a mão entre os cabelos assanhados, fazia expressão mal encenada de estar se esforçando para se lembrar:
_ De jeito maneira, meu rei! Você tá me confundindo. Nem ando por aquelas bandas. Lá só tem viado e puta! Na moral! Nem de polícia eu gosto...
Nestor sentiu, equivocadamente ou não, que o rapaz fingia não lhe conhecer. Ficou inseguro pela possibilidade de nada conseguir, tentou amaciar a voz e tranquilizar sua preciosa testemunha:
_ Olha, posso lhe pagar pela informação. É coisa séria! Eu perdi a memória naquele acidente...
O rapaz então se aproveitou das guarda abaixada por Nestor e lhe disse peremptório:
_ Talvez por isso mesmo. Se você perdeu a memória, é bem capaz de estar me confundindo com outra pessoa. Me desculpe, cara! Não posso te ajudar. Tome cuidado aí quando abordar os outros na rua.. PARECE QUE É MALUCO!
E assim dizendo, sem dar tempo de tréplicas, pulou sobre a moto e sumiu pela direção contrária, retornando pelo lado onde não havia muito tráfego.
Atordoado e confuso, Nestor acenou para um táxi que passava e voltou para casa. Lá chegando, abriu outra garrafa. A noite caíra sem ele perceber. Sua alma angustiada começava a cogitar a possibilidade de esquecer tudo, partir pra outra e tentar recomeçar. As contas estavam acumuladas e a editora pedia-lhe um novo livro idiota de policiais corruptos e mulheres vamps trocando tiro adoidado. Apanhou os manuscritos da sua novela e, hesitando em queimar, levou-os para o quarto de empregada para ler só mais uma vez. Esperou seu sobrinho sair de casa, pois que este, dormindo na sala, tinha lá nesse quarto seu armário e pertences. Viviam em um apertado quarto e sala. Assim que o sobrinho saiu, ele apagou as luzes, trancou-se com o manuscrito dentro do quarto, passando todos os ferrolhos e retirando de cima da cama um exemplar aberto do jornal A Tarde, que seu sobrinho costumava folhear para ver a programação dos cinemas da cidade. Ali, deitado, releu mais uma vez sua novela e concluiu que nunca, jamais em sua vida voltaria a se lembrar do truque usado pelo assassino para matar Silvana dentro do cubículo intransponível. A fatalidade lhe deu resignação e coragem. Embolou as páginas e lançou-as atrás de uma pequena sapateira no lado oposto. Ali ficaria até a faxina semanal da diarista. Para pensar em alguma coisa e tentar dormir um pouco, apanhou o jornal e começou a folhear. Um calafrio varreu seu corpo da cabeça aos pés quando viu uma foto e uma notícia na página policial, onde ele costumava buscar inspiração para suas histórias. Um velho e milionário senhor, relativamente famoso na cidade por uma rede de mini mercadinhos, fora encontrado morto com uma punhalada nas costas, dentro do seu escritório onde não havia nenhuma janela ou saída alternativa além da porta hermeticamente fechada e gradeada, com maciços cadeados, fechaduras e travas. O jornalista ironizava dizendo que, ou havia na cidade algum novo Houdini, o mágico fabuloso das proezas admiráveis, ou aquele senhor se suicidara se atirando de costas sobre um punhal bem afiado. Forçoso foi ao delegado do caso reconhecer o suicídio e inocentar seu único herdeiro da grande fortuna por ele deixada. Estampado no jornal a foto do herdeiro. Era o desconhecido a quem ele havia confiado seu esquecido segredo! Relendo com os olhos esbulhados e o coração latindo, Nestor confirmou a data do crime. Pelo calculo dos legistas, o corpo ficou ali dentro por quase 10 dias até ser descoberto pelo neto que sentira sua falta. Exatamente umas duas semanas após o meu acidente, considerou com estupor e raiva o escritor desmemoriado dentro do quarto abafado. As coisas começam a clarear. O herdeiro, tão logo ouviu dele o truque usado pelo assassino, pensou imediatamente em pô-lo em prática, por isso não quis lhe dar socorro durante o acidente, pois já estava maquinando ao sair do bar! Se viu o anúncio no jornal depois, só pode ter ficado mais tranquilo lhe imaginando morto e mais decidido a por em prática, sabendo que o autor da inacreditável prestidigitação estava morto e não poderia lhe denunciar. Por isso a reação de palidez dele ao ser abordado por mim hoje à tarde na Barra, concluiu Nestor já espumando de raiva e pensando que atitude tomar. Foi quando novas conjecturas lhe assaltou o espírito: O rapaz agora sabia que ele estava vivo e era capaz de lhe reconhecer. Mesmo não se lembrando mais do truque, poderia voltar a se lembrar e ele não poderia viver em paz com essa testemunha podendo lhe caguetar a qualquer momento. Lembrou-se de ter dito, durante a conversa no bar, que costumava escrever dentro de um quartinho de empregada todo trancado por dentro, sem janelas, para "entrar no clima" de suas agora inconclusas páginas. Lembrou-se de ele fugira do encontro na rua voltando pelo sentido contrário ao que estava indo, como se houvesse mudado de objetivo. E se ele houvesse parado em uma esquina, lhe visto tomar o táxi e lhe seguido até a sua casa? Chegou a cogitar que estava imaginando coisas demais e começou a se acalmar mas foi quando ouviu ruídos dentro de casa. Seu sobrinho havia esquecido alguma coisa e voltado? Estaria o desconhecido a lhe procurar nesse claustrofóbico mausoléu que havia se tornado seu quartinho de empregada? Decidiu se levantar e ver que barulho era aquele quando a luz do quarto subitamente se apagou. Nestor tateou até a porta! Sentiu-se na pele da sua personagem Silvana em um quarto semelhante assassinada e sentiu também que estava começando a se lembrar do truque usado pelo assassino. Sim. Iria lembrar e quem sabe evitar o inevitável. LEMBROU! No exato instante em que um punhal frio e alongado correu por dentro de seu peito, passando entre as costelas, os pulmões e perfurando com insidiosa maestria o seu coração feito de frases decoradas e clichets literários!

1 comentários :
Essa história eu a ouvi de um conhecido, em um bar de Salvador. Ele a contou-me com um entusiasmo e um "suspense Berkeleyano" que eu não saberia imitar! Lamentavelmente, voltando para a casa de um outro amigo onde estava hospedado, Ronaldo Braslawisky e sua gentil esposa Drª Luciana (cito-os como testemunhas do ocorrido), sofri um acidente de automóvel com uma forte pancada na altura da fronte, do qual trago uma discreta cicatriz! Esqueci completamente o nome do conhecido, seu rosto, nome, ou qualquer fato que possa identificá-lo! Passado 30 anos, e temendo que a história dele venha a ser devorado pelo tempo que tudo apaga, decidi escrevê-la, com minhas próprias palavras, na esperança que seu autor ainda esteja vivo e possa reconhecer sua ideia. Em nome desse ilustre desconhecido, agradeço os eventuais compartilhamentos! "NÃO DEIXEM O CRIME MORRER,/ NÃO DEIXEM O CRIME ACABAR!/ O CRIME É FEITO UM SAMBA,/ UM SAMBA PRA MORTE SAMBAR!
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