Morávamos
 em um velho e imponente casarão que pertencera à família da minha 
esposa, o Solar da Castanheira, a dois quilômetros da pequena cidade de 
Liberdade-Ba, de onde podíamos ver suas chaminés tremeluzindo durante as
 manhãs e as andorinhas bailando em seus telhados ao por do sol. Um 
impreciso pomar que começava ao lado da casa e ia se prolongando sem 
ordem e limites até a margem de um rio, a
 ponte sobre ele e um cemitério era tudo o que nos separava da cidade. 
Muitas vezes fiz esse percurso a pé, do Solar até a feira no fundo do 
mercado municipal, quando era um simples jardineiro e encarregado de 
serviços da família Rigoletto. Hoje, após ter me casado com a única 
filha deles e me tornado dono de todas as terras e propriedades, quase 
não vou à cidade e, quando o faço, uso um dos três automóveis que 
possuímos. Dono de tudo não é exatamente o termo correto, pois somos 
casados com separação de bens e só em caso de morte de minha esposa é 
que eu seria mesmo o verdadeiro proprietário. Ela me amava nessa época. 
Eu era belo, rude e de uma inabalável autoconfiança, como um intuitivo 
estudante ciente do seu sucesso com as garotas do colégio. Seu amor por 
mim durou toda a sua vida e eu aprendi a conviver e ser amado sem 
arroubos ou grandes desavenças. Confesso que não a amava e que o sonho 
torpe de ser o dono de tudo aquilo, das terras em que minha família fora
 serva durante décadas, era o motivo maior de estar casado. Não que ela 
me desagradasse... Mas não saberia falar com honestidade de meus 
sentimentos em relação a um ser tão mutante e imprevisível como as 
mulheres. Além do mais, não é um romance o que tento escrever, e sim o 
registro de um episódio que, a cada dia que passa, ganha mais relevância
 em minhas recordações, ainda que eu não o tenha levado muito a sério 
quando ele ocorreu. 
Corria o mês de junho e estávamos todos envolvidos 
com os festejos tradicionais dessa época, quando ela teve que viajar às 
pressas a visitar uma tia moribunda em Salvador, deixando em suspenso se
 iria voltar a tempo para as festas juninas. Levei-a ao aeroporto de uma
 cidade vizinha e me despedi lhe prometendo que tudo estaria pronto para
 quando ela retornasse. Voltei para casa e assim o fiz. O arraial ficou 
uma belezura, mas ela não pode voltar a tempo. Festejei mesmo assim e me
 esbaldei nessa festa. Era aproximadamente cinco horas da manhã quando 
me despedi do último convidado e voltei da porteira para apagar as 
luzes. Era solstício de inverno e tão cedo não iria clarear. Mal passei 
perto da fogueira e tomei um susto medonho ao ver uma senhora tentando 
se aquecer na brasa adormecida sob as cinzas da fogueira, onde há pouco,
 crianças se divertiam soltando fogos. Mesmo encurvada, parecia ter 
quase dois metros de altura e seu dorso giboso, coberto por um longo 
manto encarnado, tremia, apesar de não haver vento algum. Antes que lhe 
dirigisse a palavra, ela segurou em meu braço e me pediu algo para 
comer. Não tive como negar. Nem cogitei. Embora bastante embriagado, 
senti a lucidez que acompanha os fenômenos sobrenaturais me assaltar. 
Fui até a sala e apanhei uma bandeja de comida típica junina e lhe 
ofertei. Ela pôs tudo dentro de um embornal. Eu não ousei fazer nenhuma 
pergunta. Ela me olhou com os mais tristes olhos do mundo e, estendendo 
sua cadavérica mão, me ofereceu um pequeno chifre de caititu, com três 
cortes laterais e preso a um cordão de prata. Disse-me para fazer três 
pedidos quaisquer segurando aquele amuleto que seriam eles prontamente 
atendidos. Tomei aquela superstição como um bom sinal de que ela estava 
indo embora e a acompanhei com os olhos hipnotizados no seu vulto pela 
estrada onde a noite persistia em reinar embora o dia já raiasse nas 
laterais da estrada. Dormi ali mesmo na varanda, em uma rede perto do 
calor e acordei meio dia com o sol queimando-me o rosto. O amuleto 
estava no bolso, mas só atinei para ele muito mais tarde e considerei o 
estranhamento daquela visita e do amuleto como efeitos da bebida que 
ingeri a noite inteira. 
Os dias se passaram. Acostumei-me ao “dulce far 
niente” sem a minha esposa fleumática a organizar a minha vida e os 
afazeres da propriedade. Mas ela enfim, após uma sensível recuperação da
 tia adoentada, resolver voltar para casa. Dessa vez de ônibus; e na 
véspera da sua chegada, após confirmar seu embarque, resolvi dormir mais
 cedo para ir apanhá-la logo de manhã na pequena rodoviária a cinco 
quilômetros da nossa casa. Não consegui dormir. Um estranho frenesi 
agitava-me a alma. Fora preciso ficar quase um mês distante da minha 
esposa para descobrir o que eu realmente queria. Desculpem meu cinismo 
em contar assim, de modo tão íntimo, o meu torpe desejo: queria, ou pelo
 menos foi o que pensei na hora, ficar livre dela, sozinho como um 
misantropo monarca, dono de todas aquelas terras sem fim! Não me recordo
 que pretexto eu usei para apanhar no fundo da gaveta o amuleto da 
estranha e segurá-lo crispado entre meus dedos. Olhava para a ponta de 
marfim da presa entre meus dedos gordos e suados e mentalizava, sem 
coragem de articular, sequer labialmente, a minha súplica:
_ EU 
QUERO QUE LUBIANA MORRA! EU QUERO QUE LUBIANA MORRA! EU QUERO QUE 
LUBIANA MORRA!
- Com esse pensamento obsessivo se espalhando no espaço 
como ondas em um lago, adormeci mergulhado em um sono lorpa e pestilento
 onde animais selvagens copulavam na mata virgem em guinchos guturais!  
Acordei com o telefone se sobressaindo aos estrídulos insanos do sonho. 
Atendi com um pressentimento e quase desmaiei com a notícia: O Ônibus 
havia sido assaltado! Houve pânico e, entre as três vitimas fatais de um
 tiroteio, estava a minha esposa, cujo corpo me esperava em um hospital 
próximo ao trágico incidente. Saí em disparada, sem trocar sequer a 
camisa do pijama e viajei ao seu encontro com a alma dilacerada. A dor e
 o remorso intercambiavam em meu peito seus trapos pontiagudos de crua 
realidade. Ora o acidente não passava de um trote, um engano, e a culpa 
por desejar a morte dela me angustiavam, ora ela estava mesmo morta e 
não haveria espaço para superstições ou crendices nesta aziaga 
coincidência em torno daquela fatalidade!  Peço desculpas para saltar a 
descrição do enterro e da melancolia que se apoderou de mim nos meses 
que se seguiram à minha estúpida viuvez. As paixões tristes, mesmo 
quando apenas rememoradas, seqüestram meu discernimento e me deixam 
confuso. Sei que sofri muito, e o arrependimento calcado na superstição 
daquele amuleto começou a me torturar cada dia mais. Com o tempo passei a
 acreditar que eu a amava de fato, talvez uma forma inconsciente de 
atenuar o remorso, aceitando minha participação criminosa no ato e me 
tornando um crédulo em obscurantismo e malefícios. Chego inopinadamente 
ao desfecho desse breve e doloroso relato. 
Era o dia do seu aniversário e
 durante toda a manhã não parei de pensar em Lubiana. Nuvens escuras 
escorriam vertiginosas pelo céu de abril. A fazenda estava deserta, pois
 era domingo e os funcionários folgavam junto aos seus familiares. 
Esquentei meu almoço no microondas mas não comi quase nada e após um 
sono inquieto na rede, tomei um banho e fui visitar seu túmulo no 
cemitério. Quatro anos que ela havia morrido no trágico assalto, mas 
Pistolin, seu cão, ainda se lembrava dela e foi comigo no carro, com 
expressão condoída na cara, assim imaginei. Os poucos minutos em 
silêncio que passei ao lado do seu túmulo me fizeram descobrir o quanto 
eu a amava, e o quanto tentei esconder isso de mim mesmo sob a fácil 
máscara de um avarento. De volta para casa, passei o resto da tarde na 
janela, sob a luz que agonizava, fitando o túmulo de Lubiana com uma 
luneta. Não sei bem por que, mas suspeitava de que ela houvesse me 
traído e que, no dia de seu aniversário, algum ex-amante pudesse 
aparecer discretamente para lhe oferecer flores e saudades. Ninguém 
apareceu, como era de se esperar. Apenas o vento castigando as pétalas 
da coroa de flores que lá deixei. Uma tempestade veio confirmar o mau 
tempo e a chuva começou a cair antecipando a escuridão da noite 
iminente. Preparei o meu jantar, assisti um pouco de TV e subi para o 
nosso quarto onde agora eu ocupava sozinho o leito nupcial. Insone e 
cada vez mais possuído pelas lembranças de Lubiana animando a nossa 
casa, então deserta e fustigada pela chuva, pensei no amuleto e o 
apanhei no fundo da gaveta. Logo após a morte dela, eu o havia lançado 
fora em uma barroca pedregosa e coberta de espinhos, mas não é que 
Pistolin encontrou o maldito e, com um esquisito rosnar, me trouxe entre
 os dentes algumas semanas depois? Mal apanhei o chifre e um raio, 
caindo em algum ponto da rede elétrica, mergulhou a casa em lúgubre 
escuridão. Tomei coragem de assumir para mim mesmo a falta que sentia, 
chorei copiosas lágrimas e, apertando o amuleto entre os dedos, 
supliquei que ela voltasse e que se erguesse daquele túmulo miserável, 
voltando para aquecer o meu solitario coração! Mal terminei de formular o
 meu desesperado e irrefletido desejo para que o vento batesse com força
 inaudita a porta dos fundos, na cozinha, que imaginei ter fechado bem e
 passado a tranca de madeira. A vela na cabeceira tremeluziu espargindo 
sombras trêmulas na parede e no teto. Em seguida, me pareceu ouvir 
ruídos de ossos estalando e um fino gemido de dor. A impressão ficou 
mais forte quando Pistolin, todo arrepiado, abriu a porta do quarto e 
pulou sobre a minha cama ganindo. 
Nunca fui muito imaginativo e acho que
 isso me deu forças para continuar ouvindo com redobrada atenção os 
ruídos engendrados no seio da escuridão sem tirar muitas conclusões. Não
 consegui, entretanto, manter-me calmo ao ouvir nitidamente um som 
semelhante a passos nos degraus de madeira em direção ao meu escuro 
quarto. Era nítido, pelo ritmo impresso e por outras coisas inefáveis 
que sabemos de alguém com quem compartilhamos muito, que Lubiana estava 
rediviva, ressurreta e subia as escadas em direção ao nosso leito de 
amor. Imaginei em uma fração de segundo toda a nossa vida conjugal 
restaurada: seus caprichos, sua fleuma irascível, suas regras 
domésticas, suas birras e seus queixumes de amor. Vi escapar de minhas 
mãos as rédeas da fazenda e dos negócios que iam de vento em popa (minha
 conta no banco engordando que era uma belezura só!). Não me contive. 
Havia mais um desejo a ser atendido pelo chifre macabro. Poderia 
pressentir os ossos gelados de Lubiana se aproximar da maçaneta. Agarrei
 o chifre e supliquei:
_ EU QUERO QUE LUBIANA VOLTE DEFINITIVAMENTE PARA SUA COVA, E LÁ PERMANEÇA ATÉ O DIA DO JUÍZO FINAL!
Mal formulei pela terceira vez minha condoída súplica e a luz elétrica 
voltou. A tempestade subitamente se amainou, mal restando um chuvisco na
 janela por onde o vento trazia um cheiro doce de jardins molhados a 
expulsar uma voluta de miasmas cadavéricos que imaginei flutuar na porta
 entreaberta do meu quarto.
 

 
 
 
 
 
 
 
 
 
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