domingo, 20 de maio de 2018

CONFISSÃO DE FÉ LITERÁRIA!




   Um leitor perguntou-me um dia qual a razão de minhas personagens morrerem no final. Na verdade, nem todas morrem, só a metade (muito mais carniceiro era o Shakespeare, cujas belíssimas tragédias são verdadeiros banhos de sangue); mesmo assim considerei pertinente a sua questão. Tenho procurado situar minhas personagens em situações-limite onde suas forças expansivas e as forças constrangedoras do meio configurem um conflito ( por esse antagonismo posso ser rotulado de naturalista). Acredito que só em seus limites é bela a vida e qualquer figura estética extraída de outros meios revela-me abortos de frágil sobrevida. A inépcia, contudo, tem-me feito errar frequentemente: ora concebo tipos vigorosos demais envolvidos em circunstâncias banais; ora, acontecimentos que transbordam a potência de seres delicados ( meus favoritos) e eles sucumbem ao ingrato destino tecido. O mais vigoroso escritor da História, Honoré De Balzac, concebia suas personagens com tanta vitalidade que elas venciam os limites do romance e apareciam em outras obras arrastando consigo a atmosfera dos livros de origem. Leitor apaixonado de Etienne Geoffroy Saint-Hilaire, Balzac fora o primeiro a aplicar na literatura o conceito de “ plano de composição” - um mesmo ser para tudo o que existe, todos os livros como modulações de um mesmo trá-lá-lá. Espero um dia escrever livros onde minhas personagens apareçam redivivas. Imagino o físico Carlos Valadares, de “O Som e a Fúria) encontrando-se com Vargas ( o cego erudito em “Um Cheiro de Verbena”). A paixão do escritor Vargas pelas enciclopédias venceria a obsessão romântica de Valadares e juntos eles ouviriam, nas máquinas fantásticas, toda a História ressuscitada; Nadir (A Última Viagem) encontraria a cigana Rosalina (O Segredo dos Ciganos), esqueceriam seus amores suicidas e escreveriam a quatro mãos um tratado de botânica e feitiçaria. O cigano Laurêncio, o descontrolado M... e a romena Rainer em um triângulo amoroso nos bastidores de um circo pelo interior do Brasil...
Homens como Balzac são verdadeiras instituições e a História é cheia de exemplos edificantes: Leibniz era uma universidade ambulante, Júlio César carregava o império romano nos ombros, Martinho Lutero, uma grande e obscura igreja protestante. Se acaso um dia eu deixar de ser um escritor anônimo, é com um circo que desejo ser a lembrança. Quem não conhece o “globo da morte”, uma estrutura de aço circular com dois ou mais motociclistas dentro girando? O perigo deles se chocarem deixa o espectador hipnotizado, a respiração suspensa e as veias latejando. Meu pensamento é muito semelhante a este globo da morte, cheio de ideias vertiginosas girando, girando... Se duas delas se chocassem um dia... Que explosão! Que livro catastrófico teria eu dado ao mundo! Felizmente acidentes desse tipo não foram registrados por enquanto. Muito mais frequente foram os meus planos, meus ambiciosos sonhos programados como grandes viagens no carro do palhaço e quando tudo estava pronto... puff! Furava o pneu, o motor explodia com fumaça por todos os cantos. Quantas mulheres desejei! Eram todas trapezistas flutuando a inatingíveis distâncias e quando pareciam enfim cair na minha rede com saltos mirabolantes surgia um heroico trapezista segurando suas etéreas mãos e todos o aplaudiam sem perceber o buraco não costurado em suas malhas cintilantes. Quantas crianças tenho sido todos estes anos! Entrar por baixo da lona, sentir-se excluído diante da expressão “respeitável público”, saltar obstáculos para conseguir visões mais panorâmicas são atitudes que ainda hoje não me abandonam. No circo conheci pela primeira vez o grotesco recurso de um “deus ex-machina”, conhecido nas peças de Eurípedes como a intervenção milagrosa de um deus no palco desfazendo o imbróglio de suas peças mal fornidas. Esse artifício, repito, não era estranho ao circo. Muitas vezes, durante as cenas do palhaço, uma situação era tramada e fazia-se necessário algum insólito objeto: Um penico, um “soutien”, uma galinha.. quando então, no picadeiro, alguém levantava-se com algo entre as mãos gritando: Eis a galinha, eu tenho a galinha! E a trama prosseguia como se nada tivesse acontecido. Escrever para mim tem sido algo parecido. Sinto-me como esse figurante, em espectador travestido. Sempre que a vida perde o seu encanto, quando nos assaltam as horas mortas ( e são tantas ) eu empunhava a pena ( parte da galinha ) e fabulava estórias esperando engrenar com elas o sonho e o espetáculo da vida. No prefácio de um livro que editei - A Flor Do Tempo – Um professor de Literatura  fala da minha obra como um circo de lona fechada com um perigoso animal nele contido. O leitor agora sabe que, em hipótese nenhuma, uma galinha caipira representaria qualquer perigo.


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