quinta-feira, 2 de novembro de 2017

VERBETES PITORESCOS & MEMÓRIAS PRECIOSAS!



Quando seu motorista me apanhava no Rio Vermelho, onde morava, em meados de 1995, e me levava a sua casa para concluir uma tradução, Jorge Amado me pedia para traduzir um texto de um acadêmico francês sobre seu conto A MORTE E A MORTE DE QUINCAS BERRO D'ÁGUA.
Não que ele não soubesse traduzir, mas alegava ter catarata, que lhe consumia a visão, além da idade bem provecta. Em uma passagem que o resenhista citava a existência embriagada de Quincas, eu sugeri traduzir por " SUA BÍBULA EXISTÊNCIA", do latim "bibûlu", que bebe muito, absorvente. Jorge Amado discordou dizendo-me que o povo jamais iria entender uma palavra destas! Na época eu não tirava da cabeça a cena de Jorge Amado ainda com vigor nas pernas, correndo atrás de Glauber Rocha no Pelourinho e pressionando este: _ GLAUBER! GLAUBER! GLAUBER! QUANDO QUE VOCÊ, AFINAL, VAI FILMAR TIÊTA?? E o Glauber, gesticulando os braços, respondia: _ ANO QUE VEM, JORGE! ANO QUE VEM! ANO QUE VEM!
Tomado dessa mesma audácia, eu repliquei:
_ Que porra de povo, Jorge! Povo nenhum vai ler seus livros no futuro! Quem irá ler serão uns poucos acadêmicos, pesquisadores de literatura! O divórcio do povo com a literatura é irreversível!
Ele fez uma expressão de inquietude e dor, mas deve ter se consolado com a expectativa de acadêmicos do século vinte e um debruçados sobre seus livros. Acabou concordando com meu especioso latinismo e frisou que eu tinha a alma "bíbula" de erudição, seguindo a tal comentário uma jocosa gargalhada. Foi a última imagem que guardo dele e que hoje rememoro no estertor das últimas horas deste 02 de novembro em que celebramos a memória dos mortos!

PRURIDOS MORAIS DE UMA MULA ARREPENDIDA!

Antes desse aplicativo de mensagens anônimas, sarahah, antes das redes sociais, eu coloquei um anúncio nos jornais das principais capitais do Brasil me oferecendo para reenviar correspondências de Salvador-Ba, onde então morava, para moradores de outras cidades que queriam disfarçar suas cartas anônimas. Você mandava-me a carta anônima fechada e com o endereço do destinatário. Colocava dentro de outro envelope a mim destinado e uma cédula de 10 Reais (na época, um dinheirão). Assim como não precisava se identificar na carta anônima original, também para mim não precisava por o nome verdadeiro, o que era uma garantia de anonimato para o usuário. Eu ia aos Correios e postava a carta como se ela fosse originária de Salvador, o que eliminava suspeitas em relação ao emissário. Choveram correspondências. Cheguei a receber duzentas cartas em um único mês, vindas de todo o Brasil. Um dia, eu resolvi parar com isso, com o pressentimento de haver muita maldade e ódio nessas cartas anônimas, chantagens ou ameaças de imprevisíveis consequências. Algumas até não reenviei e uma delas cheguei a abrir (meu segundo e único crime até hoje perpetrado {o primeiro foi ter esfaqueado um petista ladrão na rua do Pela-Jegue}): o conteúdo, escrito por uma suposta amante abandonada de um político famoso, tinha tanto palavrão e obscenidades que parecia caderneta de fiado em puteiro. Mostrei o conteúdo para um amigo meu, escritor famoso e meu vizinho no Rio Vermelho. Ele estava escrevendo o seu último livro e copiou, com arte e talento, vários textos dessa carta, mas não chegou a publicar. Aguardo ansioso pelos seus textos incompletos para rever esse medonho linguajar que tanto me inspira até hoje! SARARAH!


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