segunda-feira, 27 de julho de 2015

UNICÓRNIOS NO ESPELHO


Todo mundo, por intuição ou empiricamente, percebe facilmente uma bizarra característica não-numérica do capital monetário: uma cédula ou cifra qualquer, vale mais do que a simples soma de suas partes (algo que o geômetra Euclides já havia pressentido quando afirmava ser o todo maior do que as partes, visto ser este todo o conjunto das partes mais algo que não está nelas, a saber, a soma!).

Confirmamos isso nos grandes mercados e megastores, quando conseguimos um preço melhor – e, portanto, mais mercadorias – ao comprar no atacado – do que a mesma quantidade comprada por clientes diferentes no varejo. Em outras palavras, uma cédula de cem reais vale mais do que duas de cinquenta reais quando estas, separadas, não podem exercer o poder de barganha. Esse desequilíbrio de valor, quando o capital aviltaa mercadoria e o trabalho, foi denunciado por Karl Marx que não fora, entretanto, capaz de pensar o compasso desse fenômeno com outro similar que regula o valor da mercadoria e do trabalho pela escassez e excesso, a famosa lei da oferta e da procura, e que compensa e reequilibra o corrosivo poder de barganha do capital acumulado.

Se o produto é escasso, a compra de todo o estoque não interfere mais no preço, pois de um jeito ou de outro a mercadoria será toda vendida pela demanda aquecida e não será depreciada. Voltando ao exemplo de Euclides, é como se o mercado fosse uma casa de espelhos e as partes (mercadorias) formassem infinitos conjuntos virtuais, onde nenhuma soma efetuada por este ou aquele comprador-espelho tivesse mais valor ou realidade do que outro.

E é exatamente isso que acontece quando alguém, utilizando do seu gigantesco capital acumulado, compra todo o estoque de uma mercadoria: o preço depreciado na compra volta a subir tão logo a mercadoria começa a escassear. A especulação acaba por não trazer prejuízo nenhum para o valor do trabalho injetado na mercadoria e serve apenas para regulamentar os estoques como bem o sabem os joalheiros de Antuérpia, os donos de galerias de arte em Londres e os operadores das bolsas de commodites, em Nova York.

Karl Marx simplesmente adotou o sentido pejorativo deste fenômeno ao lê-lo e não o criticar na Ética a Nicômaco, de Aristóteles. Nesta obra, o Estagirita, pela primeira vez, aponta os perigos da acumulação do Capital como uma ameaça ao poder político da Pólis, pautado na democracia e na isonomia dos “homoióis”, os iguais perante a lei. Aristóteles nomeia esse acúmulo de poder político injetável no capital retido de “Mauvaise Krematístique¹”, embora lhe dando uma conotação notoriamente política, como instrumento de persuasão e barganha dos votos das assembleias, e o Karl Marx pensava ser genial ao adaptar esse conceito ao fórum das ciências econômicas.

Gilles Deleuze chega ao ponto de diagnosticar nessa disphoria do capital a origem de uma doença psíquica, a esquizofrenia, por vias que prefiro agora eludir para não cair no delírio medonho em que esse filósofo francês caiu ao catapultar o mesmo delírio de Marx em suas apressadas leituras de Aristóteles.

Prefiro continuar acreditando que o acúmulo de capital trás um benefício imenso, quando associado ao liberalismo econômico dos mercados autorreguláveis, impedindo o fetichismo de mercadorias rarefeitas e fantasmáticas por conta de uma demanda excessiva, isso sim, uma verdadeira esquizofrenia, afinal, para citar um só exemplo entre muitos, não é justamente a falta de carne para o consumo a causa dos norte-coreanos acreditarem na existência de saborosos unicórnios?

¹ Para Aristóteles, utilizo sempre a tradução de J. Tricot, apud ARISTOTE, OUVRES, Ed. Vrin, Paris
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