O presente é uma dimensão do tempo
profundamente desagradável e sempre hei de preferir requentar casos antigos a
ser um cronista. Agora mesmo estou a recordar de um fato escatológico ocorrido
em Itambé-Ba nos idos de 1970 e lá vai fumaça. Uma agiota reputada fora
brutalmente assassinada e seu corpo, nunca encontrado, mas fortes indícios
ligavam seu desaparecimento a um de seus clientes (soube-se depois que, em uma
macabra reunião, seus devedores sorteavam um deles para matar a agiota sem que
ninguém ficasse sabendo quem foi o sorteado e todos se comprometiam a
dificultar o máximo possível as futuras investigações. Na verdade, rumores
posteriores deram conta de que todos sabiam o resultado do sorteio: quem
tirasse do baralho um valete iria fazer o serviço supostamente no anonimato.
Acontece que todos sabiam só haver valetes no baralho menos o escolhido para
ser o assassino, um rude mecânico que devia até a alma à agiota, mas incapaz de
adivinhar o ardil montado pela mente capciosa do pecuarista Ry Cabritto).
Sangue nas roupas, testemunhas que afirmavam terem visto o assassino entrar na
casa da vítima, gritos abafados... Uma série de “provas técnicas” capazes de
indiciar e levar alguém aos tribunais, mesmo na ausência do corpo da vítima,
foram elencados pelo delegado Corcoran e usadas para indiciar o negro Aroldo
como o assassino. “Suffit Supositas” era o eclesiástico termo do processo que o
levou ao banco dos réus pelo assassinato
de Dona Dionê (ou Dionê doida, como era conhecida). O promotor, Dr Heitor,
elencou as provas técnicas e acusou impiedosamente o mecânico. Seu advogado, o empedernido
e empertigado Dr. Gallo, arriscando sua já duvidosa reputação, usou de um
lambanceiro e capcioso artifício. Limpou a garganta e falou para o tribunal
apinhado de simpatizantes (quase toda a cidade devia dinheiro para Dionê
doida):
- Meritíssimo! Vou provar peremptoriamente
a inocência do meu cliente, aqui tão difamado. Ao estalar dos meus dedos, a
vítima, a suposta assassinada Dona Dionê irá entrar por aquela porta lateral,
vivíssima e vendendo saúde, ou emprestando, como queiram. E faço isso agora. ENTRAI!
E apontou enfático para a porta lateral
como Moisés no promontório apontando ao mar vermelho. A multidão, os jurados, o
juiz e os guardas, todos se voltaram para o local em um murmúrio silencioso e
comovente. Passaram alguns segundos e, obviamente, ninguém passou por ali. O
ardiloso prosseguiu:
_ Viu só, meritíssimo? Todos os jurados
se voltaram ansiosos à espera que a vítima aparecesse e inocentasse o meu
cliente. Como poderiam então estar eles certos de haver nesta sala um culpado?
Peço, senhores jurados, que considerem esta dúvida solerte em suas consciências
quando decidirem sobre a ambigüidade dos fatos pela promotoria apresentados!
Os jurados se retiraram para o veredicto
prontamente lido pelo juiz, após um curto e solene intervalo. Impassível, o
magistrado bateu o martelo e declarou o mecânico culpado, estipulando-lhe a
pena máxima. O advogado protestou:
_ Meritíssimo! Todos olharam para a
porta esperando a comprovação da inocência! A opinião, o foro íntimo –
realçando essa palavrinha que era moda, então -
do nosso povo não deveria ser levado em consideração?
_ Sim! – Arrematou o preclaro – Todos
olharam para a porta à espera de Dona Dionê. Menos um: o seu cliente; que,
talvez pelo escabroso peso da culpa, permaneceu o tempo todo cabisbaixo, certo
de que nem mesmo o fantasma da morta, se fantasmas houvessem, viria inocentá-lo
depois da barbárie por ele praticada.
Detalhe: o Juiz e o advogado também
deviam dinheiro para a agiota, o que faria desse julgamento, se de fato tivesse
mesmo acontecido, uma farsa e da minha história, uma mentira descarada! Deixo a
dúvida no ar e, para que nenhuma testemunha viva ainda morando lá em Itambé
possa desvirtuar os fatos aqui compilados, estou descendo a Serra do Marçal para finalizar
seus CPF’s!
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