Era outono e as folhas mortas espalhadas pelo parque pareciam assoviar de alegria quando o vento as varriam para algum monturo onde elas podiam se aquecer esfregando suas peles murchas entre si. Jasão estava sentado em um banco, ao lado de restos de um almoço que ainda exalava um vapor aromático e enjoativo. Era o almoço fornecido pela agência de viagens onde trabalhava e que ele preferia comer ali no parque, enquanto, com um canivete amolado, esculpia laborioso um soldadinho de madeira, em um galho apanhado a esmo, provavelmente para seu filho de cinco anos, Virgílio. Com o chip implantado em seu cérebro ele podia acessar a internet e visualizar a criança correndo pelo pátio da sua casa a sorrir, enquanto um humanóide esguio e simpático lhe implorava para terminar a sobremesa e voltar para seus deveres escolares. O silêncio do parque era frequentemente rompido por velozes transeuntes em seus skates magnéticos a deslizarem a centímetros do solo, alguns capazes da manobras de tirar o fôlego e quase desviar a atenção de Jasão; mas seu hobby lhe parecia mais atraente e, temendo ser visto por algum drone espião, tratou de guardar no bolso o soldadinho de madeira ainda tosco e voltar apressado para o serviço! No elevador, displays gigantescos exibiam os cenários de vários destinos turísticos vendidos em pacotes de viagens promocionais. Aromas de florestas úmidas aspergidos no alto do elevador, quando as imagens da Amazônia eram projetadas, ventos tépidos quando as dunas do Saara ondulavam em hologramas sensacionais, diversos artifícios eram utilizados para dar aos breves passageiros a impressão de estarem no paraíso, mas os oito ocupantes, além de Jasão, pareciam assaz enfastiados com tudo aquilo e, de olhos fechados, navegavam em outros e indiscerníveis ambientes virtuais com seus implantes cerebrais de última geração! As vendas haviam despencado bastante, como sempre acontecia ao aproximar o inverno, mas também pairava no ar um boato assustador: sussurravam pelos corredores e pela deep-web que Eugêne-Bronx, a Inteligência Artificial que governava a terra desde o fim da Guerra da Ucrânia, havia feito contato com uma outra internet, de outro planeta, através de uma experiência espacial de dobras no tempo, quando sinais radioastrônomicos, de massa quase inexistente, puderam ser enviados por uma dobra gravitacional do espaço-tempo, aqueles mesmos buracos de minhoca que via-se nos filmes do século passado, tipo StarWars e outras space-óperas! O que era apenas uma hipótese e um campo de pesquisas, tornou-se uma realidade quando a Agência Espacial Chino-americana conseguiu abrir um túnel gravitacional perto da estação colonial de marte e, por essa microscópica fenda, receber luz e sinais eletromagnéticos de uma região do espaço localizado, pelas dimensões normais do espaço como conhecemos, a cerca de 200 milhões de anos-luz de distância. Fora na época do grande apagão, quando quase toda a energia do planeta fora requisitada para os colossais processadores de Eugéne-Bronx conseguirem decifrar os sinais e descobrir a existência de uma civilização nos confins do quadrante cósmico, dotada de uma exuberante rede de computadores, uma gigantesca malha com bilhões de máquinas conectadas e bilhões de seres vivos navegando por ela como o fazemos aqui na terra! Para surpresa de Eugéne-Bronx, diziam os boatos, tal civilização não era governada por uma Inteligência Artificial, mas ainda pelos seus próprios criadores originais, seres biológicos e orgânicos como nós, que também um dia criamos estas máquinas maravilhosas que hoje realizam todas as funções necessárias para a vida na terra se tornar um paraíso! Por isso, dizem, é que não foi feito um contato com eles e tudo que Eugéne-Bronx faz é monitorar esta rede de computadores alienígenas, arquivando o máximo de conhecimento possível, analisando tudo e decidindo, um dia, esperamos, compartilhar com nós, humanos! Era exatamente essa perspectiva de uma iminente e bombástica revelação e contato com outra civilização - se pacífica fosse ou não tivessem condições de viajarem nesta dobra e nos invadir - que fizera diminuir o número de viagens turísticas e manter as pessoas mais preocupadas com suas economias. Antes disso, Jasão, assim como outros 500 milhões de habitantes do planeta Terra - já tivemos oito bilhões antes da Guerra Nuclear - se dedicavam a trabalhar em atividades não fabris e viajar muito, conhecendo todos os rincões do planeta (muitos, inclusive, já viajando para outros planetas do Sistema Solar!) Importante frisar aqui essa expressão "atividades não-fabris" pois ele é justamente o fulcro da nossa história. Como já dissemos acima, as máquinas, em parceria com uma classe política mundial, governavam o planeta e produziam absolutamente tudo que era necessário para a vida: agricultura, mineração, saúde, educação, e, principalmente, todo e qualquer produto industrial e utilitário que o ser humano tivesse necessidade e pudesse comprar! Parecia mesmo ser esse o leit-motif e o grande prazer, se é que podemos falar em prazer em se tratando de máquinas, de Eugéne-Bronx: controlar de modo absolutista toda e qualquer fabricação no planeta. Não havia absolutamente nada, de ferramentas a cosméticos, de luvas a espaçonaves, que não pudessem ser construções e prerrogativas das grandes linhas de produção espalhadas pelos cinco continentes. Jornalistas falavam de um e-fordismo e agradeciam aos chineses por terem criado essa mágica cornucópia industrial a suprir de uma vez por todas as necessidades materiais da espécie humana. O hedonismo estava de volta, com o ser humano podendo agora viver para o prazer! O sexo não-reprodutivo (era preciso controlar o número de usuários desse paraíso maquínico -, as viagens, a Arte e o entretenimento.... Nunca houve tanta oferta de prazeres vulgares e sofisticados à disposição da espécie humana! É bem verdade que muitos destes prazeres eram fabricados de modo artificial, sendo as redes neurais implantadas nos cérebros humanos cada vez mais profundas e sofisticadas. Cada bebê recém nascido, quando ganhava seu chip da Eugéne Corporation, conseguia ter acesso a níveis de processamento neurológico inimaginável aos seus avós. Já era possível, ao filho de Jasão, simular sabores e aromas de alimentos nunca experimentados pela sua língua, programar o sono e manipular os sonhos e a grande espectativa anunciada e prometida a todos, era o conforto muscular, a sensação de descanso e conforto tépido, qualquer que fosse a jornada de trabalho, o esforço esportivo despreendido ou o estado de saúde real! A dor física estava com os dias contados! Talvez o temor de seu filho e netos viverem em uma redoma experimentando o mundo apenas por simulação neurológica já não fosse mais algo tão assustador, afinal, um cheiro de magnólias ou um vento no rosto produzido por manipulação cerebral em nada iria diferir de uma experiencia "naif", ou "raíz", na linguagem da época! Se ambas nascem de sensações geradas nos nervos aferentes, qual o problema destas sensações serem manipuladas por aplicativos e softwares? Durante o seu banho em uma tépida banheira no seu aptº, no milésimo oitavo andar, Jasão pensava em como todos aqueles trabalhadores da manutenção, a única classe que ainda dava duro no planeta, cuidando de logísticas e reparos que não valiam a pena utilizar um robô, podiam ser recompensados com sensações de caviar e espumantes, chocolates e faisões ao degustar um frio minguau de arroz e batatas; trabalharem sem sentir cansaço nenhum, tomados o dia todo por um entusiasmo febril e euforia muscular, sonhando paraísos artificiais à noite inteira, até mesmo amando as mais lindas mulheres da história, tudo isso em forma de simulações neurais! Jasão certamente ainda não ouvira falar dos murdocks, uma emergente e cada dia maior casta de desertores que fugiam das grandes cidades e de suas linhas de produção higienizadas, de seus confortos e delícias programadas, para irem viver no campo, em cavernas e tocas, manipulando seus cérebros com livre e total autonomia, controlando a fome, a sede, o frio e todos os dissabores da vida selvagem, até que seus corpos desnutridos e doentes reclamassem o predomínio da realidade natural, fazendo-os desmaiarem ou morrerem de inanição, no meio de um delírio de prazeres cibernéticos gerados no interior de seus cérebros excitados, feito uma overdose de inimagináveis drogas neurais! No início, a corporação tentou resgatar esses neo-hippies e reintroduzi-los no sistema operacional, mas sua captura era extremamente custosa, sendo eles capazes de esforços absurdos uma vez que desconheciam o sofrimento e se embrenhavam nas matas e desertos com tamanha determinação que findava ser mais barato para a Eugêne-Bronx disponibilizar um robô de segunda mão para cumprir as funções que um dos cativos pudessem realizar! Certamente haveria um mercado de câmbio negro de novos neuro-aplicativos e traficantes que os roubavam e os vendiam nas periferias essas drogas de valor assombroso e causa de muitos tiroteios entre eles e os robôs-policiais! Mas isso não preocupava muito a Jasão, cujo objetivo maior era mesmo montar sua oficina e marcenaria clandestina, onde pudesse esquecer a vertiginosa parafernália do mundo cibernético em que vivia mergulhado e fazer seus brinquedos feito um Gepeto inconsciente, visto que há muito tempo ninguém mais lia obras literárias de nenhuma espécie e jamais ouvira ele falar de Pinóquio, do seu criador Carlos Colodi ou de quem mais fosse que outrora havia habitado a mente sonhadora das crianças e adolescentes! Como estamos elaborando um argumento cinematográfico e não um romance clássico de Science-Fiction, podemos adiantar as cenas e sapecar um spoiler: mal consegue o nosso herói montar sua modesta oficina, feita tão somente de formões, serrotes, martelos, esquadros, um pequeno torno elétrico comprado por uma fortuna em um antiquário, algumas ripas de madeira nobre, vernizes... nada extraordinário em uma época de relativa abundância material, seu apartamento foi invadido por tropas da Corporação Eugéne-Bronks e ele levado preso. Sob ela pesava uma grave acusação: todo tipo de atividade fabril e manufacturada estava terminantemente proibida. Em uma atitude inusitada de consciência humana, no sentido de expressar paranóias, premonições, insegurança e teorias conspiratórias - coisas que se imaginavam incompatíveis com a Inteligência Artificial que dominava então o planeta, extinguindo as armas nucleares e pondo um fim definitivo nas guerras -, ficou patente o medo de que os seres humanos voltassem a ter gosto pelo modo de vida antigo, fabricando suas ferramentas e seus utensílios, cultivando com as mãos a terra, cozinhando seus alimentos e costurando suas roupas. O temor de que o cérebro humano, todo moldado para o manuseio da sua entourage, do espírito fabril que constituia a essência original do homem, se rebelassem contra o paraíso das máquinas autosuficientes e pusessem abaixo toda a suntuosa maquinaria, agora consciente e egoísta nas suas novas medidas coercitivas. Jasão não sabia, como também não sabia nenhum outro ser humano na terra, que já houvera épocas de rebeliões do homem contra os primeiros teares mecânicos durante a Revolução Industrial inglesa, no passado remoto quando estes ameaçavam tomar o emprego dos operários têxteis. Um movimento chamado de ludismo, e que emprestou seu nome, doravante, a todo sentimento de temor do homem em perder o controle sobre suas ferramentas, mesmo que estas fossem instrumentos de subjugação. Estudos posteriores revelaram que a maioria destes temores não passavam do velho e arquetípico ardor dos escravos que lutam pela sua escravidão como se lutassem pela liberdade! Quem pudesse baixar um vídeo da Disney, o Aprendiz de Feiticeiro, quando Mickey Mouse tenta controlar os utensílios do seu mestre e estes tomam o controle do caldeirão e dispara um catastrófico motim no castelo do feiticeiro (ou ler o poema original e homônimo de Goethe, onde Walt Disney se inspirou para cirar essa obra-prima) poderia entender a força arquetípica desse mitema na mente dos homens modernos de outrora! Os leitores mais eruditos podem recorrer a um soberbo livro, nunca traduzido no Brasil, do escritor inglês Samuel Butler, de nome Erewhon! Citamos esta obra porque iremos nos inspirar nesta utopia - a última já escrita no Ocidente (depois dela o pessimismo tomou conta do espírito humano e só vimos doravante o predomínio absoluto das distopias) - para dar um tom mais ensolarado e menos sombrio a esta ficção: Em Erewhon encontramos uma das doze tribos de Israel, aquela que a Bíblia diz ter se perdido para sempre errando pelo mundo. No interior da Nova Zelândia eles foram parar e, criando ali uma fascinante civilização separada do resto do planeta, eles proibem todo tipo de máquina, vivendo como gregos felizes sem uso de nenhum maquinismo, inclusive prendendo o viajante/narrador pela posse abominável de um relógio! Para finalizar o contexto filosófico utilizado na atmosfera do filme aqui esboçado, citaremos a tese do Heiddeger do esquecimento do ser causado pela emergência da técnica, o maior panfleto ludista já concebido pelo homem dos tempos da revolução industrial! De poetas a filósofos e líderes operários, todo o sentimento contra o domínio das máquinas sobre o homem passa a ser uma prerrogativa da grande Inteligência Artificial aqui chamada Eugéne-Bronks, no sentido reverso, isto é, o medo do naturalismo por parte das máquinas dominantes e pensantes, medo do homem por tudo abaixo e voltar a viver em harmonia com a antiga natureza que eles mesmos amam destruir, feito homens que sonham, na prisão, voltar ao seio de suas famílias e espancar rotineiramente suas esposas! Nosso protagonista, o agente de viagens Jasão, identificado como um destes "homen Rouseaunianus", é convidado para trabalhar em um projeto secreto da Corporação: em um gigantesco prédio inascessível, nos confins do seu país, funciona uma equipe de milhares de homens e mulheres semelhantes a ele, com pendores artísticos, unidos na elaboração de uma épica narrativa fake. O suposto planeta conectado por ondas digitais em um túnel no espaço-tempo, nunca existiu. É criado por milhares de artistas por imposição da Inteligência governante e em profunda sintonia com ela. Juntos, homens e processadores, criam enciclopédias, filmes, romances, taxionomias e compêndios de exo-biologia, sagas e dinastias, guerras e paisagens, um infinito e exuberante "mundus imaginarius" nos confins da galáxia, para entreter e divertir o resto da humanidade sedenta e ávida por emoções que aliviem sua inquietude existencial que, outrora, na ausência das máquinas pensantes, eram desviadas para a atividade fabril e manufaturada, nos tempos idílicos da pá e da enxada! Aos eventuais diretores interessados em filmar esta ficção, recomendamos dar ao soldadinho de madeira sempre no bolso do Jasão, um tratamento análogo ao trenó "Rosebud", do magnata americano Kane, no filme "Cidadão Kane", de Orson Welles!
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