sábado, 8 de fevereiro de 2025

Loopin' no Sertão é Ridimunhin!

 




Quando meu tio CDCJ, Crispim Douglas Corcoran Junior, resolveu enfim tirar férias do seu tedioso emprego de Agente Funerário Municipal (capanga do prefeito), ele escolheu o sítio do seu amigo Manuel Gileno, perto de Lençóis, na Chapada Diamantina, para passar longas tardes pescando, bebendo cerveja e proseando com o maior contador de mentiras de sertão (ele, CDCJ, era o segundo maior).

Levei meu tio agachado no banco de trás, pois que eu viajava no carro da empresa Souza Cruz e era terminantemente proibido dar carona ou carregar nada que não fosse de âmbito profissional. Presenciei o encontro festivo dos dois amigos, parceiros de muitas e picarescas aventuras na juventude e parti no outro dia para tirar pedidos de cigarros em tudo que fosse bar ou mercadinho de beira de estrada. Qual a minha triste surpresa ao receber um telefonema, dois dias depois, pedindo que voltasse urgente ao sítio! Meu tio estava gravemente enfermo, inconsciente sobre o leito e próximo de morrer. Fosse isso um filme e tudo o que vocês veriam agora era uma nuvem de poeira e eu dentro, no meu Voyage, solavancando sobre a inquieta estrada e chovendo água ao passar pelas poças deixadas por um temporal. Cheguei ao mesmo dia, quase noite, para apanhar meu tio e levar a um hospital mais próximo. Ele estava desmaiado e respirava com dificuldades. Pus imediatamente CDCJ deitado no banco de trás – desta vez não me preocupando se ele fosse visto por quem quer que seja – e ao meu lado, ia Manuel Gileno, profundamente transtornado com o mal do seu amigo. No caminho ele foi me dando detalhes do incidente. Meu tio passou mal quando jantava e teve que ser levado para a cama do quarto. Manuel não fazia a menor idéia do que havia se passado, mas, famoso por ser um prosa-ruim e contador de caso, se atreveu a prescrever um mirabolante diagnóstico enquanto velava segurando a mão do amigo inconsciente no banco de trás.

_ Não é nada de grave! Posso sentir isso. Ele só não acordou ainda porque sua alma está presa em um labirinto de lembranças!

_Como assim, labirinto de lembranças? – Incrédulo, perguntei.
_ Ele quase morreu durante o jantar e, antes de morrer teve uma “Visão panorâmica dos moribundos”, Já ouviu falar?
_ .....
Segundos antes de morrer, a mente se destenciona, permitindo que toda a memória de uma vida, feito um furacão entrando por uma porta aberta, invada a consciência do moribundo e permitindo a ele rever toda a sua vida, em todos os detalhes e extensão, como um filme em que somos protagonista e espectador...
_ Como um sonho?
_ Exato. Um sonho de uma vivacidade inexprimível!
_ E daria tempo alguém ver a vida inteira em tão poucos segundos? Eu interpelava em busca de um ponto falho na sua canhestra história, mas ele, de uma objetividade forense, parecia bailar nos salões escuros da alma.
_ ... O tempo é relativo. É justamente o fluxo das impressões que define o tempo. Tem sonhos que dura uma eternidade quando o relógio na cabeceira sequer mexe o ponteiro das horas! Veja o caso de Maomé: Tinha ataques de epilepsia e contam que um dia derrubou um vaso de água durante uma dessas crises. Foi levado ao paraíso pelo anjo Gabriel, ouviu sutras por toda uma tarde nos jardins do céu, teve tempo de memorizar todo o ensinamento do anjo! Quando acordou, de volta ao seu quarto, a água nem tinha ainda terminado de escorrer do vaso caído...

Mesmo compenetrado no estado de saúde do meu tio, não deixei de admirar a poesia condoreira do velho Gileno. Ouvi continuar:
_ Seu tio começou a ver sua vida inteira transcorrer frente aos olhos da sua alma. E que Vida! Posso imaginar! Dos primeiros brinquedos da infância às tardes sem fim no lombo de mulas estropiadas... As primeiras letras, os livros encantados, as namoradas imaginárias, o medo ao descer na rodoviária de São Paulo com apenas uma mala e uns trocados no bolso... A faculdade, o primeiro emprego.... E os casos que ele inventava! Sabia que isso também é memória? Memória de coisas inventadas?
Disso eu não tinha dúvidas, vendo ao meu lado um tremendo contador de “causos”. Aquiesci sem tirar os olhos do meu tio pelo retrovisor. Ele respirava. Iria sobreviver e ter mais um caso para contar!
_ .... Quando encontrei seu tio passando mal sobre a mesa, vi os olhos dele brilhando como se estivesse vendo cenas inolvidáveis! O problema começou, acredito, quando a sua visão panorâmica chegou até os minutos finais, justamente aí, no instante em que ele passou mal sobre a mesa e começaram as visagens. Rever o momento em que toda a sua vida lhe passou pelos olhos é rever tudo de novo, concorda comigo?
_ Sim, mas dessa segunda vez seria a mesma duração ou só uma fração de tempo?
_Já lhe disse que o tempo não existe fora das vivências que temos. Ele viu de novo toda a sua vida ao relembrar o último momento em que sua vida toda se descortinava...
_Você quer dizer que, no final dessa segunda relembrança, novamente vai aparecer um momento de Visão panorâmica em que tudo começa de novo, ele se lembrando de estar lembrando?
_ Exato. E sempre que ele volta a esse momento final da sua vida, ao momento dessa privilegiada encenação, tudo se repete, ad infinitum, impedindo a série de terminar e o deixando prisioneiro de um vórtice memorioso, cada vez mais abstrato, as cores e sensações das lembranças se depurando em sentidos cada vez mais etéreos e incorporais, até não restar nada além de uma queda no abismo, como sentimos ao ter um dejá-vu, aquele sentimento de já ter vivido algo sendo bem mais relevante do que o algo propriamente vivido. Quanto mais fundo ressoar um dejá-vu, mais imprecisa é sua imagem e mais emocionante é a sensação. Por isso que seu tio não brilha mais os olhos. Não vê mais nada, apenas se contorce de emoções profundas diante desse filme dentro de outro filme que virou sua consciência! É como se, ao mergulhar tão fundo no passado, tenha sido, por ele, devorado!

De fato, meu tio parecia se contorcer. Um solavanco providencial na escura estrada fez acontecer um milagre! Meu tio foi jogado contra o encosto do banco, bateu ali as costas e cuspiu uma enorme espinha de surubim sobre nós, espinha que, soubemos logo depois, lhe atravessada na garganta, fora a causa do seu aparente e súbito mal! Percebemos também que em nenhum momento ele perdera de fato a consciência, pois, suas primeiras e jocosas palavras, ao se ver livre do osso, foram:
_ Eu não mergulhei fundo em passado nenhum, mas esse peixe, sim! Oh! Bicho remoso é o tal do surubim! Há há há há!

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