sexta-feira, 9 de outubro de 2015

BORGES E O ANEL DE SALOMÃO.


Quando conheci J. L. Borges, não esperava compartilhar a copiosa coleção de imagens com as quais ele carimbava seus livros imortais. O tempo era exíguo e meu acompanhante, um celebrado ancião sem tempo sequer de acompanhar as traduções da sua obra; mal posso expressar, assim, a surpresa pela dádiva incontida com que fui brindado ao lhe acompanhar no vôo para Buenos Aires após suas palestras memoráveis em São Paulo.

Na poltrona ao seu lado, pude ver que ele possuía um colar com um anel de prata nela pendurado. Vendo ali um pretexto para uma conversa informal, perguntei-lhe a origem de tão idiossincrático amuleto. Tratava-se de um anel cujo ornamento, no mesmo metal, era o dorso de u'a mão; no dedo anelar desta mão via-se nitidamente um anel em tudo igual ao primeiro que ele ornava. Seu engaste era outra minúscula mão contendo algo quase imperceptível no dedo anelar... Coloquei os óculos, depois uma providencial lente e pude perceber quase uma dezena de mãos e anéis seriados naquele exótico fetiche. Borges me disse em tom irônico:

_ Pena que não possa olhá-lo por um microscópio eletrônico, como o fiz em Austin, quando lá ensinava! A série de anéis e dedos se estendem para além dos limites percebidos e mergulha no infinitamente pequeno, para além da mônadas leibnizianas, acredito...


Eu conhecia bem a prodigiosa imaginação do fabuloso ficcionista e, apesar de atordoado com a relíquia, fingi um inexistente ceticismo:


_ O que aconteceria se eu o usasse em meu dedo?
_ O anel se estende ao infinito e u'a mão a mais nesta série romperia os limites deste universo em que vivemos, como se tateasse as membranas de uma outra e desconhecida dimensão _ A eternidade, talvez? Minha mão tocaria o Eterno?
_ Provavelmente a dimensão onde se convergem todas as imagens uma vez transcendidos o espaço e o tempo que as dissolvem!
_Posso experimentar? – Brinquei.

Ele o ofereceu-me sem nenhuma solenidade, como dois charlatães testando a mútua credulidade. Mal o coloquei e a luz de um diamante telepático envolvera os meus dedos. 

Começa aqui meu desespero de escritor. Toda linguagem é um alfabeto de símbolos cujo exercício pressupõe um passado que os interlocutores compartem; como transmitir aos outros a infinita visão, que minha impávida mão sobejamente abarcava? Mesmo porque o problema central é insolúvel; a enumeração, sequer parcial, de um conjunto infinito de imagens projetadas na palma reticulada da minha transida mão. 

Neste instante gigantesco, vi milhões de atos prazerosos ou atrozes, nenhum me assombrou tanto como o fato de que todos ocupassem o mesmo lugar, sem superposição e sem transparência. Feito projeções holográficas, o espaço cósmico estava aí, sem diminuição de tamanho. Cada coisa (o metal do anel, digamos) era infinitas coisas, porque eu a via claramente de todos os pontos do universo. Vi o populoso mar, vi a aurora e a tarde, vi as multidões da América, vi uma prateada teia de aranha no centro de uma negra pirâmide, vi rosebud, meu trenó, vi um labirinto roto (era Londres), vi intermináveis olhos próximos perscrutando-me como num espelho, vi todos os espelhos do planeta e nenhum me refletiu, vi num pátio da rua Toneleros as mesmas lajotas que, há trinta anos, vi no vestíbulo de uma casa na Otávio Santos, em Conquista, vi cachos de uva, neve, tabaco, veios de metal, vapor de água, vi convexos desertos equatoriais e cada um de seus grãos de areia, vi naves perdidas em Órion e explosões de estrelas feito miríades de fogos de artifício, vi em Guaratiba uma mulher que não esquecerei, vi a violenta cabeleira, o altivo corpo, vi um câncer no peito, vi um círculo de terra seca numa calçada onde antes existira uma árvore, vi uma chácara em Itambé, os livros de física medieval de Pierre Duheim, vi ao mesmo tempo, cada letra de cada página (vi as letras se misturarem e dissolver os livros nos sonhos dos leitores), vi a noite e o dia contemporâneo, vi um poente em Jalisco que parecia refletir a cor de uma rosa em Bengala, vi meu dormitório sem ninguém, vi num gabinete de Helsinque um globo terrestre entre dois espelhos que o multiplicam indefinidamente, vi esse texto em um site na internet, vi um meteoro cruzar as nuvens, vi cavalos de crinas redemoinhas numa praia do mar Cáspio, vi os sobreviventes de uma batalha enviando cartões-postais, , vi as sombras oblíquas de algumas samambaias no chão de uma estufa, vi uma lua verde em um planeta desconhecido, vi tigres, êmbolos, bisões, marulhos e exércitos, vi todas as formigas que existem na terra, vi um astrolábio persa, vi numa gaveta de escrivaninha (e a letra me fez tremer) cartas obscenas, inacreditáveis, precisas que minha esposa morta enviara ao seu amante, vi um adorado monumento na praça Paris, vi a circulação de meu escuro sangue, vi a engrenagem do amor e a modificação da morte, vi a palma de minha mão de todos os pontos, vi na mão a terra, e na terra outra vez a mão, vi meu rosto e minhas vísceras, vi teu rosto e senti vertigem e chorei, porque meus olhos haviam vistos esse objeto secreto e conjetural cujo nome usurpam os homens mais que nenhum homem olhou: o Inconcebível universo. 

Senti infinita veneração, infinita lástima. E só poderia retribuir tal visão com algo também infinito: O meu silêncio. 

Devolvi-lhe o anel e nunca mais lhe dirigi sequer uma palavra!
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