No ano da graça de Nosso Senhor de 2129, o cyborg Renier se apaixonou 
pela garçonete-robô da estação orbital Júpiter Huit, durante uma 
quarentena no local antes de voltar para a terra.
 
Para ela, no tédio da 
sua cabine onde se poderia ver as luas gigantescas de júpiter sob o 
fundo gasoso do planeta ocupando mais da metade do seu horizonte visual,
 ele escreveu um conto de amor que resumirei aqui, sem o estilo 
incompreensível e as metáforas bizarras de um sentimento digital, o que 
quer que venha a ser isso. 
O conto era sobre um japonês agricultor 
submarino, no ano de 2081, que se apaixonou por Hiro Ozu, a prefeita da 
Cidade submersa de Akkiwaga. Mesmo usando o dia inteiro a máscara que 
lhe permitia respirar debaixo d’água – a ela e a todos os 85 mil 
moradores da grande fenda oceânica -, ela era linda e seus olhos 
pareciam brilhar mais do que os mil iridescentes tentáculos de peixes 
abissais que circulavam ao redor quando eles deslizavam juntos pela 
grande corrente, montados sobre um grande cachalote amestrado. Com medo 
de se declarar para ela, Oshygan, o japonês das algas mais deliciosas do
 planeta, escreveu para sua amada um curto romance que meu sofrível 
japonês só me permite descrever em linhas gerais: era um romance que se 
passava na primavera de 2039. Após participar da última batalha no 
deserto de Mojido, quando a última falange do Grande Califado fora 
extinta, o jovem israelita Ben Atalev foi hospitalizado para o implante 
de seu cérebro no corpo de um clone cultivado para casos extremos como o
 dele, quando grande parte do seu corpo fora danificado pelos ferimentos
 de guerra. Cuidou dele uma linda enfermeira libanesa, de nome Penina 
Gusmael. Às primeiras colheradas de sopa que ele recebeu na sua nova 
boca pelas mãos suaves e maternas da morena de damasceno hálito, Ben 
Atalev caiu de amores, e tão estranho é o amor na alma de um soldado que
 ele pensou, por muitos dias, que aquele sentimento era alguma coisa não
 resolvida e pertencente ao corpo do clone onde ele fora reimplantado. 
Quando, por fim, entendeu que a amava de verdade, com essa convicção 
inexplicável que é a certeza mais inabalável dos apaixonados, teve medo 
de se declarar. Resolveu então escrever para ela um conto de amor, algo 
que lhe parecia obsoleto e ultrapassado, mas que ele poderia atribuir ao
 atavismo do seu povo, que, para além dos corpos substituíveis, 
carregava a invenção da literatura na alma! Escreveu em um hebraico 
imutável a história do agiota e poeta nas horas vagas, Cassiano Ribeiro 
Santos, este que hora digita essas mal formatadas linhas. 
Como meus 
predecessores nessa alinhavada trama, eu também me encontro apaixonado, 
sem, contudo, saber exatamente por quem. Vasculhei todo o meu perfil 
para ver quem seria a pernoca que estava monopolizando o meu coração: 
Suzette, Danny, Úrsula, Gerúsia, Belina, Helga.. Não sabia por quem. Foi
 quando tive a ideia de publicar esse rascunho na minha rede social para
 que a dona do meu coração se manifestasse, afinal, podemos esconder ao 
máximo uma paixão secreta por u’a mulher, mas ela sempre o saberá! 
Publiquei e tantas pessoas curtiram, tantas comentaram e compartilharam,
 tantas disseram serem elas a dona do meu coração que o texto viralizou,
 correu o planeta inteiro em dezenas de traduções imperfeitas e cinco 
milhões de likes. Tão intenso fora a impressão de ser verdadeiro e 
mágico esse meu sentimento que, ao ler o conto do soldado judeu onde o 
meu cibernético e pastoral amor estava registrado, a doce enfermeira 
libanesa, Penina Gusmael, não resistiu aos eflúvios apaixonados do 
autor. Onisciente como todo escritor, o Atalev sabia o nome e a 
intensidade de todas aquelas que me amam, descrevendo em seu conto os 
arrebatados dilaceramentos das fantasias amorosas. Foi inevitável o 
contágio, epidêmico que é o amor. Penina se entregou de corpo e alma ao 
Ben Atalev, tornando-se a carne da sua nova carne. Um amor tão nobre e 
ardente que, quando Hiro Ozu, a prefeita da cidade submarina, leu o 
romance onde toda essa romântica série era contada em riqueza de 
detalhes pela escrita suntuosa do agricultor Oshygan, não teve dúvidas 
de ter encontrado nele, em sua imaginação tão requintada, o amor da sua 
vida, e que ele poderia lhe salvar das águas profundas do esquecimento 
ao lhe retratar como personagem em um de seus futuros romances 
passionais. 
Com um mesmo efusivo, inventado e verdadeiro amor ela o 
aceitou que, ao ser lida a cena do casamento dos dois apaixonados 
submersos, encheu-se de lágrimas as válvulas da garçonete-robô, 
suspirando no depósito de máquinas e decidida a, no outro dia, aceitar o
 convite do cyborg Renier para um passeio sideral até os anéis de 
saturno, logo ali perto, para neles celebrarem um amor que, sabia agora,
 estava escrito eternamente na órbita enlouquecida de todos os astros! E
 que todos os amantes do futuro, por essa flecha de cupido atirada no 
coração do tempo, possam lhes agradecer por terem anonimamente 
participado, com seus compartilhamentos e likes, desse episódio prenhe 
de auspiciosas fatalidades!
 

 
 
 
 
 
 
 
 
 
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