sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

O FIM DE APOLINÁRIO NO MURAL DE ZALCBERGAS!

 


Quando um fato se apresentar profundamente inverossímil e inexplicável, relate-o como uma obra de ficção e desista de que os outros acreditem nele. Como exemplo, contarei o caso do desaparecimento e morte de Apolinário. Ele era meu amigo, e como eu sabia a verdade sobre o seu caso, fiz questão de pôr a justiça a par do que lhe havia acontecido. O delegado, que colheu as minhas declarações, depois de ouvir o meu relato, assumiu um tom de tão assustada polidez, que eu não tive dificuldade em entender que ele me tomava por louco. Eu lhe disse isto. Ele ficou ainda mais cortês e, levantando-se, empurrou-me para a porta, e eu vi o seu escrivão, de pé, com os punhos cerrados, pronto para saltar sobre mim, caso se eu agisse como um ensandecido.

 Eu não insisti. O caso de Apolinário é, de fato, tão estranho que a verdade parece inacreditável. Soubemos, pelas notícias dos jornais, que ele tinha fama de esquisitão lá no distante povoado de Palmeiras, no Vale do Capão, Chapada Diamantina. Fosse inverno ou verão, estava ele sempre vestido somente com um grande casaco no corpo e chinelos nos pés. Ele era muito rico, e porque sua indumentária me surpreendia, perguntei-lhe um dia por que se trajava daquela maneira. Ele respondeu:

 —É para me despir mais rapidamente, em caso de necessidade. A propósito, depressa nos habituamos a sair com poucas peças. Ceroulas, meias e chapéus são prescindíveis. Vivo assim desde os meus vinte e cinco anos de idade e nunca estive doente.

 Estas palavras, em vez de me esclarecerem, aguçaram a minha curiosidade.

 “Por que razão”, pensei, “Apolinário precisa se despir tão rapidamente?”

 E fiz um monte de suposições...

 Uma noite, quando eu voltava para a pousada onde eu vivia, já aposentado do ofício de enfermeiro — poderia ser 1:00h ou 1:15h —, ouvi que sussurravam o meu nome. Parecia-me que vinha da parede junto à qual eu passava. Desagradavelmente surpreso, estaquei.

 — Há mais alguém na rua? — disse a voz. —Sou eu, Apolinário.

 — Mas onde você está? — exclamei, olhando para todos os lados, sem formar uma ideia de onde meu amigo poderia ter-se ocultado.

 Vislumbrei, apenas, o seu famoso casaco estendido na calçada, ao lado dos seus não menos famosos chinelos.

 “Eis aqui uma situação”, pensei, “em que a necessidade obrigou Apolinário a despir-se num piscar de olhos. Finalmente, desvendarei um belo mistério.”

 Eu disse em voz alta:

 —A rua está deserta, caro amigo. Você pode aparecer.

 De repente, Apolinário despegou-se da parede contra a qual eu fixara o olhar, mas sem poder enxergá-lo. Estava completamente nu e, antes de tudo, apanhou o casaco, que vestiu e abotoou o mais rápido que pôde. Depois, calçou os chinelos e, enfaticamente, falou comigo, acompanhando-me até a minha porta, pelas ruas escuras do povoado:

 — Você ficou surpreso — disse ele —, mas agora entende por que eu me visto de um modo tão estranho. Mas ainda não logrou compreender como eu pude fugir tão completamente ao seu olhar. É muito simples. É apenas um fenômeno de mimetismo... A natureza é uma boa mãe. Ela deu aos seus filhos, demasiado fracos para se defenderem, o dom de se confundir com o que os rodeia... Mas você sabe tudo isso. Sabe que as borboletas parecem flores, que alguns insetos são como folhas, que o camaleão pode assumir a cor que melhor o camufle, que a lebre polar se tornou branca como as terras geladas onde, tão covarde quanto a de nossos campos, foge quase invisível. “Esses frágeis animais escapam dos seus inimigos por arte de um engenho instintivo que lhes modifica a aparência”. “E eu, a quem um inimigo persegue incessantemente; eu — que sou medroso, e me sinto incapaz de me defender numa luta — sou semelhante a estes animais: confundo-me à vontade, e por terror, com o ambiente que me rodeia. “Exerci esta faculdade instintiva, pela primeira vez, há alguns anos. Eu tinha vinte e cinco anos e, em geral, as mulheres me achavam agradável e garboso. Uma delas, que era casada, apegou-se tanto a mim que eu não pude resistir. Caso fatal!... Uma noite, eu estava na casa da minha amante. O marido dela, supostamente, estaria fora durante vários dias. Estávamos nus como divindades quando a porta se abriu de repente, e o marido apareceu com um revólver na mão. Meu terror era indescritível, e eu tinha apenas um desejo — este covarde que eu era e ainda sou: desaparecer. Encostando-me à parede, desejei fundir-me a ela. E o imprevisto acontecimento realizou-se imediatamente. Tornei-me da cor do papel da parede e, como os meus membros voluntariamente se aplanavam, reduzindo-se a uma espessura inconcebível, pareceu-me que eu e a parede éramos um só, e que ninguém mais podia me ver. E era verdade. O marido andou à minha procura para me matar. Ele tinha-me visto, e era de todo impossível que eu tivesse escapado. Ele ficou louco e, voltando a sua fúria contra a esposa, matou-a de um modo selvagem, disparando seis tiros em sua cabeça. Depois foi-se embora, chorando desesperadamente. Quando ele saiu, o meu corpo, instintivamente, voltou à forma normal e coloração natural. “Vesti-me e consegui sair dali antes que mais alguém chegasse. Mantenho, desde então, a bendita faculdade do mimetismo. O marido, não tendo me matado, dedicou a sua vida à realização deste objetivo. Há muito tempo ele me persegue pelo mundo inteiro, e imaginei que, vindo morar em aqui nesse remoto e distante povoado, eu estaria a salvo dele. Mas vi aquele homem alguns momentos antes de sua chegada. O terror fez-me bater os dentes. Eu só tive tempo de me despir e mesclar-me à parede. Ele passou por mim, olhando com curiosidade para aquele casaco e aqueles chinelos abandonados na calçada. Agora você percebe o quão estou certo em vestir-me sumariamente. A minha faculdade mimética não poderia ser exercida se eu estivesse vestido como todos os outros. Não poderia me despir suficientemente rápido para escapar do meu algoz, e é importante, acima de tudo, que eu esteja nu, para que minhas roupas, achatadas contra a parede, não tornem inútil o meu desaparecimento defensivo.

 Felicitei Apolinário por uma faculdade da qual eu tinha provas e que invejava...

 Nos dias seguintes, eu não pensava em outra coisa, e fiquei surpreso, em todos os sentidos, por me ver concentrando a minha vontade no intuito de mudar a minha forma e a minha cor. Tentei me transformar em um ônibus, na Torre Eiffel, em um acadêmico, em um jacaré vacinado... Os meus esforços foram em vão. Eu não nascera para aquilo. Minha vontade não era suficientemente forte e, além disso, faltava-me aquele santo terror, aquele formidável perigo que havia despertado os instintos de Apolinário...

 Eu já não o via há algum tempo quando ele apareceu um dia, em pânico:

 —Aquele homem, meu inimigo — disse ele —, vive me espreitando por toda parte. Ainda não me viu nem tem certeza de que eu vivo aqui, mas seu instinto de corno vingativo lhe abriu um faro na alma. Toda semana toma um ônibus na cidade de Lençóis onde parece estar hospedado e vem aqui fuçar minha presença. O povoado é muito pequeno. Consegui fugir dele três vezes, exercendo a minha faculdade de mimetizar, mas estou com medo, estou com medo, meu caro amigo!

 Notei que ele tinha perdido peso, mas não disse nada.

 — Só lhe resta uma coisa a fazer — disse eu —para subtrair-se a um inimigo tão implacável: vá embora! Esconda-se numa outra e distante cidade. Deixe os seus pertences comigo e corra para a estação rodoviária.

 Ele apertou-me a mão e disse:

 — Venha comigo, eu imploro. Estou com medo!

 Na rua, caminhamos silenciosamente. Apolinário virava a cabeça constantemente, parecendo preocupado. De repente, deu um grito e fugiu, livrando-se do casaco e dos chinelos. E eu vi um homem esbaforido correr atrás de nós. Eu tentei impedi-lo, mas ele escapou. Segurava um revólver e apontava-o na direção de Apolinário. Este tinha acabado de chegar ao longo muro de uma mercearia onde estava pintado um grande mural do pintor Salomão Zalcbergas e ali desapareceu dentro do quadro, como que por magia. Atordoado, o homem com o revólver parou, soltando exclamação raivosa, e começou a fixar as imagens do mural pintado. Ao longo dos anos, em todos os seus rocambolescos e mirabolantes episódios de mimetismo, era quase sempre sobre fundos chapados, de pouca variação cromática e sem figuração nenhuma, que sua habilidade surreal se manifestava com eficiência e primor. Com os quadros do pintor Salomão Zalcbergas era diferente: ali havia um cortejo de formas aparentemente naives, mas sensivelmente requintadas no plano de composição da tela, cores de tonalidades raras e suspeitas de não existirem na natureza ordinária, e mesmo contrapontos luminosos que insinuavam uma iridescência sobrenatural, como se as cores que existem para além do espectro visual, as cores que enfeitam o Paraíso, cintilasse seus simulacros na paisagem retratada. O certo é que, não conseguindo imitar completamente o mural onde buscara refúgio, Apolinário se transformou em uma sombra decalcada da pintura, uma espécie de holograma, um fantasma que mais parecia querer pular fora da imagem do que propriamente nela se esconder. O corno vingativo, já inclinado a acreditar que Apolinário fosse um bruxo, pois somente um feiticeiro poderia ter seduzido e comido sua santa esposa Marizita, por instinto e sagacidade apontou a arma e sapecou seis tiros no coitado Don Juan lagartixa do Sertão! Uma bala pegou no olho que também era um cavalo, outro na testa a brilhar como o ultimo raio verde do poente, enquanto as outras, no bucho, fez jorrar sangue escuro nas partes baixas e sombreadas da merencória paisagem onde já cintilava a magia movente da noite vesperal! Em poucos segundos, o corpo do pobre Apolinário escorria pela calçada real onde cachorros reais iriam cheirar seu corpo nu até que algum piedoso morador o cobrisse com um lençol. Eu não fiquei para acompanhar os procedimentos ulteriores. Saí correndo atrás do corno assassino. Sou colecionador de armas e fiquei fascinado por aquele trabuco cuspidor de tiros tão certeiros e pictóricos! Hei de encontrá-lo e lhe fazer uma proposta irrecusável!

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