quarta-feira, 30 de agosto de 2017

LA VIE EN ROSE



  Re
cordando-me de uma bela temporada que vivi em São Paulo!


 Morava em uma pensão de uma italiana, no bairro Paraíso, perto da Avenida Paulista. Minha namorada possuía uma cantina italiana ali perto, ao lado do Centro Cultural Senador Vergueiro onde eu passava as tardes em sua biblioteca pública. No pátio desse Centro Cultural, acompanhava uma equipe de cinema rodando um filme com o falecido ator Raul Cortez. Em seguida ia para a Cantina ajudar minha garota a atender os clientes. Uma noite ela se atrasou e eu tive que assumir o atendimento. Justo nesse dia me apareceu por lá o Raul Cortez e parte da equipe do filme. Um garçom os atendeu e anotou seus pedidos. Para beber, o Raul Cortez foi tomado por um capricho e insistia em tomar uma taça de vinho Rosé. De trás do balcão eu ouvia ele se queixar que aquele fetuccini só combinava com esse tipo de vinho. Exigia a bebida com chiliques de um pop star! Eu tive medo de perder o cliente e resolvi improvisar, pois não tínhamos rosé em nossa pequena adega. Fui na cozinha, abri duas garrafas de vinho: um tinto e um vinho branco. Misturei os dois na mesmíssima proporção até ficar parecido com suco de pétalas de rosa. Pedi ao garçom para lhe servir. Raul sorveu metade da taça de um único gole, estalou a língua e elogiou com superlativos o suco do meu trambique. Perguntou ao garçom o nome do vinho. Eu me lembrei de um famoso aperitivo italiano de alcachofras chamado Cynar, e respondi lá do balcão!
_ CYNARETTI, CARO RAUL! C Y N A R E T T I!
Ele cheirou a taça, procurou no fundo da memória uma lembrança qualquer e comentou!
_ MA CLARO! CYNARETTI! ...
E voltando-se para as pessoas na mesa, exclamou algo parecido com:
_ ... È passato molto tempo che i'ho bevuto Cynaretti!
E estalava a língua entre garfadas de Fetuccini que minha namorada dizia ter a receita secreta herdada de uma avó italiana! Eu também tenho minha receita de vinho Rosé, CYNARETTI, que só hoje confesso. Raul Cortez bebeu mais duas taças. os outros preferiram coca-cola. Na outra semana, ele voltou a aparecer por lá pedindo uma taça de Cynaretti. Eu não estava nessa noite. A Monique ligou para a pensão desesperada perguntando-me pela bebida! Nem me lembro agora que explicação eu lhe dei. A mentira tem pernas curtas e memória menor ainda!

Nesse curto período em que namorei uma dona de cantina italiana, vivi outros insólitos episódios dignos de registro. Havia entre os cinco funcionários, um sujeito que não citarei o nome verdadeiro, vindo de Londrina, no Paraná, e que cuidava do abastecimento. Esse rapaz, quase um albino, estava com um péssimo costume de, toda noite ao voltar para casa, por um tablete de manteiga debaixo de um boné de aba dura e bem alto, escrito MICHIGAN, lembro-me muito bem desse detalhe. Uma noite, decidido a por um fim nesse costume doentio, chamei Isidro, usarei esse nome doravante, até os fundos da cantina e lhe pedi supostamente um último favor antes de ir embora, não sem antes me certificar que ele já havia colocado seu tablete de 200 grs de manteiga entre os tufos do seu loiro e ondulado cabelo. Na época, possuíamos um forno elétrico, a sensação do momento, e eu estava precisando testar um suposto defeito no equipamento. Pedi que ele segurasse com uma chave inglesa um determinado rebite nas fiações, mantendo-o sempre apertado, enquanto eu mexia em coisas de nomes estrambóticos e ligava várias chaves, a procura do defeito. Era preciso que o fogão ficasse ligado no máximo enquanto eu procurava pelo problema. Ainda lhe avisei para que, em hipótese nenhuma, ele retirasse a chave do rebite, pois tudo poderia ir pelos ares. Dado essas explicações, comecei a simular minha performance enquanto observava o calor aumentar consideravelmente dentro da cozinha e ferver ao lado do forno! Não demorou muito para que o tablete de manteiga, enrolado em papel, começasse a se derreter com o calor e a escorrer pelo rosto afogueado do pobre rapaz. Primeiro encharcou a testa, depois pingava pela sobranceira sobre as maçãs proeminentes do rosto e empapava o bigode obsceno que ele ostentava. Com ameaças repetidas de o forno explodir se ele abandonasse a pressão no rebite, eu o mantive ali até que o pacote inteiro se esvaiu pelas laterais da sua fronte, untasse suas orelhas e banhasse todo o seu pescoço como um pequeno leitão à pururuca pronto para ir ao prato! Chegou um momento que ele não pode mais esconder o crime. Desliguei o forno, apanhei uma toalha de rosto e lhe estendi, dizendo:

_ Limpe isso! Pode ir embora agora! Amanhã conversaremos!

Lembro-me de ter ficado também um pouco constrangido com a cena, tomado pela famosa “vergonha alheia”. No outro dia ele não apareceu. Acho que teve medo que abatêssemos de suas contas a receber a quantidade exorbitante de manteiga desviada, e que tivesse de nos ressarcir, ao invés de receber!

* Como o tema de origem foi um vinho rosé "fake", achei pertinente acrescentar um apêndice sobre outras notas "fakes" nos vinhos da literatura:

 ...Há uma passagem em Dom Quixote de La Mancha onde dois fidalgos estão apreciando um odre de vinho em uma taberna e, nos primeiros goles, começam a discordar sobre s notas gustativas do licor mágico. Um diz que há um marcante travo de couro, outro diz que predomina o sabor de ferrugem. Couro! Ferrugem! Ferrugem! Couro... A discussão não tem fim, chegam mesmo a apostar, até o momento em que o odre de vinho acaba e, lá no fundo, encontra-se, inadvertidamente esquecida, uma penca de chaves enferrujadas presas por uma quase digerida tira de couro curtido!

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