domingo, 19 de dezembro de 2021

O TRIPÉ DE PONCIANO!

 





Fora durante a década de noventa do século passado, década esta profundamente disruptiva, questionadora dos costumes, tradições, de hereges experimentações e modismos desenfreados. Como seminarista, sentia-me profundamente deslocado no trabalho voluntário que prestava no Hospital Universitário Católico, no setor de Apoio Psicológico e vivia esperando uma transferência para outro setor. Onde eu me encontrava só havia psicólogos e psiquiatras ateus, entupidos de teorias modernas e pouco espaço crítico me ofereciam quando um paciente precisava de tratamento. Limitava-me a obedecer aos protocolos definidos pelos doutores, caminhando com os pacientes pelo amplo e ensolarado jardim, ministrar os medicamentos e cuidar de suas correspondências, entre outras atividades distintas da clínica e dos cuidados científicos da alma doente. Uma das enfermidades para qual eu possuía elogiosas aptidões era a esquizofrenia, pois os portadores desta patologia eram singularmente afetados pelas descrições sobrenaturais da teologia e do credo cristão, ou talvez, pelo fervor de minhas prédicas, pelo menos era o que os doutores diziam à boca pequena, julgando-me também um lunático! Pouco importa, afinal, não é sobre mim este relato, mas sobre um esquisito paciente, de nome Ponciano, que parecia em tudo normal, exceto pelo fato tragicômico de se julgar ser um saci e ninguém, droga ou terapia, ser capaz de lhe convencer do contrário. Tratava bem a todos e obedecia a todas as prescrições, recebia visitas de uma tia e produzia singelos cachimbos com massa epox, tricotava gorros e pintava cenas em que ele sempre aparecia como um Saci-alpha, líder de um bando de sacis pequenos ente moitas e galhos, vendendo esse artesanato na porta do Hospício e conseguindo juntar uma boa quantia de dinheiro que, dizia ele, iria financiar a sua operação de cortar uma perna e se tornar definitivamente um ser mitológico do imaginário brasileiro! Evidentemente, com ou sem dinheiro, ele jamais iria conseguir que algum cirurgião lhe amputasse um membro, e todos no Hospital temíamos que ele fizesse alguma besteira, tipo se ferir gravemente, gangrenar uma perna e obrigar os médicos a realizar sua obsessão: na cabeça de Ponciano faltava tanto juízo que, se faltasse mais um pouco não haveria onde aplicar, costumava eu dizer aos médicos, mas humor e espírito nunca fora o forte dos psiquiatras! Ponciano já começava a apresentar sintomas de depressão, à medida que a idade se aproximava e era cada vez mais recorrente os surtos psicóticos onde, para compensar a hiância entre a realidade e seu transtorno, ele desenvolveu um quadro comportamental diabólico (para mim, próximo de me ordenar padre, conhecedor de possessões, incubações e sucubações do anjo mau satanás; para os médicos, era apenas a tal da esquizofrenia!) onde falava línguas estranhas, gargalhava pelas madrugadas insones e pulava com uma perna só dando incontáveis voltas no vasto jardim do sanatório. Sua tia interrompeu as visitas com medo inconfesso e tornaram-se frequentes os redemoinhos de poeira dentro, em volta e no telhado da centenária instituição onde funcionava o hospital, o mosteiro e a Universidade Católica de Salvador (segundo Ponciano, em êxtase, era o seu povo que vinha lhe visitar e ajudá-lo na sua transformação definitiva). Muito orei por este paciente, negro de olhos tristes e de uma doçura resistente a todas as torturas a que sua alma padecia. Confesso, porém que um plano efetivo de fazer algo por ele nasceu de leituras profanas na biblioteca local e de especulações sem nenhum mérito ou protocolo científico ou espiritual. Era apenas uma questão de tempo para Ponciano, sob cujo colchão fora encontrado por duas vezes um facão dos jardineiros que ele furtara, cometer uma loucura, e isso era tudo que os médicos esperavam para jogá-lo em um calabouço e dopar seu corpo com drogas violentas cujo estoque transbordava nas prateleiras do hospital! Quase desesperado em salvar aquela alma comecei a fabular e orientar o paciente com a seguinte narrativa: Nós, homens, em verdade, não temos apenas dois membros inferiores, mas três, a saber, dois membros locomotores e um membro sexual. Os sacis, anatomicamente falando, possuem apenas dois: um locomotor e outro sexual. Se ele, Ponciano, conseguisse se emascular – juro que pensei menos em Abelardo, o filósofo castrado pelo cruel pai da sua amada Heloísa, sobre cuja obra eu preparava uma dissertação, do que em tantos homens que se castraram ao longo da história para se libertarem da luxúria e das torturas infernais que os pendores da carne podem nos arrastar – o seu órgão sexual, ficando apenas com dois, ele poderia considerar uma perna como o seu novo órgão sexual e então se sentir transformado definitivamente em um saci! Aproveite, leitor, e use esse texto como um psicoteste para ver se você é louco, pois só um louco poderia levar a sério esse tão bizarro estratagema... E não é que o louco Ponciano acreditou em mim, depois de passar uma noite matutando nessa elucubração escatológica e escalafobética? Lembrem-se que, longe de ser um perverso e um sádico, eu estava certo de que Ponciano iria se matar ou ser trancafiado para sempre em uma camisa de força e como eu, padre por vocação, não pretendia mesmo usar minha piroca para nada além de urinar, não era um remédio tão amargo assim o que eu prescrevia, doravante com método. Orientei Ponciano a simular que era também, além de um saci, um homossexual. Um saci gay! Eu iria conseguir que ele tivesse uma alta provisória, ficaria com sua tia algumas semanas e, em seguida, iria procurar o SUS alegando precisar de uma cirurgia de mudança de sexo, que a presença daquele pedaço de carne pendurado entre suas pernas era objeto de profunda rejeição e sofrimento. Dito e feito. Após todas as etapas estudiosamente planejadas, Ponciano foi atendido e os médicos, com uma sensibilidade maior do que a dos anjos, a mesma com que enfiam o dedo em nossos retos para exames de próstata, cortaram fora o peru de Ponciano e lhe fez mulher (tanto a mulheres como os sacis só possuem dois membros inferiores, a mulher sendo muito mais demoníaca). Em poucos meses, Ponciano teve alta do sanatório. Estava curado dos sintomas mais psicóticos e violentos e a realização da sua fantasia, de um modo que esse raso apontamento e a superficialidade do autor não poderiam explicar, permitiu-lhe simular uma pseudo cura a enganar os psiquiatras tacanhos. Ponciano hoje vive com sua tia aposentada e vende artesanatos na rua Carlos Gomes, centro de Salvador. De dia. De noite ele se veste com uma sunga vermelha tamanho GG Plus, um capuz encardido e carmim que nada tem de Chapeuzinho Vermelho e um cachimbo de fumo estupefaciente. Dobra uma perna e a contorce até conseguir enfiá-la dentro da sunga, ocupando o espaço outrora pertencente ao bogoió extirpado,  criando a ilusão de um órgão sexual monstruoso de quem tem parte com o capeta, e assim, pulando sobre seu único membro inferior, é visto perseguindo as empregadas domésticas e as ambulantes pelas ruas escuras e mal-assombradas da velha e decadente Bahia de todos os santos!

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