Dr Hipólito estava convencido de que seu paciente, Geraldino Magalhães, não teria mais que cinco ou seis semanas de vida – as radiografias eram tão nítidas que se podia sentir, com o “olhar háptico” (propriedade da visão de apalpar as coisas, como quando falamos de “boca aveludada” ou “vermelho quente”), os seis caroços de câncer no pâncreas crescendo a cada exame; difícil era fazer aquele velho fanático acreditar no diagnóstico e se preparar para uma passagem menos atribulada, com testamento e familiares ao seu lado. O idiota só falava na Bíblia e em milagres. Mas Hipólito sentia ser sua obrigação desenganá-lo. Prova disso foi seu último diálogo com Geraldino...Ao entrar no quarto do hospital e encontrá-lo meio abatido, o doutor, para entabular conversa, perguntou-lhe como havia passado a noite. Geraldino hesitou, mas acabou lhe contando um sonho que tinha ainda vívido na memória:
_ Eu estava com um amigo de infância e a sua irmã dentro de um fusca e rodávamos sem destino pelo monótono asfalto quando, subitamente, tudo escureceu. A luz do sonho apagou completamente, apenas nossas respirações a entrecortar um solene silêncio que nos envolvera junto com a escuridão. Saímos do carro tateando e procuramos uma única centelha que pudesse nos situar. Foquei meus olhos como se buscasse um inexistente horizonte e pressenti em meu coração que em poucos instantes o dia ia raiar glorioso e tingir o céu por aquelas bandas. Acordei e aqui estou matutando qual seria o sentido desse sonho breve e estranho!
Hipólito refletiu um pouco e, engenhoso, achou neste sonho uma oportunidade de introduzir seu mórbido assunto, sua mórbida missão:
_ É como se você estivesse nos últimos segundos que antecede o nascer de um novo dia. Há, se me recordo bem, um adágio de Rabindranath. Tagore que diz: “ A morte não é o apagar da chama, é a lâmpada que desligamos quando o dia começa a raiar!” E você, homem de fé como és, sabe bem do que estou falando. Espero que este adágio, vindo do Oriente, seja como um sol a lhe dar o entendimento da sua grave situação.
Geraldino considerou aquelas palavras e o ar de erudita gravidade que as acompanhava, mas logo retrucou:
_ De fato, eu estava na hora mais escura, que é justamente a hora que antecede a luz de um novo dia. As trevas são esses problemas que estou passando, mas o sonho pode ser o sinal de que a minha cura está chegando. E como o senhor gosta de adágios, eu estava pensando, por coincidência, em um, também vindo lá destas bandas do oriente, que diz: “Podem enforcar o galo, ainda assim, a aurora virá!” Dê-me alta, dr. Hipólito, que preciso ir cuidar dos meus negócios!
Meses depois, encontrei Geraldino Magalhães no velório do Dr. Hipólito. Contei-lhe que, como secretário do médico professor, eu havia anotado esse diálogo. Ele confirmou a integridade das palavras mas nada falou sobre o milagre da sua cura extraordinária. Não precisava. Bastava olhar seu rosto sorridente e rosado como se uma aurora interior permanentemente o iluminasse.
0 comentários :
Postar um comentário