...Estávamos
 sentados, L., G. e eu, nas primeiras poltronas de um confortável ônibus
 rodoviário. 
Conversávamos com a mesma variabilidade de temas com que as
 nuvens configuravam-se no quadro móvel das vidraças e intercalávamos 
também, com grandes angulares de um límpido céu azul e paisagens 
desoladas, a comunhão de um silencio prolongado. Não sabíamos qual era o
 nosso destino, mas lembro-me de um 
sentido épico nos envolvendo como a poeira em certos trechos do caminho.
 Outros passageiros iam abandonando o veículo a cada posto rodoviário e 
nós rejubilávamos pressentindo um paradisíaco destino reservado somente à
 três viajantes agora solitários. L. assumira a direção, cantarolava 
para o futuro luminoso enquanto G., um velho professor e líder do grupo,
 agonizava nos bancos de trás, manuseando um livro de muitas páginas. A 
estrada, em linha reta, declinava-se em ângulos secantes e suaves. Com o
 passar do tempo, a depressão do lugar nos inquietava na proporção dos 
acelerados movimentos. A pressão atmosférica aumentava sensivelmente. 
Suávamos todos e a paisagem ia se povoando com uma exuberante floresta 
tropical: um pântano milhas abaixo do nível do mar, um abrasivo chaco 
que talvez não constasse nos mapas. No horizonte u'a mancha sobre a 
estrada aproximava-se. Era um imóvel e gigantesco sapo. O ônibus 
descontrolado descia vertiginosamente. Nas duas margens da rodovia 
outros sapos menores, do tamanho de uma vaca, cruzavam o asfalto em 
monstruosos saltos. Estávamos estarrecidos, mudos e amedrontados. O 
coaxar ensurdecedor intensificava o calor e a pressão dentro do veículo.
 Quando, próximo do fabuloso sapo, este saltou sobre nós com facilidade -
 exibindo seu ventre pálido, suas macilentas carnes - eu perdi o 
controle e acordei em gritos abomináveis, suando sobre o cobertor que me
 sufocava. No final da tarde, retornando do trabalho para casa, 
rememorei esse pesadelo e dei-me conta de um esquecido detalhe. O ônibus
 havia partido de minha cidade natal, Vitória da Conquista, situada no 
planalto do Sudoeste da Bahia, pelo acesso de uma estrada vicinal entre 
muitas outras que dali irradiavam-se. Minutos após a partida - recordei 
então - o ônibus apresentara um defeito e saltamos para ver o que tinha 
acontecido. Na parte traseira do veículo, encontramos G., o professor, 
concentrado em consertar uma peça quebrada do motor. Ele possuía o 
semblante transtornado; compartilhava comigo o pressentimento de que 
morreria em breve e por isso, acredito, ele consertava o motor com 
urgente e imperiosa necessidade. A viagem deveria ser feita a qualquer 
preço e suas únicas palavras designavam o destino programado: estávamos 
indo para Buenos Aires. Ao chegar em casa abri o mapa-múndi sobre a 
escrivaninha do quarto e localizei as duas cidades como pontos extremos 
de um segmento de reta. Rememorei o nascente e o poente no céu da minha 
primitiva cidade, deduzi os pontos cardeais e a orientação cartográfica 
da estrada vicinal onde começara a onírica viagem. Não sem espanto 
descobri também que o seu prolongamento coincidia com o segmento da reta
 que tocava o coração da cidade de Buenos Aires. O meu amigo sonhado 
tinha pressa em consertar o motor do ônibus. Sabia qual era o nosso 
urgente destino e sabia também, como bom professor, que uma reta era o 
caminho mais curto entre dois pontos e qual era a estrada ideal entre 
tantas outras da cidade de origem; eu não sabia nada. Estava dormindo. 
Nunca antes havia especulado sobre questões cartográficas, nem com os 
pontos cardeais da minha esquecida cidade. Este conhecimento 
independente de esquemas experimentais é o que os filósofos chamam de 
transcendental e a impessoalidade desta intuição, à sombra de uma razão 
adormecida, aponta para uma dimensão do pensamento que ultrapassa a 
mente humana e que flutua entre as coisas envolvendo o relevo do mundo e
 configurando um espelho para o nosso entendimento iluminado!
 

 
 
 
 
 
 
 
 
 
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