Cena 01 – EXTERNA – Dia 01:00
Em grande angular, um longo e retilíneo trecho da rodovia 242, Chapada Diamantina. Um automóvel desliza silencioso e distante. Série de sons desarmônicos, extraídos de sinfonias experimentais e dodecafônicas compõe a trilha incidental. Ouve-se ruídos de ferramentas, mugidos, ranhuras, espirros e choro de crianças. Com chiados típicos do vinil, duas vozes – mais tarde identificadas com as duas personagens no interior do automóvel – dialogam:
PROFº JACQUES
- Você precisa ver as esculturas que ele criou em tronco de árvores. São ocas, com grandes bocas esculpidas e dispostas de tal maneira que, quando o vento sopra entre as árvores vai produzindo em cada tronco uma nota musical! Se o vento soprar na direção certa, do noroeste, elas tocam um ritornelo de Haendel! Assustador!
JACQUELINE, A JORNALISTA
_Você chegou a ouvir?
PROFº JACQUES
_ Não. Estava sem vento no dia. Mas só de ver as carrancas nos troncos! Brrrr! Sujeito estranho esse Rodriguez! E as grandes antenas em forma de orelhas humanas!... Perto delas, as esculturas de Mário Cravo parecem parquinho de diversão!
JACQUELINE, A JORNALISTA (manuseando apontamentos)
- Estou muito ansiosa, Jacques! Vai ser a grande matéria da minha vida! Já imaginou, um cientista, no Brasil, descobre um método para gravar todos os sons da História da Humanidade! Cacilda! Ele ganha o Nobel e eu ganho... o que é que eu ganho mesmo?... Vê se explica melhor essa história, mas sem essa de cálculo infinitesimal, de ressonância quântica ou radiometria... não posso escrever essas coisas em um jornal!!!
O diálogo torna-se inaudível, abafado por cacarejo de galinhas, tiros de carabina, rabecas desafinadas, hélices de helicóptero, espirros e outros sons escatológicos. Com o diálogo, desaparece também no horizonte o carro das personagens. CAM fecha sobre o negro asfalto até escurecer todo o quadro (FADE IN).
CENA 02 – INTERNA – Noite 02:00
Um longo travelling por um jardim noturno até focar uma orelha humana cortada e caída sobre a grama. A câmera parece querer entrar pelo ouvido em busca dos sons estranhos que se escuta. CAM recua e enquadra a TV onde essa cena se desenrola. JACQUELINE, de roupão rosa, desliga a TV e se aproxima da cama onde JACQUES está recostado na cabeceira sobre os travesseiros e um notebook no colo. A luz led do monitor ilumina de azul os cabelos brancos do seu tórax.
JACQUELINE
- Que idéia cretina essa! Alugar um quarto de casal para economizar. Vc pelo menos deveria dormir no sofá... Ou no chão!
JACQUES parece concentrado no computador. JACQUELINE aproxima-se da cama e apaga o abajur. Despe o roupão e revela estar completamente nua, rapidamente se enfia sobre um cobertor.
JACQUELINE
_ Mas não pense que vamos fazer amor! Não enquanto eu não tiver a minha matéria. Agora vá, mostre-me esses sons malucos que vc afirma ter gravado!
JACQUES
_ São da época em que trabalhamos juntos em Salvador. Lá se vão cinco anos. Não tinha a fidelidade que ele afirma ter hoje. É preciso um pouco de imaginação... ouça esse...
Do notebook, ouve-se o som de grandes lonas farfalhando ao vento, gaivotas, marolas e grande algazarra em língua espanhola.
JACQUES
_ Nossos sensores identificaram o local de origem, o porto de Palos de la Frontera, na Espanha e a data, 3 de agosto de 1492. Isso lhe lembra algo? Cristóvão Colombo partindo para descobrir o novo mundo!!! Acredita nisso? Agora ouça esse cochicho ao fundo... Rodriguez dizia ser a Rainha de Castela se despedindo dele, que Colombo a seduziu para conseguir as três caravelas! Mas isso os sensores não puderam confirmar! Rodriguez viaja muito!!
JACQUELINE
_ Caramba! Como vocês conseguem isso?
JACQUES
_ Foi você disse para eu não usar termos complicados! Rodriguez aplicou aos sons subatômicos uma teoria famosa, chamada “Geometria dos Fractais”, assim foi capaz de ampliar e tornar audíveis os sons, mas se não fosse o papai aqui... Eu que tive a idéia de usar o “Efeito Doppler” sobre eles para descobrir as coordenadas de origem dos sons...
JACQUES olha para o lado e percebe JACQUELINE extremamente sonolenta. Olha com volúpia para seus ombros desnudos, os cabelos cheios feito um ninho onde repousa a cabeça de linhas ovais. Desliga o computador. O quarto mergulha na escuridão. Os sons supostamente atribuídos ao navegador Colombo, e minimizados durante a fala de Jacques, voltam a se ouvir. Um casal de apaixonados se ama e, entre sussurros e gemidos, chamam-se - em castelhano – de Isabel e Cristóvão.
CENA 03 – EXTERNA – DIA (Frente da pousada e trilha) 00:45
JACQUES E JACQUELINE conferem as mochilas sobre uma mesa da varanda. O dono da pousada passa-lhe algumas instruções com um grande mapa aberto. Um grupo de três outros hóspedes, duas garotas e um rapaz, estão indo para locais bastante próximos e se oferecem para companhia. Um cachorro e um guia completam o elenco. Eles partem rumo ao Vale do Pati, onde supostamente estaria o cientista ermitão. Seguem em relativo silêncio. Durante o longo Travelling, CAM recursivamente desenquadra os atores e abre-se para o entourage de montanhas, vales, ravinas e escarpas do percurso. Nestes momentos de desenquadramento, o contínuo sonoro com os eventuais diálogos torna-se analógico, com ruídos, como se estivesse sendo gravado ou gerado em local diferente do SET. A intenção é criar o pressentimento – não confirmado – de toda a jornada do casal estar sendo monitorada pelo cientista Rodrigues, pressentimento este capaz de conferir à CAM uma empática subjetividade. O grupo para ao atravessar um pequeno córrego. O cão se atira na água e as duas garotas resolvem se banhar; logo o grupo inteiro folia nas águas vermelhas do riacho. (Não há cortes. O plano-sequência é entendido aos limites buscando-se um máximo de naturalidade).
CENA 04 – EXTERNA – DIA (Margens do Riacho) 01:30
JACQUES está sentado sobre um lajedo, com os joelhos dentro d’água e inclinado para trás expondo o tórax e o rosto ao sol. JAQUELINE, submersa até os ombros, está ao seu lado. Os outros se banham mais distantes. O guia dormita sob uma sombra.
JACQUELINE
_ Você não me contou ainda porque se separaram!
JACQUES
_ Os ruídos da cidade começaram a atrapalhar bastante as pesquisas. Houve dia em que só podíamos captar os sons durante duas ou três horas na madrugada... Quando Rodrigues visitou o Vale do Capão e viu a acústica transcendental do lugar, não pensou duas vezes... se mudou de mala e cuia. Só de equipamentos encheu uma pick-up. Mas houve outro motivo também...
JACQUES hesita
_ ... Eu estava muito empolgado. Queria gravar tudo. Queria ouvir o grito do Ipiranga, o coro dos prisioneiros na voz de Caruso, a marcha da coluna Prestes... Rodriguez era contra esse meu delírio. Dizia-me que devíamos concentrar todos os esforços em uma única situação e aprimorar a qualidade dos dados. Ele tinha o rigor, o espírito científico que me faltava...
JACQUELINE
_ E isso era ruim?
JACQUES
_ Em tese, não! Mas comecei a desconfiar de algo profundamente mesquinho e anti-científico nas decisões de Rodriguez: No início dos anos oitenta, ele era professor convidado da UFBa, no instituto de Física e já famoso por seus trabalhos em monitoramento e ultra-sons. Veio a guerra das Malvinas, entre a Argentina, seu país, e a Inglaterra. Ele foi chamado para coordenar a defesa anti-aérea. Antes de partir, houve uma festa de despedida e ele, vinte e dois anos depois, de volta à Salvador, só pensava em gravar essa noite de despedida, precisamente um tango em sua homenagem em que ele dançou com uma aluna por quem estava apaixonado...
JACQUELINE
_ Humm! Começou a ficar interessante! Vou querer saber todos os detalhes dessa parte! Mas veja. Estão nos chamando. Vamos ou ficaremos para trás!
Os dois se vestem e segue o grupo um pouco à frente adiantado. O cão volta com um lagarto morto entre os dentes e tenta devorá-lo rasgando-o com as patas e os dentes. O som da pele dilacerada do lagarto satura e abafa a conversa do grupo novamente reunido. A trilha torna-se íngreme e volteia um grande maciço. O vento assovia e distorce a canção que as duas garotas do grupo cantam, compartilhando os fones de um ipod.
CENA 05 – EXTERNA – NOITE ( Acampamento) 03:00
O grupo acampa próximo a uma cachoeira. O uso dos filtros em CAM (noite americana) permite ver os melancólicos platôs no horizonte. Em volta da fogueira, a conversa flui descontraída.
O JOVEM RAPAZ
_ Da última vez que estivemos aqui, Helena e Roberta acharam o que seria um lugar ótimo para acampar, um banco de areia. Era o leito seco de um riacho. De madrugada, choveu no planalto e próximo do sol nascer desceu uma tromba d’água que inundou a barraca e quase afoga a pobre Helena...
Gargalhada geral.
_... Ela levantou-se toda molhada, de pijamas e disse quase chorando: ...
Em falsete, o rapaz imita uma voz feminina e aflita
_ Eu estava sonhando que o Super-Homem estava bem ali, no riacho, de ceroulas azuis e lavando sua sunga vermelha!
Novas gargalhadas.
HELENA
_ É que à noite, antes de dormir, tivemos um papo estranho. Roberta dizia que todos os super-heróis usam máscara para esconder sua identidade secreta. Somente o Super-Homem não usa máscara e sua identidade secreta é que é uma máscara, o Clark Kent! Fiquei pensando antes de dormir se não é por isso que ele usa a sunga por cima das calças!
Aos poucos, o grupo se dispersa no interior de quatro barracas de lona em semicírculo. JACQUES e JACQUELINE sentam-se sobre um mirante e contemplam o vale escuro sob um céu deslumbrado de estrelas. O som de um romântico violino os envolve.
JACQUELINE
_ Fale-me sobre esse amor do Rodriguez!
JACQUES
_ Pelo que descobri, Rodriguez e um rico fazendeiro do interior disputavam o coração da donzela, Diana Farjal, era o seu nome. Quando ele foi convocado e dançou com ela na festa de despedida, pediu-lhe uma decisão e parece que ela jurou que o amava, que Rodriguez era o escolhido! Foi por ela que ele voltou ao Brasil.
JACQUELINE
_ E porquê ela não a procurou de novo? Ela morreu?
JACQUES
_ Não. Casou-se com o fazendeiro, talvez pensando que Rodriguez estivesse morrido na guerra... ou nunca lhe amou e tenha dito outra coisa durante a festa... Rodriguez sempre foi meio surdo, sabia? Os tiros na guerra só pioraram sua audição. Que ironia! Um surdo inventar um meio de ouvir todos os sons da humanidade!!!
JACQUELINE
_ Beethoven também era surdo!!!
JACQUES
_É verdade! Rodriguez lhe escreveu centenas de cartas e ela nunca o respondeu. Vive com o marido em uma propriedade no Sudoeste do estado. Ele quer, mais do que tudo, ouvir de novo ela jurando-lhe amor! Quer ter certeza se ouviu direito!
Sentindo frio, JACQUELINE entra na barraca e JACQUES a acompanha, antes, porém, recolhendo alguns utensílios em volta da fogueira e pondo mais algumas achas no fogo que cintila labaredas contra a escura noite. CAM mantêm-se fixa, enquadrando sob a luz azul da noite americana os melancólicos platôs. Uma difusa luz brilha dentro das barracas. Em OFF, eles continuam a conversar:
JACQUES
_ Está ouvindo o som da cachoeira lá fora? São bilhões de gotas se chocando com outras tantas nos grãos de areia... Uma audição mais apurada transformaria esse ruído pastoso em centenas de sons distintos...
JACQUELINE
_ Sei como é! É como a visão de dezenas de cores que um animal inferior percebe apenas em preto-e-branco...
JACQUES
_ Meu pai, profundamente ateu, dizia que Deus não poderia ser um só, pois bastaria que duas pessoas orassem ao mesmo tempo para ele se dividir... Meu pai não considerou a hipótese de Deus possuir uma audição superior!
JACQUELINE
_ Você me faz lembrar o sermão que a padre de minha cidade citava sempre na missa: Deus pergunta a Caim sobre seu irmão Abel, recém-assassinado. Caim responde não saber da vida do irmão e Deus afirma estar ouvindo o sangue de Abel escorrendo pela terra, reclamando justiça. Deus tem mesmo um ouvido absoluto!... Será que ele está nos ouvindo agora?
JACQUES (sonolento)
_ Quem? Deus?...
A noite agora é real, profunda e coroada por um céu deslumbrado de estrelas. A fogueira trepida e se extingue lentamente. As luzes das barracas se apagam. Ouve-se o estalar de gravetos sob passos furtivos. De um murmúrio indefinido eleva-se a voz de um pregador narrando o episódio bíblico em que Jacob, no deserto, luta com um anjo durante toda uma madrugada, é ferido por ele e força o anjo a lhe abençoar. Rumores de uma luta tensa e mortal varrem a escuridão. Frases em hebraico reverberam na amplidão do vale.
CENA 06 – EXTERNA - DIA (Trilhas do Vale do Pati) 02:00
Os raios do sol matutino tangenciam CAM e enchem o quadro de reflexos coruscantes. Do alto de uma meseta, CAM acompanha o grupo que se desloca em fila indiana por veredas no fundo do vale ainda escuro e vaporoso. Somente suas vozes são distintas e discerníveis no chiaroscuro da vegetação. Em uma bifurcação, o rapaz e as duas garotas se separam, trocam despedidas afetuosas e, em pouco tempo, desenquadra-se; embora não mais sendo visto, seus ruídos e diálogos permanecerão em OFF por toda a cena reforçando a dilatação transcendental do contínuo sonoro. O guia permanece com o casal de protagonistas.
JACQUES
_ Você disse que Rodriguez vive em uma caverna no Vale Pati?
O GUIA
_ Sim! Todo mês levo as compras que ele me encomenda, Já fui até a Salvador por duas vezes comprar peças para suas antenas esquisitas! Não sei como ele vai reagir ao ver vocês dois!
JACQUES
_ Também não! Principalmente quando eu lhe informar que a justiça me deu ganho de causa e as patentes são minhas! Ele vai ter que me aceitar como assistente de novo! A pesquisa agora terá outro rumo: Ao identificar a vibração das moléculas - o movimento browniano -, podemos medir a propagação do calor na atmosfera. E anulando o movimento das partículas com uma vibração contrária, poderemos resfriar a atmosfera! Iremos controlar o clima do planeta!
JACQUELINE
_ Caramba! Só queria saber como é mesmo essa cena que ele tanto quer ouvir de novo, se não é que já ouviu!
JACQUES
_ Até onde conseguimos capturar, era mais ou menos assim: Uma madrugada de sexta-feira, 12 de Janeiro de 1982. Sons de carros estacionando, garrafas e taças, gargalhadas e um disco de Gilberto Gil, de nome Realçe, tocando repetidas vezes. Sua namorada, Diana, pede silêncio, faz um breve e emocionado discurso de despedida em nome de todos os alunos de Rodriguez e pôe um tango de Gardel, “por uma cabeza”. Ele a convida para dançar. Conseguimos ouvir os sapatos deslizando no assoalho encerado, o farfalhar do vestido, os suspiros sincopados que o tango provoca... mas não ouvimos nada do diálogo que eles sussurraram...
HELENA - Uma das garotas (EM OFF)
_ Quem foi que mexeu no meu Ipod? Que tanto de coisa é essa aqui dentro? Zorra! Até jogo do flamengo estou ouvindo! Escuta isso, Roberta...
ROBERTA (EM OFF)
_ ...Parece uma feira... Um pátio de escola no recreio... Eu falei para não guardar a maconha junto das baterias....
JACQUES, JACQUELINE e o GUIA terminam por desaparecer sob a sombra dos platôs. CAM permanece fixa por alguns segundos enquadrando a paisagem subitamente silenciosa onde apenas o vento vigoroso se faz ouvir (CORTE)
CENA 07 – EXTERNA – DIA ( Vale do Pati) 01:30
Exaustos, os três contornam uma íngreme escarpa. CAM segue-os atrás e os enquadra de baixo para cima (contra-plongée), intensificando – pela adoção desse ângulo – a sensação de esforço e determinação. A todo instante o GUIA pede silêncio e tenta escutar algo. Um e outro pedregulho acidentalmente rola do alto. Um gavião–fêmea grasna algumas vezes, sem ser visto. Eles conversam mas suas vozes ora soam distorcidas, ora não são ouvidas. Em sub-woofer ouve-se rajadas de metralhadora e vôos rasantes de aeronaves e helicópteros. Em explícita alusão ao filme Apocalypse now, vibra no fundo sonoro as cromáticas notas da Cavalgada das Walquírias, de Richard Wagner. JACQUELINE desabafa:
JACQUELINE
_ Não sei onde estava com a cabeça quando resolvi fazer essa matéria. Minha mãe, que é evangélica, vive dizendo-me que minhas idéias são todas coisas do maligno!
GUIA
_ Não pode ser! O maligno não lê nossos pensamentos, nem pensa por nós. Esse poder ele não tem. O que ele faz é soprar em nossos ouvidos, atiçar... Se fingir de outros... A senhora por acaso anda ouvindo vozes?
JACQUELINE
_ Eu, não. Mas o Jacques... Parece não ter outra vida!
JACQUES se adianta e parece não ouvir a conversa dos dois. No alto da meseta já se percebe estruturas artesanais, de metal e madeira, análogas à grandes antenas e pratos de parabólicas. De alto-falantes incrustados nas pedras ouve-se diálogos de antigas cenas protagonizadas por Rodriguez e Diana, sua antiga amada. Os três chegam ao alto da meseta. Um simulacro de portal, feito de pedras empilhadas, ostenta um pórtico de madeira onde se lê: “A cegueira nos afasta das coisas; a surdez nos separa das pessoas!”. O cenário de um exótico jardim semi-selvagem ocupa todo o alto da meseta, culminando em uma caverna incrustada em uma rocha lateral, com explícito formato de uma orelha humana. JACQUES e JACQUELINE hesitam em avançar. O GUIA adianta alguns passos e chama por Rodrigues. Uma distorção de agudos, crepitações e estalos ressoa entre as antenas do jardim e faz o trio levar as mãos aos ouvidos. A transmissão radiofônica de Orson Welles, “A Guerra dos Mundos” de 1938 é ouvida, sobretudo em sua parte final, quando uma invasão por discos voadores é simulada através de sons eletroacústicos. A altura dos sons atinge uma altura insuportável. CORTE
CENA 08 – EXTERNA – DIA ( Entrada da caverna) 01:00
CAM está fixa a poucos metros da entrada da caverna. Uma forte explosão se faz ouvir. Em slow-motion, uma bolha de ar e fogo sobe da caverna e o balé dos objetos lançados fora ocupa todo o quadro por longos minutos: Chusmas de papel, toalhas brancas, um jarro com flores plásticas, um pé de sandálias havaianas, painas de travesseiro, um copo de liquidificador, placas de computador, um pão, dois CDs, plásticos retorcidos, rolos de fio e metamorfas lâminas d’água... Todo o interior da casa/laboratório é cuspido pela explosão. Diferente do estilo caótico anterior, a trilha sonora passa a ser – durante a lenta explosão – uma ilha harmônica de alta fidelidade, onde se ouve a abertura de “A Morte e a Donzela” de Franz Schubert. Aos acordes finais da abertura, CAM volta ao tempo normal. Em contra-campo, GUIA, seguido por JACQUES, entram na caverna. JACQUELINE aguarda entre os escombros da explosão agora levados pelo vento suave. CAM se desloca pelo labirinto seguindo o facho da lanterna do guia. Em um grande vestíbulo esculpido na rocha, entre resíduos de fumaça e destroços, encontram um corpo caído de bruços no chão. GUIA revira o cadáver e tenta inutilmente reavivá-lo. Rodriguez guarda uma hedônica expressão no rosto, como se a morte não quisesse se anunciar com inveja de alguma louca alegria naquele rosto vetusto. Os sons esquisitos extinguem-se completamente. Um ar de desapontamento e angústia cai sobre os atores. JACQUES vasculha inutilmente o espaço em busca não se sabe de quê. GUIA consola JACQUELINE que choraminga com a mão na boca. JACQUES termina por encontrar, entre a mão crispadas do cientista morto, um pen-drive preservado, pelos ossudos e chamuscados dedos, da explosão. Temendo um desmoronamento da caverna, os três se afastam e decidem retornar à pousada em busca de socorro. CORTE
CENA 09 – EXTERNA – DIA (frente da pousada) 01:30
No dia seguinte. O sol brilha vigoroso entre as árvores. De frente para CAM, uma ambulância está parada e com as portas do fundo abertas. JACQUELINE fotografa o invisível interior da ambulância. Depois retorna à varanda e senta-se próximo a JACQUES que ocupa outra mesa ao lado do dono da pousada. Os dois conversam com inaudíveis e curtas frases. Os rapazes da ambulância pedem a JACQUES que assine um papel sobre uma prancheta e se despedem. O desnecessário farolete e a sirene da ambulância destoam do silêncio solene do local. JACQUELINE observa o veículo desaparecer. A sirene em OFF prolonga-se por alguns segundos como recordação de um amargo pesadelo. Ela se levanta, dirige-se ao Chalé e de lá volta com as malas prontas, pondo-as no fundo do carro. JACQUES não lhe ajuda, compenetrado que está em mostrar alguma coisa ao dono da pousada no monitor do notebook. CAM aproxima e enquadra o monitor. Um software de edição roda um arquivo. Ouve um cristalino tango entrecortado por sorrisos e sussurros. Com forte sotaque castelhano, uma voz inicia um diálogo:
RODRIGUEZ
_ O Olavo me pediu aulas de espanhol. Quer ir a uma exposição agropecuária em Mendonza...
DIANA
_ Que bom! Vejo um futuro muito próspero para ele!
... Uma breve hesitação. Um respirar profundo. Rodriguez parece esperar um acorde mais dolente:
RODRIGUEZ
_ Eu estou indo para a guerra! Que futuro você vê para nós dois? O que devo esperar?
Nova hesitação. A voz de Diana parece subitamente embargada e imprecisa. As palavras que se seguem são repetidas várias vezes em escansões que modificam-lhes o sentido, cada um emergindo de acordo com o ritmo da execução, como se manipuladas ou violentadas para revelar algo mais, um intertíscio, uma implicitude, uma confissão de amor. Diana parece ter nessas últimas palavras uma sibilina vidência:
DIANA
_ A MORTE... AMO-TE... AMO-TE ATÉ A MORTE... AMOR... TEAMA... A MORTE AMA-TE... AMOR...
O arquivo termina sem que um sentido preciso se defina. CAM abre-se para o rosto dos dois ouvintes meio atônitos e silenciosos. Em plano médio se vê as árvores de folhas ondulantes. Ao fundo, erguem-se imponentes os grandes platôs da Chapada a disputar com as nuvens as sobras escuras que varrem o vale. Suas estioladas encostas parecem prolongar indefinidamente o eco da sirene da ambulância ao longe. O vento sopra forte sobre as copas, celebrando a vida e varrendo do ar todos os vestígios do amor e da morte, todos os ecos da divina comédia humana... FIM
“A PAZ QUE VOCÊ PROCURA ESTÁ NO SILÊNCIO QUE VOCÊ NÃO FAZ!”
pára-choque de um caminhão visto na rodagem Lençóis - Vale do Capão em dezembro/2009.
0 comentários :
Postar um comentário