domingo, 5 de abril de 2020

ALÔ, HOUSTON! TEMOS UM PROBLEMA!




O filósofo Kierkgaard concebia a dimensão do tempo futuro como um campo de ilimitadas possibilidades de vida, e possibilidades tão auspiciosas que ele as nomeava de oxigênio. Sempre que o tédio lhe assaltava a existência ele clamava pelo possível. Suas palavras era um grito: “O Possível! O possível, senão eu me sufoco!” Curiosamente, nesta pandemia de Coronavírus que nos aflige, é justamente a falta de ar o sintoma mais excruciante e letal. Muito antes da sua forma aguda, o sufoco nos apresenta já no início da quarentena, em sua forma crônica, como uma asfixia de possibilidades vitais. Quase nada já nos é mais possível. Nossos movimentos, nossos encontros, nossos imperativos hábitos, toda a rapsódia da vida é lancetada por uma sursis indesejável! Viciados em cocaína falam em um efeito de bloqueio psicossomático durante as primeiras doses desse alcaloide. Se não me engano na gíria, se dizem “travados”! Assim me parece o homem moderno confinado. Mesmo tendo ao seu lado muitos livros, música, oficinas e mil atividades disponíveis, nada disso lhe faz sentido sem a sua articulação com a vida real e é justamente a vida real o que hora lhe é interditado. Como o oxigênio que queima as calorias no interior da célula, são as possibilidades de ação e transformação do que absorvemos em casa que dão sentido a todo esse leque de afazeres domésticos doravante não digeridos como uma gordura existencial a entupir nossas veias! A varanda também não traz alívio para nosso enfado, pois, no horizonte do futuro iminente, não se ouve um único vagido de hélio, oxigênio ou qualquer outro comburente para alimentar o fogo da vida! Apesar das lacrimosas mensagens de esperança nas redes sociais, nenhuma pessoa sensata acredita que irá ver nascer uma nova humanidade após essa pandemia, uma nova era de aquários com neo-hippies se abraçando e confraternizando nas ruas, perdoando nossas culpas e nossas dívidas, o amor coruscando seus raios no olhar dos transeuntes, a paz e a concórdia governando as nações... Muito pelo contrário, a expectativa é de um novo pesadelo a qual seremos convocados a aceitar e nele aprender a se virar como um engomado turista náutico que subitamente se vê lançado às ondas de uma espumante procela. Muito provavelmente, o estofo desse admirável mundo novo que hora se insinua seja tão somente o desaparecimento da última dimensão transcendental da existência humana, uma de nossas ilusões mais confortáveis, a ideia de um “mundo”, uma orbe habitável, comum e diagramada sob a concórdia de nossa faculdade de nele se locomover. O mesmo ar que nos envolve constituindo nossa atmosfera habitável, é o mesmo que desenha o cenário e refrata a luz para que tenhamos a percepção das cores e cuja ausência nos impediria perceber formas, volumes e profundidades).  Remeto-lhes para o verbete metafísica, na Idade Média, onde a ideia de mundo era justamente uma das três substâncias metafísicas, as outras duas sendo Deus e o Eu. Impossível de ser experimentado pelas vias das intuições sensíveis, a ideia de um mundo coeso e uniforme subjaz ainda hoje em nossa subjetividade como um invisível arcobotante de uma catedral gótica a sustentar o edifício de nossas representações (para maiores imersões nesse prodigioso e assustador tema metafísico, indico a obra do Markus Gabriel POR QUE O MUNDO NÃO EXISTE, Ed. Vozes). Sem a ideia de mundo que a ausência de possibilidades proporciona, passamos a flutuar em um simulacro de bolha cósmica digital, em uma claustrofóbica volta ao útero materno, encapsulados em uma espécie de foguete funerário em que se tornou nosso quarto de dormir, lançados fora desse mundo infecto e dissolvido em uma panspermia suicida em busca de outro planeta respirável, já vendo pela escotilha a solidão das vastidões cósmicas a encher de opressão nosso peito. Se, como diz a ciência, toda a água da Terra é de origem extraterrestre, e se somos constituídos predominantemente de água, não seríamos de fato seres alienígenas e os vírus os verdadeiros donos do planeta? Voltando à infestação pelo coronavírus, este se apresenta justamente como um apagador, uma partícula movente do vazio que hora ocupa o lugar do mundo dissolvido. Feito a casa vazia dos antigos quebra-cabeças que permite as peças se locomoverem dentro do quadrado, o vírus é uma casinha de nada, onde a morte nadeja, e sua não-localização sugere, muito menos do que uma invisibilidade e onipresença, mas muito mais, uma não-existência do lugar, podendo estar em qualquer lugar justamente por não estar em lugar nenhum, visto não haver esse referente que dá sentido a qualquer localização: o mundo! Sem o mundo, sem a Orbi, não há Urbis nem tipo nenhum de eixo referencial; assim sendo, o vírus já está dentro de você, pois dentro e fora começam a se intercambiar em uma acosmia que leva consigo até mesmo a noção do tempo, com muita gente se queixando de desorientação temporal, confundindo os dias da semana e as horas – veremos depois como a noção de tempo está relacionada com o ritmo dos movimentos hora bloqueados -  e sentimos que pelo menos no âmbito mundano, tudo já com tudo se mistura como pensavam Anaxágoras, Giordano Bruno e Henri Bergson. Já somos portanto IMUNDOS, o dia inteiro a sofregamente lavar as mãos, como astronautas derrotados, prestes a se ejetar... O último a decolar apague as luzes do planeta!

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