Fora de um
dia para o outro, como um destino ou uma fatalidade, que técnicos da capital,
Salvador-Ba, vindos em um caminhão cheio de equipamentos, subiram no alto de um
morro conhecido como Morro de Dona Mira e, dentro de uma casamata de um único
cômodo ali construída, instalaram a primeira repetidora de TV da cidade de
Itambé, no início dos anos setenta do século passado. Como em um sonho
encantado, as pessoas que antes só conheciam a TV quando viajavam a outras
cidades maiores, podiam agora exibir em suas salas de visitas a nova
celebridade com ares de um altar, um novo oratório para novos deuses a
substituir as imagens dos santos ou as fotos dos antepassados, ícones então
dominantes no imaginário dos lares tradicionais. De todas as novas divindades
que invadiram nossas vidas, os astros das telenovelas foram, de saída, o
panteão mais sagrado e comentado em todas as esquinas, feiras e janelas da
pequena cidade onde eu me criei. Em poucas semanas, toda a população,
hipnotizada pelas imagens chuviscadas em preto-e-branco, já estava envolvida
nas tramas melodramáticas das grandes novelas e, por meio delas, conectada
sentimentalmente com todo o povo brasileiro em um grande e cívico inconsciente
coletivo eletrizante. Foi neste cenário que chegou a nossa pacata cidade,
trazido por um amigo que passava temporadas no Rio de Janeiro, Montenegro
Gusmão, um autêntico playboy (ou malandro, como queiram) loiro e elegante, de
nome Duarte. Sabendo da admiração frenética dos interioranos pelo universo
cintilante da grande metrópole, principalmente pelos estúdios de TV onde as
encantadas novelas eram produzidas, Duarte fora logo sendo apresentado pelo seu
anfitrião como sendo um irmão de José Wilker, então um galã das novelas em
franca e meteórica ascensão (depois descobrir-se-ia não ter este ator nenhum
irmão do sexo masculino, apenas três irmãs mais velhas). Esse suposto
parentesco abrira as portas de toda a sociedade para o amigo de Montenegro,
embora com certas reservas, visto ser este anfitrião suspeito de
homossexualismo e perdulário, gastando no Rio de Janeiro toda a fortuna de sua
tradicional família de pecuaristas. Quase um mês após sua chegada, conseguindo
ele vender quase todo o seu estoque de perfumes franceses e maquiagem que
trouxera consigo para as mulheres ricas da elite agrária do lugar, aconteceu um
acidente que viria a se tornar frequente nos primeiros anos da estação
repetidora de TV no alto da montanha: Pifou uma válvula, não uma simples
válvula descartável, destas de rádios que qualquer oficina sabia substituir,
mas uma daquelas heradas, feitas na antiga União Soviética, e de difícil
reposição, devido aos empecilhos que o governo militar colocava para a sua
importação. Tão logo o povo humilde se apaixonara pelas novelas noturnas na TV,
uma delas já perto de acabar, e a tragédia de ficar sem o sinal da repetidora
varreu toda a alegria da pequena cidade. Queria ser um poeta para descrever a
melancolia das noites com as pessoas na porta de suas casas, ouvindo rádios de
pilha para espantar a saudade dos astros e estrelas das novelas, dos quais eram
vagos e mortos simulacros aquele cortejo de pontos luminosos no céu estrelado
sobre suas cabeças. Muitos olhavam para o alto do morro onde se podia ver,
quando em operação, uma luz vermelha a piscar na extremidade da antena, feito
um planeta habitado por anjos, o único entre tantos e incontáveis astros ao
redor, a ter vida e vida em abundância. Mas agora a luz não piscava mais! E por
falar em anjo é que posso bem definir como o Duarte passou a ser visto desse
dia em diante; não bastasse sua aparência platinada a lá Ted Boy Marino (outro
ídolo do nosso povo, lutador de tele catch e artista de circo que um dia por lá
passou se apresentando no Grande Circo Bartolo, circo este que findou por ser
carregado por uma enchente do Rio Verruga, mas isso é outra história...).
Duarte dizia ter amigos na Rede Globo, com quem falava sempre ao telefone, e
sabia todos os detalhes do que estaria acontecendo nas novelas, inclusive sabia
o que ainda não fora filmado, pois sabia detalhe dos roteiros escritos por Dias
Gomes, Janete Clair, Lauro Cézar Muniz e todos os assistentes, amigos,
conhecidos e clientes dos seus fabulosos cosméticos parisienses! De repente, o
povo desalentado poderia não apenas saber em que pé desenrolavam-se os dramas
de amor e intriga, como também saberiam o que o futuro lhes reservava, fruindo
de uma gozosa compensação ao ouvir o enfático narrador sentado na sala contando
como tal ator rompera com a filha de um milionário para se jogar nos braços de
uma viúva, como a mocinha sofre um acidente de automóvel ou quando haviam
assassinado o todo poderoso prefeito e qual rumo tomavam as investigações!
Duarte devia ser mesmo um irmão por contágio do José Wilker tamanha a sua
desenvoltura e senso teatral ao narrar os detalhes para o povo humilde sentado
no chão das calçadas, recostado nos automóveis da praça ou nos bancos do
jardim, aonde quer que Duarte estivesse com seu séquito de seguidores ávidos
por notícias de seus ídolos! O amor estava no ar e uma destas seguidoras de
Duarte o seguia não mais por interesse nas novelas onde ela aprendera a amar,
mas no próprio narrador, em uma clássica situação de transferência erotômata,
desde Sócrates e Alcebíades até os vigaristas psicanalistas do século passado! Era
Sara Quinha, uma adolescente de 14 anos, perdida de amores pelo carioca esbelto
e de sotaque sibilino. Provavelmente o seu primeiro amor, e todos que tiveram
um sabe a dimensão que isto representa. Caminhava sobre nuvens, ao redor da
praça municipal, ouvindo em êxtase o seu príncipe responder com riqueza de
detalhes cenográficos às perguntas dos curiosos. Duarte não apenas descrevia as
novelas como revelava detalhes picantes dos atores e atrizes que ele conhecia
como ninguém, seus amores secretos e perversões insinuantes, suas famílias e
seus próximos papéis em outras aventuras onde as personagens se entrelaçavam em
uma verdadeira "teledramatorgia"! Evidente que esse Duarte era
simplesmente uma versão sofisticada e eficaz dos velhos camelôs de feira, se aproveitando
das pausas em seus comentários para vender perfumes, batons, esmaltes e bijuterias
que jurava serem usadas pelas grandes vedetes e responsáveis pelo fascínio que
elas exerciam nos estúdios de gravação! Sara Quinha era o exemplo vivo do
feitiço que aqueles cosméticos representavam, pois era a vítima encarnada dos
filtros de amor neles contidos. Vivia para Duarte e o seguia à distância por
toda a cidade. Dormia pensando nele, sonhava-lhe como um anjo dourado e enchia
seus cadernos escolares com mil corações em volta do seu nome e o nome dela,
escritos em canetas com cheiro e cor de chiclete e tinha obscenos orgasmos ao
abraçar o travesseiro que personificava o hóspede encantado de Montenegro
Gusmão. Menina naif de expressivos e artísticos pendores, Sara Quinha decidiu
pintar uma tela com a imagem do seu amor. Trancou-se no seu quarto e decidida a
só dele sair quando a tela estivesse pronta. Sabendo que jamais teria coragem
de se declarar para um homem feito e conhecedor do mundo inteiro que ela só via
na TV, era preciso que aquele quadro fosse capaz de revelar a quem o visse, a
intensidade do seu sublime amor! Bastou-lhe um sábado inteiro debruçada sobre a
tela para esta ficar pronta. Nela, Duarte era representado como um ginete
medieval, um pajem impulsivo e arrebatador, inclinado sobre um negro e
voluptuoso cavalo, oferecendo uma virginal e branca rosa a quem lhe
contemplasse! Recordo-me, quando recolhi os fragmentos de Eucatex sobre cuja
superfície a imagem fora pintada, e estilhaçados pelo episódio que narro agora,
do genial artifício que Sara Quinha utilizou para pintar o cansaço e o esforço
do cavalo após uma vigorosa e prolongada cavalgada: uma espuma amarelada no
canto da boca do animal! Duarte tinha o costume de passar os finais de semana
na fazenda do seu anfitrião Montenegro e costumava passear a cavalo pela cidade
aos domingos, vindo montado da fazenda e circulando garboso pelas ruas
principais da cidade. Sara Quinha acordou cedo e ficou na varanda da sua casa,
onde inevitavelmente Duarte passava em tais passeios, e o esperou uma
eternidade, o sol ajudando a secar partes ainda úmidas da sua tela pintada a óleo.
Era quase dez horas da manhã quando ela ouviu um tropel de cascos sobre os paralelepípedos
da rua, tropel que facilmente era sufocado pelo baticum em frenesi do seu peito
apaixonado. Segurando o quadro feito uma porta-bandeira de escolas de samba,
Sara Quinha correu para o meio da rua e jogou-se à frente de Duarte que, com
muita dificuldade, conseguiu refrear o brioso corcel e olhar curioso para a
imagem ainda fresca a cintilar no sol de verão tropical. Logo acima da moldura
superior, assomava um par de tímidos olhos adocicados e dardejando amor!
Demorou poucos segundos para Duarte, reconhecendo seu retrato pintado com tanto
idealismo, entender também o que ela significava. Com um ríspido crispar de
rédeas, Durval encarou Sara Quinha e lhe confessou para todo mundo ouvir:
_ Da fruta que você gosta, minha filha... EU CHUPO ATÉ O CAROÇO!
E assim, confessando suas inclinações sexuais, e talvez zangado por ter sido
coagido a fazer isso, ou apenas por pura e gratuita aversão ao quadro que lhe
representava com uma odienta virilidade, empinou o cavalo e a pata deste, como
se guiada pelo cérebro pernicioso do falso galã, percutiu a ferradura no pedaço
de Eucatex lançando longe a pintura que se espatifou em vários pedaços! Sara
Quinha disparou em direção ao seu quarto, sem dar tempo das lágrimas caírem
antes que seus olhos afundassem no travesseiro perfumado e agora odiado, que
outrora fora a emulação do seu primeiro e intenso amor! Ali permaneceu todo o
domingo e manhã de segunda, sem falar com ninguém nem se alimentando. Quando
finalmente desceu as escadas, parecia outra pessoa. Amadurecida e completamente
liberta do feitiço de Duarte! Trazia nas mãos um pacote de cosméticos que havia
comprado em mãos dele e tratou de jogar tudo na churrasqueira no fundo do
quintal e atear fogo sob os olhares inquietos e preocupados da sua mãe e irmãos
mais novos. Almoçou à mesa com toda a família e conversou sobre coisas
triviais, o que findou por dispersar qualquer preocupação posterior e tudo
parecia que iria voltar ao normal. Três dias depois, sem que ninguém desse por
conta, Sara Quinha conseguiu abrir, nos fundos da garagem, o escritório do seu
pai - dono de lavras e especialista em dinamitar rochas em busca de pedras
preciosas - e apanhar uma banana de dinamite, escondendo-a sob a roupa. Em
poucos minutos, se alguém olhasse com um binóculo para as trilhas que subiam o
morro de Dona Mira, conseguiria ver a resoluta adolescente se aproximar em
ritmo lento e determinado da casamata onde ficava a estação retransmissora de
TV. Os reparos já estavam bem adiantados e muito em breve o sinal iria voltar.
Sem ninguém para lhe deter, Sara Quinha subiu um lajedo ao lado da construção,
de frente e a dois palmos de uma claraboia e por ali fez descer a banana de
dinamite, não sem antes acender o longo pavio e correr depois para detrás das
árvores no sopé da montanha. Segundos depois toda a cidade pode ouvir ressoar
no vale cristalino o trovão da dinamite levando pelos ares o telhado da
casamata e pedaços derretidos dos equipamentos enquanto a antena balançava sob
efeito do deslocamento de ar em uma cena parecida à explosão da casa no
penhasco, na cena final de Zabriskie Point, filme do Michelangelo Antonioni! Sara
Quinha, sem remorsos nenhum, desceu pelo outro lado da montanha, enquanto
muitas pessoas se dirigiam ao local para se atinarem do que havia ocorrido.
Nenhum rastro deixou a terrorista mirim. Sara Quinha conseguiu voltar para casa
sem ninguém desconfiar da sua conduta criminosa. Um inquérito fora aberto e o
pai de Sara prestou queixa do desaparecimento da banana de dinamite, mas daí a
associar esta explosão a sua filha era algo imponderável e sem sentido nenhum.
Somente duas décadas depois, embriagada durante uma festa de carnaval em
Salvador, é que Sara Quinha resolveu confessar o seu crime em tom de chacota e
muito riso ao seu então amante, o falecido fotógrafo italiano Vitor Diniz, quem
depois, findo o romance, deu com a língua nos dentes. Não é verossímil supor
que fora uma vingança contra o desprezo de Duarte, exceto se ela quisesse
prolongar a presença dele como griô e noveleiro do povo desassistido
audiovisualmente, o que seria contraproducente; aliás, Duarte acabara por ser
desmascarado naquela mesma semana, após um colecionador de revistas compradas
na cidade vizinha mostrar para todos o verdadeiro status das novelas, revistas
estas que traziam em suas páginas todo o script e resumo semanal do que
acontecia nas telas da TV. Duarte fez suas malas e voltou rápido para o Rio de
Janeiro. Nunca mais deu notícias. Seu anfitrião Montenegro há muito faleceu e
Sara Quinha, hoje uma avó de duas lindas crianças de cinco e três anos, vive
juntando dinheiro para levar seus anjinhos para a Disneyworld! Aqui ficamos
rezando para que ela não se apaixone pelo cicerone e invente de dinamitar o castelo da Cinderela. Sempre a achei uma pessoa muito estranha!
0 comentários :
Postar um comentário