Não é fácil precisar o momento em que uma lenda se torna mito, mas
se esta lenda explica a origem de um fenômeno, uma das condições já está
satisfeita, pois, para além dos ritos que o vivifica, o mito é eminentemente
fundação ou "mito de origem". O fenômeno aqui investigado é o Rock'in
Roll e a lenda, a curiosa personagem norte-americana, o guitarrista Robert
Johnson. Contam que ele, aos vinte e quatro anos, não sabia sequer afinar um
instrumento, embora sua vida, transcorrida nas árduas lavouras de algodão,
fosse saturada pela intensa sonoridade do seu povo e sua região, o lírico e
romântico sul dos Estados Unidos nas primeiras décadas do século vinte.
Melômano incurável, R. Johnson sofria nas lavouras sem tempo de estudar música.
Fascinado pela novidade da época, o rádio, ele dizia que viver assim era,
segundo seu biógrafo Carl Perkins, "abaixar o botão do volume da
vida", e um dia desapareceu. Semanas depois, reaparece no distrito de
Yokanapatawa, condado de Jefferson, com uma esfuziante guitarra da qual extraía
acordes viscerais de um novo ritmo, o rhythm and blues, a semente de um gênero
musical que revolucionou o mundo: o Rock'in Roll. Sucesso estrondoso nos
lupanares da sua terra, sua ascensão foi meteórica, gravando 40 fabulosas canções
que, executadas no rádio, teciam um manto sonoro e enfeitiçado ao longo do
Mississipi. Tão subitamente surgiu, R. Johnson faleceu, aparentemente
envenenado, três anos depois, dando azo a sorumbáticas explicações. Uma delas
fala de um encontro que ele teve, em suas deambulações noturnas, com um
misterioso e fétido cavalheiro. Era madrugada em uma encruzilhada. R. Johnson
abriu seu coração ao andarilho que não era outro senão o próprio Satanás. Este
lhe prometeu, em troca da sua alma, todos os segredos da viola. Bêbado,
ambicioso e cético, Johnson aceitou e ali mesmo firmaram o pacto de sangue. O
resto é história. Sobre sua morte, imagino o imundo cavalheiro visitando o
músico em um quarto de hotel e lhe cobrando a alma prometida.
_Há um pequeno
problema, Sr. Abraxas, que talvez invalide o nosso trato!
O fedorento
esperou que R. Johnson prosseguisse seu raciocínio. Estava acostumado a todo
tipo de negaceio; afinal, não fora ele mesmo quem inventara a malandragem?
Décadas atrás, ele havia cobrado a alma do virtuose italiano, Niccolo Paganini,
mas este era um aristocrata e não regateou como esse pau-de-fumo americano!
_ Eu lhe prometi
a posse exclusiva da minha alma e temo que essa exclusividade não seja
possível. Nestes três anos de virtuosismo que sua magia me proporcionou, eu
coloquei toda a minha alma nas composições publicadas, nos discos gravados,
enfim, nas canções que foram e são toda a minha vida! Pouco entendo o que seja
a alma, mas sinto que ela é feita de ritmos, de tempo e de sentimentos, que ela
é parente da música! Sinto também que, por todo esse vasto mundo, sempre que
alguém tocar uma canção minha, ou outras nela inspiradas, a minha alma ali
também estará e não consigo imaginar que poder exclusivo, nesta hora e
circunstância, você terá sobre ela!
A questão assim
formulada, contendo nela o escabroso problema do Uno e do Múltiplo, e que
varreu de perplexidade o mundo dos filósofos, de Platão à Bergson, fora demais
para Abraxas que jogou a toalha! Serviu sorrateiro o veneno que havia
preparado, pôs fogo na guitarra e no quarto, mas não conseguiu a posse
exclusiva daquela bela-alma!
Hoje em dia, um
século passado, quando se ouve um visceral Rock'in Roll, é comum sentir um
arrepio, um frêmito na carne, uma onda a correr os meridianos do corpo. Fala-se
então em energia, intensidades, emotions, vibrations, sensations... Quanta
baboseira! O que se passa, na verdade, são as unhas podres do tinhoso
dedilhando, nesta hora, a alma do ouvinte que, ao vibrar em uníssono com os
acordes arquetípicos de R. Johnson, dá à esse perfumado Sr. Abraxas um certo
direito relativo sobre ela! Melhor seria, para nós, nestas horas, ouvir os
Gospels inspirados de Mahalia Jackson!
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