No início da década de 90, do século passado, vivi por alguns anos no Bairro do
Rio Vermelho, em Salvador e privei-me da amizade com o escritor Jorge Amado - estando
ele já idoso e eu ainda em busca de um estilo literário - que findei por
desistir de encontrar, e hoje escrevo como um estes secretários de alguma
obscura prefeitura municipal. Jorge Amado possuíra um grande amigo de
juventude, o médico Auterives Maciel, meu professor e médico da nossa família,
na cidade de Itambé-Ba. Separado pelas profissões e vidas consumadas, Jorge
gostava de relembrar casos fictícios ou não (que verdadeiro escritor se
prenderia a este critério imbecil e dualista quando o assunto é a memória?) do
seu colega. Este que transcrevo é um deles. Transcorria o ano de 1943 e o jovem
Auterives Maciel cursava a Escola Baiana de Medicina quando ocorreu um
devastador incêndio no Mercado Modelo, na Praça Cayru, famoso logradouro
turístico de Salvador. Os estudantes correram ao local para auxiliar a equipe
de médicos e bombeiros que tentavam salvar os queimados. Auterives fora
escalado para trabalhar na triagem dos corpos que chegavam em macas
improvisadas e avaliar o estado e destino da vítima. A depender do grau de
queimadura, o estudante indicava a enfermaria, a UTI, o necrotério ou apenas um
curativo e a pronta liberação para a vítima ir embora. Os enfermeiros ouviam o
diagnóstico sagaz e veloz do jovem estudante e o obedecia sem contestar.
Somente uma voz dissonante desafinou o lúgubre concerto feito de gemidos,
prantos e crepitar de chamas, mas não a voz de qualquer um dos enfermeiros e
sim de uma das vítimas. Estressado e dono de um temperamento fleumático que
evoluiu com o tempo para uma irritabilidade quase neurastênica, Auterives
examinou um jovem rapaz todo chamuscado da cabeça aos pés e prontamente ordenou
aos maqueiros:
_
Necrotério! Tá mortinho da Silva!
Sem
poder abrir os olhos, cujas pálpebras queimadas haviam colado, formando uma
única e inflamada pele, o pobre feirante conseguiu reunir forças e murmurar:
_
Não estou morto, não Doutor! Tô morto não!
Auterives
recebeu aquela voz cadavérica como um signo da recalcitrância e perversidade da
matéria sempre fugidia e rebelde aos preceitos e prescrições da augusta ciência
de Hipócrates. Uma afronta e um escárnio com o exausto voluntário e nesta hora
cercado por jornalistas e curiosos a observar seu desempenho clínico.
_ E
quem é você para contestar meu diagnóstico? Onde você andou lendo e estudando
sobre Medicina? Morto, sim! Mortinho da Silva! Tratem de levá-lo ao necrotério!
E dobrando-se
de risos, Jorge Amado se comprazia, certamente em se vingar jocosamente e com
décadas de atraso, de alguma peraltice contra ele praticada pelo saudoso amigo.
Eu fui movido por outro motivo a registrar isso: o pressentimento de ter
identificado nesse obscuro e impertinente feirante queimado, nos trapos inúteis
das lembranças vagabundas, o arquétipo dos primeiros negacionistas, afinal, como
é possível, minha preta, negar que se está morto quando um médico tão categórico
e distinto assim o determina?
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