domingo, 16 de agosto de 2015

TROCANDO DE FÁBULA



Um fato notável entre as serpentes é a sua capacidade de trocar de pele várias vezes durante a existência a tal ponto de ser impossível identificar a sua idade pela aparência: são sempre jovens. 

Saibam agora a origem desse fato assombroso. Tudo começou no Paraíso, ou nas imediações dele quando Adão, coagido por Eva, voltou ao Jardim do Éden na tentativa de falar com Deus. Como era de se esperar, foi interditado seu acesso pelos anjos de fogo perfilados no portão, mas Adão tanto suplicou que um Arcanjo finamente veio até o lado de fora ouvir os seus queixumes. 

De todos os males que passaram a sofrer após a queda, contou Adão, as dores, o suor derramado no trabalho, a presença da morte, o parto doloroso de sua mulher... Nada era pior do que o envelhecimento. Pelo menos essa era a maior das lamentações da sua esposa Eva. Choramingando pela casa, quebrando os espelhos, evitando até mesmo o seu reflexo na água das fontes e ribeirinhos, ela o expulsou de casa e disse que só o receberia de volta quando ele desse um jeito nessa tragédia de ver sua pele estiolada, seus cabelos embranquecidos, sua carne lentamente se tornando flácida e macilenta... Adão estava desesperado, pois sabia como sua esposa era voluntariosa. 

O anjo adentrou o Paraíso e voltou três dias depois com um reluzente frasco de cristal, menor do que uma laranja e o entregou dizendo-lhe:
_ Dê isso à sua esposa. É a água das fontes do Paraíso. Peça-lhe que beba de um único gole que sua juventude e viço lhes serão devolvidos. Isso não a impedirá de morrer no dia determinado, mas, enquanto viva ela for, terá sempre o frescor e a aparência dos primeiros dias!

Adão caiu de joelhos agradecido e voltou correndo para o seu lar do outro lado das montanhas, lá onde as águas do Paraíso já se corrompiam e perdiam todo o seu mágico encanto. Chegou em casa esbaforido. Eva havia saído com seu filho Abel, para ver um portentoso animal que este havia encurralado em uma de suas armadilhas. 

Adão deixou o frasco sobre o toucador de espelhos quebrados e foi ao encontro da esposa. Queria lhe fazer uma surpresa com tão mágico presente. Foi quando Caim voltou do seu pomar a tempo de perceber aquele líquido reluzente que espalhava uma luz fulgurante como chamas frias e azuis sobre o barro das paredes. Ficou intrigado e levou o frasco até à janela para ver melhor à luz do sol. Providencialmente, a serpente passava por aí, rastejando, pois havia perdido as pernas e braços, mas sendo ainda capaz de falar e mais pérfida do que nunca. 

_ Não sabe o que é isso, meu caro? Um líquido que seu pai trouxe para seu irmão Abel. Quando Abel derramar o conteúdo desse frasco nos arroios das pradarias onde caça, os animais que beberem ficarão adultos, gordos e enormes no mesmo instante. Tão gordos que não conseguirão sequer fugir do caçador, e Abel será um poço de benção e fartura! 
_ Pra mim ele não trouxe nada! – Rangeu Caim, trêmulo de inveja!
_ Mas você pode borrifar esse líquido sobre as flores do seu pomar e elas se encherão automaticamente de frutos carnudos e saborosos, muito mais saudáveis do que a carne dos animais!
_ Mas como eu poderia borrifar isso sobre tantas e espalhadas flores do meu pomar?
_ É fácil! Despeje o conteúdo do frasco em minha boca. Eu irei de árvore em árvore e borrifarei com minhas narinas sobre elas. Não demora muito e você poderá vir atrás, me seguindo, com o seu cesto a colher figos, damascos, uvas, pêssegos, amoras...
E cada fruto mencionado era seguido por uma imagem vívida da coisa pronunciada, pois que antes a linguagem era capaz de transportar as imagens como um fluido holográfico que hoje não possuímos mais.

Caim não demorou muito em sofrer o encanto daquela tentação. Abriu o frasco e derramou o líquido inteiro no goela abissal do sibilino réptil. É por isso que, ainda hoje, elas nunca envelhecem e, no lugar onde ela nos morde, se tivermos a sorte de sermos curados por uma intervenção medicinal, a pele em torno da mordida, cerca de um palmo ao redor, jamais envelhece, permanecendo até o fim dos nossos dias como pele de criança recém-nascida, lisa, viçosa e enfeitiçadamente jovem.
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