Não costumamos dar muita importância aos sonhos
que temos minutos antes de acordar. São como espumas que vêm dar na praia, já
no fim da travessia, sem mais o mistério e a amplidão dos sonhos profundos.
Este, porém, que hora relato foi supimpa, e entrou para a minha coleção de
sonhos transcendentais (meu tio Fabinho colecionava nuvens, em fotos da sua
máquina Kodak, eu coleciono sonhos... Mal de família!). Era noite escura, mas o
céu era de algum outro e desconhecido planeta, pois alguns astros gigantes e em
nada semelhantes ao sol ou à lua cruzavam o céu. Por detrás de uma montanha
podia-se ver um planeta hercúleo e nebuloso se pôr com seu anel saturnino quase
a se enganchar no pico pontiagudo. Outro parecia uma imensa brasa adormecida e
carbonizada. Eu e mais dois conhecidos, um casal que a memória uniu nesse
episódio, mas que nunca se conheceram na vida real, estava ao meu lado. Cada um
de nós sentados em uma pequena boia de borracha, parecida com câmeras de ar de
pneus de caminhão. Estávamos flutuando sobre um rio caudaloso e descíamos de
costas, sem ver o que vinha pela frente. Era preciso ter confiança e eu tinha
medo. Em instantes a correnteza nos arrastou em um mergulho que bem poderia ser
um túnel ou fora o céu que escureceu, pois nada se via, só o suave e
vertiginoso deslizar das boias sobre a água fria. Não demorou muito e chegamos
perto de uma margem com areia, juncos e alguns caniços. Tentei remar com os
braços, mas a corrente continuava vigorosa. Era preciso saltar e caminhar até a
margem, com água então na cintura. O detalhe era que o leito do rio, de onde
estávamos até o seco, era coalhado por ossos humanos, precisamente ossos de
meus antepassados. Era preciso pisar sobre tios e avós, bisavós e outros
desconhecidos ancestrais. O casal que estava comigo não teve coragem de pisar
nos seus e preferiram seguir viagem, mesmo com o sentimento compartilhado de
haver algum abismo mais na frente por onde o rio escoava. Eu pisei sem remorso
algum e parecia saber de um modo vago e íntimo quem era aqueles que eu pisava,
ainda que nunca houvesse escutado deles qualquer alusão ou comentário nesta
vida. Alguns eram tão envelhecidos que se partiam com o meu peso, fraturei
clavículas, omoplatas e bacias encardidas enquanto ia me recordando de pessoas
jamais imaginadas a cada osso que estiolava sob meus pés. Cheguei enfim à
margem e o dia clareava. Já não havia mais nada sideral na paisagem. Somente
grama, murundus e estrume seco de vacas. Foi como se, ao pisotear em meus
antepassados e profaná-los, eu me desconectasse do passado e do rio caudaloso
de memória transcendental que eles arrastam. Segui andando para a superfície,
para o presente feito de vigílias insones, para a fina camada de perversidades
que é este mundo acordado de onde vos envio esta enfadonha página!´´
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