Jennifer estava casada com Ronivaldo havia pouco mais de um ano. Viera do interior profundo, desses vilarejos encravados no sertão da Bahia e fora morar em Salvador, onde trabalhou como empregada doméstica e findou por encontrar um pretendente, um homem rico e despreendido, gerente de uma multinacional com anos vividos no exterior e que nunca se importou para a origem humilde dela. Ele a amava, sentia muito prazer em seus braços roliços e em seu corpo ardente, e isso lhe bastava. Ela cuidava muito bem da vida doméstica e, aos poucos, com peculiar intuição e senso prático, começava a interpretar os signos da vida social onde ia naturalmente sendo inserida, basicamente, na vida dos colegas de trabalho de Ronivaldo, pois este era filho único e órfão, com poucos parentes morando no sul do país! No momento em que escrevo isso, Jennifer estava debutando em uma nova atividade de esposa prestativa e zelosa: estava organizando uma festa surpresa de aniversário para Ronivaldo, que completaria 52 anos de idade. Bem verdade que a inicativa da festa, partira de Claudete, esposa de um colega dele e um dos mais assíduos casais a frequentar sua casa com piscina no Acupe de Brotas, bairro bossal e cafonésimo da classe média soteropolitana! Claudete praticamente organizou tudo, com a anuência efervescente de Jennifer que aprendia muito velozmente as regras e etiquetas de um evento aparentemente imprevisível. Encomendara e escondera os salgados e canapés, as bebidas espalhadas e disfarçadas na cozinha, os presentes e, principalmente, o local no sala de visitas, onde os convidados ficariam escondidos, aguardando o momento em que Ronivaldo, entrando em casa, seria surpreendido pelo acender das luzes, pipocar de champanhe entre hurras e parabéns! Não devo esquecer de lembrar que Ronivaldo acabara de ser promovido a gerente geral da empresa, com poder de nomear, promover e demitir quem bem lhe aprouvesse. Era, literalmente, o novo Big Boss! Antes das sete horas, estacionando no alto da Ladeira do Acupe, bem distante da mansão e quase se esqueirando por um portão lateral previamente combinado de estar aberto, foram chegando os convidados: Larry, esposo de Claudete, Heliodoro Sampaio e esposa, Aldemário Seixas e Conceição, que também eram primos em segundo grau do aniversariante e, por fim, Pâmela Martfeld e seu esposo Guto, praticamente um lacaio e secretário da esposa milionária e socialite, sempre presente nas cafonas colunas sociais da mequetrefe July e do Jacques D'Beauvoir, nos antigos jornais soteropolitanos que hoje só servem pra limpar o cu! Com pacotes de presentes logo camuflados pela anfitriã, os quatro casais foram acomodados atrás das cortinas, do sofá, um casal embaixo da mesa e o último, dentro do apertado lavabo que separa a sala de visitas de um solene jardim de inverno. Foi o tempo de se ouvir o portão da garagem ranger e o carro de Ronivaldo entrar projetando a luz dos faróis na janela da sala onde os colegas o aguardavam. Jennifer havia dispensado os dois empregados da casa, prometendo-lhes guardar nacos generosos do jantar (ela não esquecia de sua origem humilde e ainda os tratava como colegas de profissão) e ninguém foi atender o patrão que costumava passar no mercado toda sexta-feira antes de voltar pra casa, fazer as compras da semana e deixá-las no carro para que fossem apanhadas e guardadas por sua esposa e um dos dois empregados. Mas nesta noite, o aniversariante não fora às compras. Entrou esbaforido em casa, percorrendo o vasto e luxurioso corredor de plantas tropicais até a frente da casa onde sua esposa o esperava, já vestida em trajes de festa!
_ Que bom, querida, lhe ver assim tão bem vestida, pronta para sair! - Disse-lhe com ternura enquanto a beijava no rosto, segurando suas mãos. - Vamos sair! Precisamos sair urgente!
_ O que foi que aconteceu? Não havíamos combinados de ficar em casa e ver filmes? Até passei na locadora e aluguei os filmes que vc quer assistir! - Jennifer procurava dissimular não saber do aniversário do marido, para aumentar o impacto da surpresa. Estavam quase em frente à porta da sala onde os convidados ouviam toda a conversa sob o silêncio da noite sideral.
Ronivaldo, entrando em um salão frontal à sala escura, onde funcionava uma espécie de escritório informal, com aparelhos esportivos, gavetas e apetrechos pessoais, seguiu conversando em vóz alta com sua esposa parada na porta, enquanto ela só esperava uma oportunidade para lhe puxar pelo braço e jogá-lo no interior do palco armado para a festa:
_ Meu anjo esqueceu que hoje é o meu aniversário! Que maldade! Se fosse eu a esquecer o seu, ficaria todo o final de semana de castigo! Mas vou lhe perdoar se você me ajudar a encontrar aquele par de ingressos que comprei para o Ballet do Teatro Castro Alves!
_ Ballet do Castro Alves! - Jennifer teve o espírito de tentar prolongar a conversa e tentar dissuadi-lo a restar em casa - Mas você mesmo não disse um dia que a dança moderna na Bahia se parece com um comercial de shampoo, com as bailarianas o tempo inteiro do espetáculo sacudindo e girando as crespas cabeleiras?
_ Sim! Mas hoje será um espétaculo diferente! Uma coreografia do Maurice Bejart! O Bolero de Ravel! É maravilhoso!
Jennifer sempre ficava inibida quando Ronivaldo começava a falar de cultura e de coisas que ele vira na Europa, coisas das quais ela nunca ouvira falar no sertão onde fora criada, nem mesmo nas casas grã-finas onde trabalhou antes de conhecê-lo!
_ Não esqueci do seu aniversário! É que talvez seus amigos do trabalho apareçam por aqui! Sabem como eles são! Vivem nos visitando sem nunca avisar!
Mesmo sem nunca ter ido a um teatro, Jennifer aprendia intuitivamente e sabia que citar os amigos iria justamente intensificar a surpresa quando Ronivaldo descobrisse que eles estavam ali o tempo inteiro, esperando e ouvindo tudo!
_ Justamente por isso! - Respondeu o esposo dela, enquanto vasculhava umas pastas de papéis, de cansados elásticos. - Já imaginou se eles aparecem aqui bem no dia do meu aniversário! Tá rebocado piripicado! É muita consumição! Já basta o dia inteiro no trabalho...
Aquelas palavras caíram como um balde de gelo quente na champanhe gelada da festa! Fosse uma cena de cinema e veríamos a câmara percorrer o interior escuro da sala, iluminado apenas pela luz de contrabando vindo da garagem, onde Ronivaldo esquecera os faróis acesos da sua mercedes, realçar os rostos lívidos de Larry e Claudete atrás das cortinas, Heliodoro e Elaine embaixo da mesa, Aldemar e Conceição espremidos no lavabo... Até mesmo os canapés nas bandejas, aqueles salgadinhos de azeitona, queijos e salames enfiados em palitos, que os baianos chamam de "sacanagem", murchos de constrangimento...
_ Ora, Roni! Não fale assim, meu amor! A Claudete e o Larry! Tão simpáticos e prestativos, um amor de companhia! Adoro quando eles nos visitam! _ Jennifer parecia ser a mais envergonhada de todos.
_ Aqueles dois são dois bajuladores insuportáveis! Mal surgiram os rumores de que eu seria promovido a Diretor-Executivo da Pepsico que eles grudaram no meu pé, o Larry já querendo nomear todos os seus parentes e os dela como chefes e representantes em todo o Nordeste! São mais falsos que uma nota de três! Ela por acaso já lhe contou que o Larry bate nela? Que ela gosta e pede mais? Por essas e outras "cositas" que não me atrevo a lhe dizer, nem gosto muito de você passar as tardes inteiras de conversa com ela! Quem anda com morcego dorme de cabeça pra baixo!
Jennifer enrubesceu até a raiz dos cabelos e lamentou que o arco que separava a sala do corredor não tivesse uma porta. Quase inconsciente, como se, ao mudar o foco para outro casal, certamente alvo de grande admiração por parte do marido, viesse a arrancar um elogio que mudasse o clima de constrangimento trágico em que se achava, Jennifer comentou bem alto:
_ Seus primos, Aldemário e Conceição podem aparecer também!
_ Misericórdia! Já ouviu o provérbio italiano, "parente é serpente!"? Duas jararacas, posso lhe garantir! Quando eu quis me casar contigo, adivinha quem fez o maior escarcéu dentro da família, ligando pra todo mundo e falando horrores a seu respeito? UMA EMPREGADINHA! UMA FAXINEIRA! E coisas piores! Quiseram até contratar uma policial pra lhe ameaçar! Nunca lhe contei isso, né? Só perdoei eles porque não dera em nada a campanha deles! Nosso casamento aconteceu e isso é o que importa! Mas foi legal você falar dele. Acabo de lembrar que guardei os ingressos dentro do álbum de fotografias da família... Agora é encontrar esse bendito álbum!
Jennifer, como se o reflexo do luar e do farol aceso brincassem com suas emoções, tinha nesse momento o rosto pálido, lívido como a morte! Então aqueles dois ali escondidos debaixo da mesa, todos cheios de "queridinha", "priminha querida", beijinhos e salamaleques... Era tudo falsidade e veneno! Por puro e simples impulso, desta vez querendo mesmo que a verdade dos amigos viesse à tona, girando agora deliberadamente a garrafa do jogo-da-verdade, ela alfinetou:
_Vai dizer também que a Pâmela e o Guto não prestam? Eles que chegaram a doar dois litros de sangue para a sua cirurgia no ano passado?
_ Achei! Os ingressos estavam bem na página das fotos de Tia Carmita, mãe do Aldemário! Que coincidência!
Jennifer, na porta, inflexível, exigia:
_ Diga-me, Ronivaldo! A Pâmela e o Guto também não merecem passar seu aniversário com a gente?
Dentro da sala o silêncio e o constrangimento eram infernais, a julgar pelos rostos banhados pela luz das palavras devastadoras do aniversariante.
_ Gente boa eles são, sim! Não tenho nada contra eles, mas vivem uma relação muito doentia e pusilânime! Vou lhe contar um episódio que vai lhe revelar bem quem são eles, temos tempo até o espetáculo!
Dizendo assim, consultando o relógio e puxando para si uma banqueta comprida, sentou-se em frente da sua esposa que relutou, mimada, a sentar no colo dele, permanecendo na entrada da sala de visitas. Temia que, no colo dele, ele falasse baixo, sem permitir ser ouvido pelos convidados escondidos!
_ ... Teve um dia, anos atrás, bem antes de você me conhecer, em que o Guto chegou mais cedo de uma viagem e entrou em casa sem avisar. Alguma coisa no serviço lhe fizera antecipar, um formulário esquecido, talvez. A casa estava bem bagunçada e, ao entrar no quarto, chamando pela esposa tão logo entrara, encontrou um cenário de motel, a cama desarrumada, copos de bebida, toalhas espalhadas e sua querida Pâmela com os braços abertos em frente ao guarda-roupas, como se quisesse proteger alguma coisa escondida lá dentro! Ele foi logo desconfiando de alguma coisa errada e perguntou: "o que tem aí dentro desse guarda-roupa, posso saber?". Isso é o que ele conta, mas duvido que a voz não tenha lhe faltado nessa hora! O certo é que a Pâmela não quis lhe revelar o que havia lá dentro nem permitir que ele abrisse suas portas. Manteve pé firme e não disse nada, ou pedia que ele saísse dali imediatamente. O pobre do Guto bem que gostaria de não ter visto aquela cena, mas, já nela inserido, não lhe restava outra opção a não ser ir às vias de fato! Partiu pra cima dela disposto a quebrar o guarda-roupa e o que lá dentro estivesse escondido! Pâmela pôs a mão no seu peito e lhe disse: "SE VOCÊ ABRIR ESSA PORTA, NOSSO CASAMENTO ESTARÁ DEFINITIVAMENTE TERMINADO! TANTO ESTARÁ TERMINADO CASO VOCÊ ENCONTRE UM HOMEM AÍ DENTRO, TANTO SE NÃO ENCONTRAR NADA, POIS EU JAMAIS LHE PERDOAREI ESSE SEU GESTO DE DESCONFIANÇA A QUEM LHE JUROU FIDELIDADE POR TODA A VIDA!" Guto deve ter ficado gelado diante desse impasse catastrófico. Suou frio e decidiu recuar. Disse-lhe então: "VOU SAIR PARA COMPRAR CIGARROS!" (aonde, meu Deus, se ele nunca fumou na vida!!!). Ronivaldo contava isso quase sorrindo, à espera de um sorriso no rosto da esposa para liberar de vez a gargalhada, mas esta permanecia lívida como uma vestal na porta de um templo saturnino cheio de sibaritas! Sabe o que a Pâmela lhe respondeu?: "APROVEITE E ME TRAGA UM SORVETE DE PISTACHE!" Huá Huá Huá Huá! - Ronivaldo não se conteve mais e dobrou-se de tanto rir! - Aonde, gente, iria ele encontrar sorvete de pistache às duas da madrugada, em Salvador? Sabe como, lá no escritório, esse episódio foi batizado pelos colegas? O corno do terceiro excluído: só lhe havia duas opções, abrir ou não abrir o guarda-roupas, "Tertio non Datur"!...
Parecia, na mente de Jennifer, ver todos os convidados lá dentro do salão, na penumbra, suas faces crispadas e constrangidas, inteiramente desnudos pelas palavras do aniversariante! Mas sua mente já havia tomado uma decisão, uma saída "tout court" para fugir daquela saia justa, mas também, e principalmente, motivada por uma nova avaliação daqueles que outrora era seus diletos e confidenciais amigos! Apanhou as chaves e a bolsa sobre uma peça da sala, sem coragem de olhar lá dentro e puxou pelo braço o esposo dando-lhe pressa para irem ao teatro. Fora logo entrando no carro. Saíram pouco antes das luzes da sala acenderem. Já estavam longe quando os convidados começaram a dar um jeito de sairem daquele imbróglio, unidos pela vergonha e opróbrio, afinal, poucas coisas conseguem unir mais as pessoas do que passarem vergonha juntas. Parece que, implicitamente, decidiram não tocar no assunto nem dar o mínimo de importância às palavras do aniversariante desvairado! Heliodoro e sua esposa, que tiveram a sorte de ficarem por último e não tiveram seus nomes citados, se encarregaram de retomar a cerimônia, agora sem a presença dos anfitriões, como se a festa de aniversário houvesse se transformado em um velório. Ele foi à cozinha buscar as bebidas e copos, ela se encarregou de servir os salgados e as providenciais "sacanagens", rapidamente devoradas, pressentindo todos que o melhor era irem logo para suas casas, onde poderiam rir uns dos outros, já que não possuíam o despreendimento de rirem todos cara a cara, como a situação exigia! No percurso para o teatro, Jennifer voltou a respirar e deixou para trás a preocupação com seus convidados. Todos sabiam a porta de saída e logo a velha hipocrisia trataria de naturalizar os laços como se nada houvesse acontecido. Da vergonha que havia passado, veio-lhe a lembrança de um constrangimento parecido quando ainda era uma mocinha no sertão da Bahia. Estava visitando uns parentes ao lado de sua mãe, quando, magoadas com a frieza de um primo por quem ela estava enamorada, e cuja visita fora justamente para ver se os pais dele a pedisse em noivado, resolveram ir embora ainda de madrugada, caminhando as duas léguas que separavam as casas na zona rural no escuro, apenas com um candieiro de querosene, e sem se despedir de ninguém, muito menos do tal primo que nem em casa estivera a noite toda! No caminho de volta, perto de uma pinguela, sob um arbusto, elas tomaram um susto ao encontrarem o seu namoradinho agarrado com uma jumenta, em explícito ato de zoofilia. Ao ser surpreendido pela luz do candieiro e perceber na luz do arrebol de quem se tratava, ele não moveu uma única perna, não se desconectou um centímetro sequer do coito medonho que praticava. Simplesmente, segurou nas coxas da impassível jumentinha, puxou-a um pouco para trás e disse: "PASSEM! PODE PASSAR QUE EU SEGURO!" Elas passaram curvadas de vergonha, Jennifer com o coração partido de amor e ardendo mais de vergonha do que a chama do candeeiro! Entendeu ao relembrar essa cena que toda vergonha passa! Que passar vergonha significa justamente fluir e que nenhum sentimento permanece! Tudo se esquece. Tudo passa, inclusive a vergonha. Abraçou o seu esposo e lhe disse no ouvido:
_ Feliz Aniversário, meu amor!
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