quarta-feira, 22 de julho de 2015

O JOGO DO TEMPO



Quando não me perguntam o que é o tempo, eu sei; quando me perguntam, não sei!

₢ Santo Agostinho, Confissões, Livro X, do Tempo. 

A primeira e mais "palpável" sensação do tempo transcorrido que possuímos é o da nossa vida íntima, nosso ser interior que, sempre que nos desapegamos do mundo externo e para nosso eu nos voltamos, sentimos o tempo passar, o rio escorrer como o fio do colar perpassando as pérolas de cada distinto momento em que vivemos (metáforas emprestadas ao Henri Bergson que escreveu páginas memoráveis sobre a intuição do tempo). A música ilustra muito bem esse escoar vívido e colorido de algo que, mesmo imaterial e invisível, possui liga e visgo, ritmo e sentido: o tempo! Afora essa intuição interior, também possuímos uma sensação do tempo transcorrendo no reconhecimento que fazemos das efemérides, das marcas cronológicas e vestígios abstratos por ele deixados: sentimos cada momento pertencer a tal ou tal hora, manhã ou tarde, mais também temos um dom para distinguir os dias da semana, um quê especial na paz de um sábado ou no tédio de um domingo; indo mais além, sentimos as estações mudarem, tanto pela variação climática, como por uma série de sinais discretos e singulares que os poetas tão bem souberam registrar: a melancolia do outono, a nostalgia junina, os loucos amores de uma mágica noite de verão... Essa maneira de sentir o tempo passar, ainda que explicada pelos dados meteorológicos e pelos ritmos circadianos de nossas glândulas cerebrais, também é a confirmação de um tempo externo à nós, de uma vivacidade íntima aos nossos calendários, de uma "música" no mundo onde a dança dos corpos ganham cadência e harmonia. Ambas intuições, na medida em que pressupõe corpos materiais misturados ao tempo, a saber, o meu corpo no caso do tempo interior e os corpos da natureza no caso do tempo meteorológico, são passíveis do reducionismo científico que reduz o tempo ao "número do movimento - destes corpos - em relação ao anterior e ao posterior" (definição sagaz do mestre Aristóteles). A própria física moderna não consegue libertar o tempo de sua intrínseca relação com o espaço, sendo anátema qualquer tipo de tempo absoluto fora dos eixos de espaço-tempo que a imperiosa Teoria da Relatividade pressupõe. O objetivo desse apontamento, conforme desenhamos no começo, é justamente a postulação de um tempo puro, ontológico, independente do espaço e dos corpos. Esse tempo, se houver, deve ser procurado no limiar, na fronteira entre o nosso eu e o mundo exterior, nos interstícios e hiâncias destas duas condições, além do meu eu interior, aquém do mundo externo. Uma condição de possibilidade para toda intuição do tempo, interior ou exterior a nós. Quando Emmanuel Kant elegeu o tempo como condição de possibilidade para toda e qualquer experiência possível, ele o fez a partir do seguinte arrazoado: O Espaço é a forma que organiza toda a sensibilidade que possuímos do mundo externo, não podemos experimentar nada fora de nós que não esteja a priori localizada e organizada no espaço; o tempo, por sua vez, é a forma a priori de nossa sensação íntima, pois só nos intuímos como existindo no interior de um fluxo temporal, de uma sucessão contínua e irreversível de momentos escoando. Tanto a sucessão dos nossos estados íntimos como a simultaneidade dos corpos no espaço só podem ser afirmadas a partir dessa forma a priori da nossa sensibilidade, o tempo! Aqui é a clivagem, a torção onde o tempo assume ser a forma dominante de nossas sensações, pois, além de organizar nossos estados íntimos no seio de uma ordem cronológica, também organiza a percepção do espaço externo, visto que, o movimento dos corpos ao nosso redor só possuem ordem por causa de ser as nossas percepções espaciais também organizadas no fluxo do eu que as possui, por exemplo, o sol é percebido pela forma a priori da minha sensibilidade que me dá, do mundo externo, uma radiografia sempre e necessariamente simultânea, imediata; na medida em que percebo o sol se deslocando e o dia transcorrendo, tal percepção do mundo externo só é possível pelo tempo que organiza minha duração íntima e, por tabela, a duração do mundo externo. Comete-se um grave erro na filosofia quando atribuem a essa forma a priori da sensibilidade, o tempo, um estatuto lógico apenas, como se o tempo e o espaço fossem apenas um estofo subterrâneo das categorias do entendimento. Como forma lógica apenas, como uma condição de possibilidade abstrata, o tempo não poderia transcender seu foro íntimo e abraçar a outra forma a priori do espaço, organizando os movimento do mundo externo. Seria um paradoxo do tipo o paradoxo das classes de Bertrand Russel ou o Teorema de Godel onde uma classe não pode ser tomada como elemento do conjunto que ela representa, onde o continente não pode ser auto incluso no conteúdo, traduzindo, se meu corpo se move no espaço, a forma que organiza as percepções desse espaço dando sentido ao movimento não pode ela mesma se mover (pena que Bergson e Deleuze tenham fracassado em separar Tempo de Espaço, teriam me ajudado e muito nessa hora). Resumindo para abreviar, não sendo psicológico nem lógico, quartus non datur, o tempo só pode ser alguma coisa, um extra-ser, um aliquid. Prometo voltar a esse tema em consideração aos raros e valentes leitores que me acompanharam até aqui! Vou na física quântica pescar!
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