sexta-feira, 18 de outubro de 2019

O BEIJU da MORTE!




  
Era de manhã. No céu, os dedos róseos da aurora ainda ansiavam por algum passarinho preguiçoso e o povo rude da roça já descarregava na praça da Feira os seus caçuás abarrotados de chuchu, galinhas caipiras amarradas pelas pernas, aipim, ao lado de centenas de quinquilharias inumeráveis. Meu primo Rogaciano, vulgo Rongó, fiscal da prefeitura, circulava pela praça contabilizando o implacável imposto que fazia as pobres vendedoras expelir um suspiro fatalista no ar doce da manhã! Foi assim, de repente, ao abordar uma senhora curvada sobre uma peneira de beiju, que Rongó viu a Morte. Olhou na cara e sentiu que era ela! Antes mesmo de um pensamento qualquer, suas pernas já lhe conduzia pelo ermo das ruas de pedra, sentindo que não tinha mais para onde ir. Que sua hora havia chegado. Quem sou eu para descrever a cara da morte que ele viu e perder os meus parcos leitores... Mas que a bicha era feia.... Era! Subiu Rongó esbaforido a ladeira da igreja e foi acordar o padre Juracy, encontrando-o ainda a recordar seus sonhos noturnos, displicente sobre uma tigela de branca coalhada! Caiu de joelhos. Explicou ao Padre a visão que teve e suplicou o caro da Igreja para ir urgente em Itapetinga, à 40 kilometros dali, para se despedir da sua mãe querida e pagar uma conta na venda do Dermeval, pois, apesar de viver devendo Deus e o mundo, Rongó morreria ao imaginar que pudesse morrer devendo alguém. O padre emprestou-lhe o carro. Terminou resoluto o seu café e partiu em direção à Feira para um encontro com a Morte. Era o quinto que ela lhe levava nesse mês, e ainda era dia 23. Não iria permitir que seu rebanho fosse assim arrebatado sem uma explicação. Foi um alvoroço quando entrou pelo azáfama da feira com sua estola dorada e batina esvoaçante como um super-herói de capa e espada. Uma espinhela caída e duas ínguas foram imediatamente curadas só pela sua milagrosa passagem. Teve até um cachaceiro que, na porta da venda, vendo passar o pároco, jogou na goela o resto do pinga, espatifou o copo no muro do mercado e exclamou bem alto: _"De hoje pra trás, eu não bebo mais nada!" Sem que eu possa lhe explicar, o Padre Juracy foi direto à barraca onde a Morte peneirava um polvilho mais branco que cueiro de menino rico, ela mesmo degustando os beijus que fazia. Indo direto ao assunto, sem contudo ter coragem de a encarar, o padre perguntou-lhe: _"Como você teve coragem? Meu melhor obreiro! Tão novo! Pelo menos deveria ter levado ele dormindo, sem esse susto de ver sua cara maldita! Você encarou o pobre que deve estar até agora tremendo com a visão dantesca de sua fuçura insaciável!" Juracy estava irado; ou fingia estar para manter o controle. Sem parar de mastigar seus beijus, que escorriam pela esteira de palha já tingida de sangue e pus lilás, A Morte exclamou, meio admirada! _ NÃO ENCAREI NÃO, SENHOR! OLHEI PRA ELE MAS FOI DE SURPRESA! O QUE ELE ESTAVA FAZENDO POR AQUI SE TENHO UM ENCONTRO MARCADO COM ELE AINDA HOJE LÁ EM ITAPETINGA?

    Nas campinas do sonhar, me encontrei passeando pelas ruas de minha cidade natal. Olhava distraído o céu nebuloso, admirando as formas das nuvens que, sonhando, são iguais ao que vemos acordado (como se não comungassem essa nossa divisão entre sono e vigília). Vi uma nuvem se afastar bem rapidamente e logo percebi que era um avião de passageiros, tão veloz que arrastava consigo flocos de nuvens a dissimular sua irregular geometria. Logo o avião começou a diminuir a velocidade e a perder altitude. Senti que ele ia cair. Uma grande tensão invadiu minhas vísceras (é do estômago que partem os estímulos do sonhar). Já bem perto de mim, vi ele descer atrás de uma colina e subir um imenso clarão. Corri para minha casa, temendo que os fios elétricos ruíssem em curto-circuitos mortais. Na rua da minha casa, encontro duas primas minhas, à sombra de uma mangueira, esperando-me aflitas. Arrasto-as comigo para dentro de casa, em busca de um lugar seguro. Uma delas segura no meu braço e suplica: _Você agora pode nos perdoar?Agora que podemos morrer? Perdoe-nos! _Perdoar de quê? _ Do nó cego que demos na sua calça na sua festa de seu aniversário!!! Parei para pensar. Não me lembrava disso. _ Quando foi isso? - Perguntei. Na esquina o transformador elétrico em chamas ameaçava explodir _ Quando voce tinha quatro anos! _ Pombas! Caramba! E vou lá me lembrar de quando tinha quatro anos? Entra logo que um avião caiu e vai explodir tudo! Foi o tempo de entrar e as labaredas varrer a minha rua descalça! 
Acordei. 
  
     Hoje sonhei que estava na sala de espera da minha dentista. Para implantar uma prótese no maxilar, ela iria serrar meu pescoço, colocar a prótese e depois costurá-lo. Podem imaginar o temor que me assaltava. Enquanto isso, na TV, passava uma reportagem sobre uma antiga namorada minha que havia se tornado uma famosa atriz em Hollywood. As pessoas na sala de espera me reconheceram quando a jornalista falou do primeiro amor da diva! As mulheres me fitavam curiosas, os homens, com admiração. Um deles se aproximou, apertou a minha mão e me disse: Parabéns,cara! Você comeu um mulheraço! Mesmo assim, a angústia do pescoço decepado não passava! Aí está, freudianos de plantão. Jogo-lhes um osso a vossa sanha. Trinche-o nos dentes e suguem o tutano simbólico do meu sonho! Essa é fácil!

     Essa tarde sonhei que criava eu dois passarinhos dentro de uma geladeira. A todo instante eu ia lá, abria, apanhava um iogurte, uma fruta, os passarinhos voavam felizes dentro da geladeira iluminada. Uma hora, um deles escapou voando e eu saí atras dele tentando capturá-lo. Quando percebi que não iria conseguir, pensei: vou lá soltar o outro para que eles continuem juntos, agora em liberdade. Ao voltar para dentro de casa, encontrei uma senhora negra, de uns 50 anos de idade, gorda, com um rádio de comunicação em uma mão e uma pistola prateada na outra. Ela me olhou e me disse: Sou capaz de lhe matar se você soltar o outro passarinho! O resto do sonho foi eu tentando, sem sucesso, enganá-la, dando voltas pela casa! Aguardo as interpretações (mais não pago, e, de antemão, aviso: Não concordarei).

       O tempo é circular e quando lembramos de algo, não vamos ao passado pelo mesmo caminho que fizemos. Isso seria rebobinar tudo e fatalmente ficaríamos prisioneiros de infinitas lembranças no percurso. Damos um salto no futuro, como se pelas costas das cartas ainda não jogadas, até chegarmos naquela que buscamos. A memória é uma espécie de vidência! Qualquer hora irei fazer a cartografia de uma nova subjetividade humana, reformando as faculdades e trocando-lhe os nomes! Chega de mesmice na psicologia! Todo psicólogo é enfadonho e fede naftalina!

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