Generoso
 de Oliveira, Farmacêutico e alfarrabista de Penedo, nas Alagoas, lá 
pelos idos dos anos trinta, jamais se esqueceria da manhã ensolarada em 
que Lampião e cinco cangaceiros notórios entraram em sua botija 
procurando por balas de hortelã e curioso por comprar algum livro que o 
ajudasse a compreender melhor a sua inseparável Bíblia, pois que, no 
alto da Caatinga, na vida errante que 
levava, quase lhe era impossível consultar um padre ou pastor sobre o 
sentido de certas passagens bíblicas. 
Espirituoso, comentou que nem 
sempre o Espírito Santo lhe explicava as dúvidas por conta de uns 
pecadinhos que regularmente era forçado a praticar. Trêmulo e sentindo 
estar envolvido por uma missão maior do que era capaz de compreender, 
Generoso de Oliveira sacou da prateleira um exemplar recém adquirido do 
livro A Vida de Jesus, da escritora americana Hellen White, fundadora da
 Igreja Adventista do sétimo Dia e o entregou ao Capitão, sem tirar os 
olhos do enorme facão corneta com que o Famigerado cangaceiro limpava as
 unhas empoeiradas. Lampião perguntou o preço, Generoso teve receios em 
cobrar, sugeriu um presente. Lampião fez questão de pagar, sem regateio,
 e fez tilintar sobre o balcão uma gorda moeda de prata de 300 Réis. 
Generoso aceitou, mas insistiu que as balas de hortelã ficassem como um 
agrado de um grande admirador. Lampião acreditou na admiração sincera e 
aceitou o presente. Partiu como chegou, sovertido pelo vento norte, 
carregando consigo todos os sons e rumores da rua doravante silenciosa. 
Não passou dois meses e um bilhete do Capitão Virgulino, escrito de 
próprio cunho, lhe fora entregue por um mascate com discrição e 
expectativa. O Capitão comentava de modo esfuziante como o livro da 
teóloga Americana o ajudava a entender a Bíblia e da sua férrea 
disposição de se converter à Igreja Adventista, o mais cedo possível. No
 ensejo, pedia ao alfarrabista que lhe mandasse mais livros daquela 
autora pelo portador, que estava autorizado a lhe pagar quanto ele 
pedisse. Generoso de Oliveira lamentou não ter, no momento, nenhum livro
 da citada autora, mas escreveu-lhe uma resposta se comprometendo a 
prontamente encomendar toda a obra da escritora e levar pessoalmente em 
local que o capitão calhasse de marcar. Orgulhoso do seu feito, sonhando
 com a fama que lhe caberia se conseguisse fazer o lendário bandoleiro 
se arrepender e abandonar a vida de criminoso, Generoso de Oliveira 
convidou o mascate para almoçar e lhe fez vultosas encomendas de 
mercadorias da Europa. Desse mascate e de outros que por sua botija 
passara doravante, veio a saber de como o Capitão passara a respeitar o 
sábado, dia santo dos adventistas, não perpetrando nele nenhuma de suas 
famigeradas atrocidades, não capando, não matando, não roubando sequer 
um dente de ouro dos rábulas que sentavam praça nas cidades pequenas do 
sertão. Jejuava e orava o dia inteiro, na esperança que o Altíssimo 
perdoasse os crimes a que ele canonicamente se entregava nos dias de 
feira. Não demorou muito e chegou-lhe-lhe da capital, vindo do Rio de 
Janeiro, um pacote com nove livros da Hellen White, tudo que dela, 
então, havia sido publicado em língua portuguesa. No outro dia mesmo 
decidiu viajar até o outro lado do São Francisco, se embrenhar no sertão
 de Sergipe e levar a encomenda ao seu mais ilustre freguês. Embora 
fosse quase impossível a um volante descobrir onde andava o Capitão e o 
seu bando, para um paisano encontrá-lo era a coisa mais fácil desse 
mundo, era só chegar a uma cidade qualquer da região, passar a manhã na 
feira e espalhar que era amigo do Capitão Virgulino, que tinha uma 
encomenda pessoal para ele, e, é claro dizer o nome de quem o procurava.
 A notícia se espalhava pelo sertão feito jandaias no alvorecer. Em 
questão de um ou dois dias, por onde for que andasse o requerente, seria
 encontrado. Não deu outra. Mal saia ele do povoado de Lagartos, sertão 
de Sergipe, montado em sua auspiciosa e intuitiva mula Esmeralda, foi 
abordado por dois cangaceiros que o revistaram, pedindo-lhe que os 
seguisse, sem precisar se aproximar muito ou conversar o que quer que 
fosse. No final do dia dormiriam em uma fazenda. No outro dia de manhã, 
estariam no esconderijo do bando. Assim o fizeram. Na frente da picada 
iam os dois cavaleiros do crime, reluzindo ao sol a macheteria de ouro e
 prata costurada no gibão, carabinas e cravinotes sobre alforjes e 
cartucheiras vistosas cruzando seus magros esqueletos castigados pelo 
sertão. Atrás ia o intimorato alfarrabista, levando consigo a preciosa 
biblioteca de Virgulino Lampião. Fosse o inclemente sol, feito rei 
Midas, a cintilar raios de ouro sobre tudo onde brilhasse, fosse o 
verdadeiro e ostensivo ouro nos apetrechos dos cangaceiros, o certo é 
que Generoso deu pra esquecer a missão altruísta de converter o 
famigerado e a pensar em quantos mil réis poderia conseguir com a venda 
do tesouro empacotado e pendurado no cabeçote da sela. Era uma 
sexta-feira. O encontro com Lampião seria em um providencial sábado e 
isso, mesmo sendo a cobiça e não a conversão quem movia sua alma, lhe 
pareceu um sinal divino, considerando que a pouca fé, como uma 
bruxuleante chama, produz mais sombras do que ilumina os corações. No 
sábado, Lampião virara um anjo de tanta piedade e devoção. Ele iria 
poder regatear à vontade. Chegaram à noitinha em uma sede de fazenda 
escondida entre umbuzeiros de entrelaçados galhos e ali mesmo estenderam
 suas redes. Jagunços não dormem em casa, disseram-lhe. Foi permitido a 
Generoso, entretanto, dormir dentro da casa em uma cama feita com tiras 
de couro de boi entrelaçada e confortável travesseiro de paina! Sob o 
generoso luar do sertão, Generoso não conseguiu conciliar o sono. 
Pensava na fortuna que Lampião lhe pagaria pelos livros e ensaiou várias
 vezes, caminhando pelo quarto sob a luz de um fumarento fifó, o duelo 
comercial que teria com o Rei do Cangaço. Sonhava inclusive com essa 
cena quando os Jagunços Firmino e Aderaldo lhe acordaram, no coco da 
madrugada, para seguirem viagem. Percebeu que os jagunços salmodiavam 
uma cantilena e deduziu que Lampião havia convertido o bando inteiro ao 
credo adventista. Com que métodos, se arrepiou só em pensar! Inferindo 
daí que no sábado eles seriam mais amistosos e humanos, Generoso se 
atreveu a cavalgar ao lado deles, conversar o tempo inteiro e fazer mil e
 uma perguntas. Assim se passou o dia e chegaram, por fim, ao 
acampamento do Capitão, nas margens do Riacho do Navio, que deságua no 
Pajeú, que deságua no São Francisco e que vai bater no meio do mar!
Ali o capitão celebrava uma grande vitória. Um fazendeiro muito rico, 
sabendo que o cangaço cobiçava sua fortuna, mandou desviar o leito do 
Riacho. Em seguida, no leito seco, cavou uma loca entre as pedras e ali 
enfiou seu baú transbordando de ouro, prata e pedrarias. Depois, fez 
seus homens rolar as pedras e trouxe o riacho outra vez para o leito 
antigo, sepultando assim sobre as águas barrentas o seu encantado 
tesouro. Nem preciso dizer que o Fazendeiro findou por matar os doze 
homens que fizerem o serviço de desviar as águas, em uma emboscada de 
inenarrável crueldade. Mas um deles escapou com vida e rastejou até ser 
levado ao Cangaço, morrendo feliz ao contar no ouvido de Lampião o 
destino do Tesouro enterrado. Nesse dia Lampião festejava o botim 
resgatado das águas. Generoso quase enlouquece ao saber do tesouro que 
Lampião agora desfrutava. Mal conseguiu almoçar na expectativa de ir ao 
seu encontro. O sol já se aproximava do seu ninho quando Generoso foi 
recebido com efusivos abraços por Vergulino. Foram logo ao assunto, por 
iniciativa do capitão. O alfarrabista começou então o seu show 
particular. Abriu o alforje e desatou o pacote com os nove livros da 
Helen White. Viu os olhos do cangaceiro brilharem de alegria por trás 
das lentes graúdas do seu antológico óculos em armação de ouro.
_Quanto? – Perguntou-lhe Virgulino.
_ Todo o ouro e a prata que o senhor retirou escondido no leito do Riacho do Navio!
Lampião gargalhou. Raramente fazia isso. Seus homens todos repetiram 
mecanicamente sua gargalhada (contam que até um jumento zurrou no pasto,
 temendo as vergastadas se contrariasse o humor do poderoso chefão).
_ O Senhor não pode estar falando sério, Cabra!
Para provar que não arredaria um milímetro da sua proposta, Generoso - 
inspirado por quem sabe que diabólica inteligência - começou a encenar o
 seu plano. Apanhou aleatoriamente três livros do pacote e se dirigiu 
até uma grande fogueira acesa perto dali, onde ferreiros improvisados 
labutavam os ferros do ofício, e lançou-os às chamas que prontamente 
lamberam suas prístinas páginas, como se o próprio príncipe dos infernos
 se aprouvesse em destruir os livros da profetiza abençoada! Lampião 
empalideceu, ainda tentou salvar os livros desejados, mas não conseguiu.
 Todo o acampamento parou seus afazeres e rodearam o local para assistir
 à inusitada cena. Lampião olhou o comerciante com profundo desgosto e 
náusea:
_Quanto o Sr quer pelos livros que sobraram?
Com a audácia de um domador que entrou na jaula e não pode mais recuar, Generoso repetiu, seguro e peremptório:
_ Todo o ouro e a prata que o Senhor retirou do leito do Riacho do Navio!
_ Tome juízo, Cabra! Isso lá são modos de negociar! Está querendo me acuar no canto da parede como um rato lá do seu armazém?
A fúria do Cangaceiro começava a ganhar contornos no seu rosto 
ressequido. Mas Generoso era homem experiente. Sabia que o Capitão era 
um homem de princípios. Que jamais profanaria o sábado. E sabia que 
ainda teria um largo intervalo de tempo para se escafeder se seu 
estratagema não funcionasse. Enfático, com passos teatrais e sem 
pronunciar uma só palavra, apanhou mais três livros do pacote e o levou 
às chamas que, viciadas na heresia, já lambiam os beiços de fogo à 
espera do repasto. Lampião parecia não acreditar no que via. Um ser 
imaginativo poderia pensar que ele chorava sob as crispadas pálpebras e 
respiração ofegante. Generoso, sentindo orgulho por estar dobrando um 
lendário bandoleiro com a força da sua astúcia, deu a sentença final:
_ Agora só lhe resta três livros, meu Capitão. Todos também de 
inestimável valor. Mantenho o meu preço. Todo o ouro e a prata que 
tirastes do leito do Riacho. Isso enquanto ainda pode comprar o que 
sobrou. Talvez em breve não sobre nada que seu ouro possa comprar!
O
 sol se pondo banhou de ouro e prata todo o cenário, dando um tom solene
 e oriental ao drama encenado entre dois homens ambiciosos e 
intimoratos, um possuindo a realeza do ouro, o outro, a perfídia da 
prata! Lampião, percebendo o sol se por, se retirou profundamente 
transtornado e começou a orar ajoelhado na porta da sua tenda. Todos os 
jagunços fizeram o mesmo. Generoso achou por bem seguir o gesto, 
confirmando a superioridade dos dogmas em que ele tanto confiava. Tinha 
certeza que a oração iria fazer o coração do Capitão ceder e aceitar sua
 proposta. Finda oração, Lampião se levantou e foi direto ao pacote onde
 restavam três livros da sua profetiza adorada. Folheou-os com profunda 
veneração. Impávido na penumbra, Generoso esperava. Lampião tomou o rumo
 da sua tenda com os livros sob o braço. No meio do caminho, virou-se 
para seu braço direito, Corisco, lhe dizendo:
_ Sangre esse cabra 
atrevido. Já que ele tem tanto apreço pelo Riacho do Navio, ponha o 
corpo dele no buraco e solte as águas de novo. Pelo menos urubu não irá 
comer sua insolente sustança!
Os homens avançaram em frenesi para o
 pobre aventureiro. Seguraram-lhe firme, embora ele não ensaiasse fugir.
 Levaram para o leito seco do Riacho. A lua, curiosa, deu de aparecer à 
sorrelfa entre nuvens pesarosas, iluminando sem se comprometer com a 
carnificina anunciada. Corisco desembainhou seu facão guarani niquelado.
 Generoso teve tempo e coragem para protestar contra a imprevisível 
virada de sorte no desfecho macabro:
_ Mas hoje é sábado! O Capitão guarda o sábado de toda profanação e atividade! Não pode me matar hoje. É duplo e mortal pecado!
Corisco olhou com piedade para Generoso e comentou alto para todos ouvirem:
_Coitado! Não sabe que o povo da Sagrada Escritura conta os dias a 
partir da lua. Que o sábado de Deus começa no por do sol da sexta feira e
 vai até o por do sol do nosso sábado! Hoje já é domingo, mequetrefe do 
miolo mole!
E assim falando, de um golpe separou-lhe a cabeça do seu corpo com extrema precisão!
Seguiram em grupo até a loca de pedras no leito seco onde jogaram o 
corpo do infeliz. Em seguida martelaram os tocos da barragem improvisada
 e o leito do Riacho voltou vertiginoso para o seu lugar natural. Após 
contemplarem o espetáculo das águas, feito inocente crianças do cão, 
voltaram em fila indiana para o acampamento entoando uma debochada 
parlenda de antão que, de longe, podia-se ouvir sob o cruel luar do 
sertão:
  “Hoje é sábado, pé de quiaboque deu no domingo pé de cachimbo,
O cachimbo é de ouro
Quer dar no besouro
O besouro é valente
Quer dar no tenente
O tenente é de linha
Quer dar na galinha
A galinha é de Nino
Quer dar no menino
O menino é bufão,
TCHBUF NO CHÃO!
E gargalhavam imitando o corpo retalhado de Generoso caindo pesado na loca do Riacho do Navio
 


 
 
 
 
 
 
 
 
 
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