O filósofo Kierkgaard
concebia a dimensão do tempo futuro como um campo de ilimitadas possibilidades
de vida, e possibilidades tão auspiciosas que ele as nomeava de oxigênio. Sempre
que o tédio lhe assaltava a existência ele clamava pelo possível. Suas palavras
era um grito: “O Possível! O possível, senão eu me sufoco!” Curiosamente, nesta
pandemia de Coronavírus que nos aflige, é justamente a falta de ar o sintoma
mais excruciante e letal. Muito antes da sua forma aguda, o sufoco nos
apresenta já no início da quarentena, em sua forma crônica, como uma asfixia de
possibilidades vitais. Quase nada já nos é mais possível. Nossos movimentos, nossos
encontros, nossos imperativos hábitos, toda a rapsódia da vida é lancetada por
uma sursis indesejável! Viciados em cocaína falam em um efeito de bloqueio psicossomático
durante as primeiras doses desse alcaloide. Se não me engano na gíria, se dizem
“travados”! Assim me parece o homem moderno confinado. Mesmo tendo ao seu lado
muitos livros, música, oficinas e mil atividades disponíveis, nada disso lhe
faz sentido sem a sua articulação com a vida real e é justamente a vida real o que
hora lhe é interditado. Como o oxigênio que queima as calorias no interior da
célula, são as possibilidades de ação e transformação do que absorvemos em casa
que dão sentido a todo esse leque de afazeres domésticos doravante não
digeridos como uma gordura existencial a entupir nossas veias! A varanda também
não traz alívio para nosso enfado, pois, no horizonte do futuro iminente, não se
ouve um único vagido de hélio, oxigênio ou qualquer outro comburente para
alimentar o fogo da vida! Apesar das lacrimosas mensagens de esperança nas
redes sociais, nenhuma pessoa sensata acredita que irá ver nascer uma nova
humanidade após essa pandemia, uma nova era de aquários com neo-hippies se
abraçando e confraternizando nas ruas, perdoando nossas culpas e nossas
dívidas, o amor coruscando seus raios no olhar dos transeuntes, a paz e a
concórdia governando as nações... Muito pelo contrário, a expectativa é de um novo
pesadelo a qual seremos convocados a aceitar e nele aprender a se virar como um
engomado turista náutico que subitamente se vê lançado às ondas de uma
espumante procela. Muito provavelmente, o estofo desse admirável mundo novo que
hora se insinua seja tão somente o desaparecimento da última dimensão
transcendental da existência humana, uma de nossas ilusões mais confortáveis, a
ideia de um “mundo”, uma orbe habitável, comum e diagramada sob a concórdia de
nossa faculdade de nele se locomover. O mesmo ar que nos envolve constituindo
nossa atmosfera habitável, é o mesmo que desenha o cenário e refrata a luz para
que tenhamos a percepção das cores e cuja ausência nos impediria perceber
formas, volumes e profundidades). Remeto-lhes para o verbete metafísica, na
Idade Média, onde a ideia de mundo era justamente uma das três substâncias metafísicas,
as outras duas sendo Deus e o Eu. Impossível de ser experimentado pelas vias
das intuições sensíveis, a ideia de um mundo coeso e uniforme subjaz ainda hoje
em nossa subjetividade como um invisível arcobotante de uma catedral gótica a
sustentar o edifício de nossas representações (para maiores imersões nesse
prodigioso e assustador tema metafísico, indico a obra do Markus Gabriel POR
QUE O MUNDO NÃO EXISTE, Ed. Vozes). Sem a ideia de mundo que a ausência de
possibilidades proporciona, passamos a flutuar em um simulacro de bolha cósmica
digital, em uma claustrofóbica volta ao útero materno, encapsulados em uma
espécie de foguete funerário em que se tornou nosso quarto de dormir, lançados
fora desse mundo infecto e dissolvido em uma panspermia suicida em busca de
outro planeta respirável, já vendo pela escotilha a solidão das vastidões
cósmicas a encher de opressão nosso peito. Se, como diz a ciência, toda a água
da Terra é de origem extraterrestre, e se somos constituídos predominantemente
de água, não seríamos de fato seres alienígenas e os vírus os verdadeiros donos
do planeta? Voltando à infestação pelo coronavírus, este se apresenta
justamente como um apagador, uma partícula movente do vazio que hora ocupa o
lugar do mundo dissolvido. Feito a casa vazia dos antigos quebra-cabeças que
permite as peças se locomoverem dentro do quadrado, o vírus é uma casinha de
nada, onde a morte nadeja, e sua não-localização sugere, muito menos do que uma
invisibilidade e onipresença, mas muito mais, uma não-existência do lugar,
podendo estar em qualquer lugar justamente por não estar em lugar nenhum, visto
não haver esse referente que dá sentido a qualquer localização: o mundo! Sem o
mundo, sem a Orbi, não há Urbis nem tipo nenhum de eixo referencial; assim
sendo, o vírus já está dentro de você, pois dentro e fora começam a se intercambiar
em uma acosmia que leva consigo até mesmo a noção do tempo, com muita gente se
queixando de desorientação temporal, confundindo os dias da semana e as horas –
veremos depois como a noção de tempo está relacionada com o ritmo dos
movimentos hora bloqueados - e sentimos
que pelo menos no âmbito mundano, tudo já com tudo se mistura como pensavam
Anaxágoras, Giordano Bruno e Henri Bergson. Já somos portanto IMUNDOS, o dia
inteiro a sofregamente lavar as mãos, como astronautas derrotados, prestes a se
ejetar... O último a decolar apague as luzes do planeta!
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