sexta-feira, 10 de junho de 2011

AS POTÊNCIAS DO FALSO




            No passado distante da humanidade ainda ressoa o adágio do filósofo Platão: “a linguagem escrita acelera a perda da memória”.
Para alguns intérpretes Platão temia que a escrita, como uma erva daninha, invadisse o templo da memória conspurcando o exercício desta faculdade já que todo o conhecimento poderia ser estocado nos livros da História;para outros, o sentido desse adágio seria bem diferente, a escrita funcionaria como uma catarse e na superfície de um texto, à luz da consciência e do entendimento, as experiências vividas deslizariam para o mundo, para o domínio público, diluindo no pensamento a pessoalidade, as dobras obscuras do sentimento que constituiria a memória como trauma, como segredinhos sujos. Afinal, se é verdade que toda escrita é merda, também o é que toda memória é um lixo imundo. Fui decididamente a causa errante no trágico destino do professor Carlos Valadares e espero com esta narrativa melancólica atenuar o meu remorso profundo. Personagem de uma vida transbordante, Valadares foi um “flaneur” na juventude, um pracinha condecorado na segunda guerra, um catedrático professor de física , um inventor genial e um homem muito louco necessariamente.

Quando fui convidado para ser seu assistente no início dos anos setenta, eu nada sabia a seu respeito e muito pouco sobre a potência do amor no coração de certos homens. Morava ele em um vale nas montanhas de Teresópolis, em um sítio cujo portão de entrada ficava a poucos metros da rodovia. Toquei o sino várias vezes e o cão de guarda ouvia o eco ressoar nas montanhas próximas ao latir para mim. Supondo ser o eco o ladrar de outros cães, saiu ele em disparada pelo bosque perseguindo os fantasmas sonoros. Abri o portão e voltei ao volante sem saber estar iniciando minha experiência mais sublime e tenebrosa. A estrada conduzindo à casa de pedra era quase uma garganta acentuada pelas íngremes árvores do bosque. Esculpidas nestas árvores, nas margens do caminho, havia fabulosas estátuas de personagens bíblicos. Possuíam bocas bem abertas e grandes orifícios escavados nas costas. Por um bom tempo fiquei admirando as linhas colossais e a expressão imponente destes ícones majestosos. Talhados em carvalhos gigantescos, alguns medindo quatro metros de altura, não comprometiam, contudo, a árvore onde estavam incrustados e suas faces repousavam à sombra de folhas copiosas. Percebi uma desproporção da cabeça e de certas partes do tronco em relação ao resto do corpo; eram esculpidas em dimensões maiores corrigindo a impressão de altitude e pareciam estar no mesmo plano de quem fitasse suas faces descomunais e opressoras. Havia mais de duas dezenas destas esculturas ao longo da ravina onde mal passaria um pequeno automóvel e fiquei imaginando que música celestial estaria entoando aqueles soberanos em trajes góticos quando uma forte ventania penetrou no soturno corredor assobiando como se uma entidade perversa a estivesse cavalgando. As folhagens farfalhavam em um murmúrio crescente e fantasmagórico quando uma nota cristalina emitiu-se à distância pela boca das estátuas, depois outra e mais outra, logo se entoou uma canção vigorosa e o vento modulado no oco dos carvalhos enchia o bosque com um hino de Haendel dobrando-me os joelhos diante de tanto mistério e magnificência. Fiquei aterrorizado. Não sabia se prosseguia ou se voltava quando surgiu um senhor de cabelos brancos e desfeitos correndo entre as árvores e gritando:

- Elas cantaram! Elas cantaram! Quem é você afinal? - Perguntou a me ver quase desfalecido. Identifiquei-me como sendo o físico contratado como assistente.

- Foi o senhor quem criou estas esculturas musicais? - Perguntei.

- Não. Copiei-as do escritor inglês Samuel Butler. Custaram-me vinte anos de trabalho...

Não consegui ouvir os comentários seguintes. Uma cloaca de ruídos disparatados invadia a minha consciência: multidão de berberes orando no deserto, trovoadas e ondas quebrando-se nas praias, tubas e animais selvagens que poderiam ser ouvidos como coisas completamente distintas tão mal sintonizadas que estavam. Havia caixas de som espalhadas por todo o jardim e em todos os cômodos da casa como pude verificar mais tarde. O professor Valadares estancava o passo perto de uma e ouvia os ruídos com expressão extasiada.

- Ouça bem. Um dia ouviremos isto como música e nos será revelado grandes verdades.

Seus olhos brilhavam. Eu nada entendia, mas não ousava interrompê-lo tamanha a minha admiração pelo seu gênio, não encontrando outro epíteto para o autor daquelas esculturas musicais que ainda hoje as vejo em sonhos, no bosque aterrador, entoando seu hino visceral. Ao entrar na grande casa de pedra meus tímpanos quase estouraram e com muita dificuldade fui apresentado ao casal de serviçais que era toda a sua companhia: Cesário, um secretário eclético que entendia um pouco de tudo e Matilde, sua esposa, que entendia muito de uma coisa- serviços domésticos. Cesário era muito surdo, usava um ostensivo aparelho no ouvido (o professor usava um também, embora mais discreto) e compensava essa deficiência com um arsenal de mímicas e gestos. Levou minhas malas para o quarto de hóspedes enquanto o professor guiava-me a uma sala com paredes revestidas onde pairava um silêncio absoluto. Quando dormimos embalados por algum som, um rádio, um ventilador, um ar-condicionado, costumamos acordar se o som for bruscamente interrompido e tive a sensação, ao entrar naquela sala, de estar acordando após um pesadelo. Carregava no espírito muitas questões, mas os olhos fixos do professor impediam-me de formulá-las. Desviei minha atenção para um livro sobre a mesa. Tratava-se da “História do Império Bizantino” de Nicolaus Évola e estava aberto nas páginas que abordavam a arquitetura palaciana. As gravuras eram formidáveis e folheei o livro enquanto o professor estudava o meu currículo. Em volta do palácio ficava o mercado e ruas estreitas onde transitava o povo que elevou ao mais alto grau a arte das intrigas e dos venenos. Neste império as conspirações eram intermitentes, os golpes de estado, semestrais e os príncipes na mais tenra idade ingeriam doses homeopáticas para se imunizarem dos recorrentes venenos. Nas paredes limitando as estreitas vielas havia grandes túneis circulares que iam se afunilando à medida que se aprofundavam. Pareciam esquisitos túneis de ventilação. No interior do palácio onde esses túneis findavam-se em diâmetros de poucos centímetros, funcionários passavam o dia inteiro com o ouvido junto às aberturas ouvindo todos os comentários murmurados no mercado. ‘PANAUDIUM’ era o nome desse dispositivo onde o povo era vigiado no órgão onde impera o maior dos descontroles: a língua. Varri os olhos pelo interior da sala supondo que ali houvesse algo parecido e deparei-me com o professor fitando-me e sorrindo.

- Quantos anos você tem, meu rapaz ?

- Vinte e cinco. - Respondi inseguro cofiando os bigodes.

- Muito jovem, muito jovem. Muito passado ainda suporta! - Seus ombros inclinaram-se um pouco mais sobre a mesa - Aqui é o meu escritório, o único lugar da casa onde há caixas de som. Devemos estar atentos o tempo inteiro. Sente-se. - Teve a gentileza de passar a mão ossuda sobre o veludo onde dormia anos de poeira. Apanhou na gaveta uma pilha de papéis e fitou-me por um longo tempo antes de confiar-me o que parecia ser um grande segredo dado o tom sigiloso da sua voz.

- Li o seu currículo na universidade. Sei que é brilhante em física e matemática . Aqui está um trabalho de duas décadas. - Estendeu-me trêmulo um pacote de folhas avulsas - Leve-o para os seus aposentos. A governanta lhe guiará ao quarto de hóspedes. Espero que amanhã cedo já possa apresentar-me alguma sugestão. - Tentei evitar um compromisso tão sério, mas ele já abria a porta e por ela se ouvia um grito animalesco e confuso que em breve modulou-se em uma voz feminina em estado de sofrimentos atrozes. O professor disparou como um atleta para o laboratório e fiquei olhando, atônito, suas longas e finas pernas à centímetros do chão. A extrema originalidade da tese que eu lia e as vozes macambúzias que adentravam pelas frestas da janela consumiram toda a minha noite e às cinco horas da manhã assaltou-me no espelho a minha imagem aparentando dez anos de envelhecimento precoce. Bastava-me fechar os olhos para ver agitadas no espírito todas as equações engenhosas que gemiam e galopavam ao som de apitos e sirenes tamanho que era o barulho insistindo na janela e a potência do alucinógeno que ingeri ao subir a serra de Teresópolis. Sozinho, o professor Valadares havia desenvolvido uma genial teoria matemática que anos depois, por casualidade do espírito humano seria concebida por um matemático judeu e conhecida no mundo inteiro como “Geometria dos Fractais”. Esta teoria demonstra que qualquer estado caótico, um gás, um relevo, um comportamento social ou uma tela de um esquizofrênico possuem configurações que se repetem em escalas variadas e que é possível, por exemplo, prever os futuros desdobramentos de uma frente fria conhecendo a forma originária nos pólos do planeta. Valadares estava aplicando-a em suas pesquisas de acústica supondo que os sons não se extinguem uma vez emitidos, apenas decaem para limiares que nossa audição não pode mais perceber. Ficou claro para mim, ao menos em teoria, que uma ária dispersa na atmosfera pode ressoar inteira, quilômetros depois embora em dimensões que somente um liliputinano poderia ouvir.

Só fui rever o mentor dessas idéias durante o jantar servido na varanda em frente ao lago. Passei a tarde passeando pelo sítio, dormi à sombra de uma copiosa árvore e tinha o semblante mais animado. Com alguns comentários demonstrei haver entendido suas pesquisas e apto assim para o meu primeiro emprego embora não tivesse no momento nada a acrescentar. Ele parecia não estar ansioso, bastava-lhe um companheiro nesta insólita viagem feita de cálculos e vozes fantasmáticas. As estrelas iam acendendo-se aos poucos como se uma fada esvoaçante fosse tocando cada uma delas com a sua varinha mágica. Do bolso do casaco ele retirou uma foto e a mirava absorto. Interrompeu o meu devaneio mostrando-a e dizendo-me:

- Veja! Estes olhos ainda brilham mais que todas as estrelas! - Reconheci a mulher de tez morena e inquieta expressão no grande retrato a óleo na parede da sala.

- Ainda brilham! Ela está viva então... - Ele nada respondeu. Olhou para o alto entre o fumo do cigarro que se perdia como o seu pensamento em formas fantásticas e animadas.

- Somos uma ilha, meu caro, completamente isolados na imensidão do espaço - ele falava de sons e descobri depois ser este o seu tema monocórdio - eles não se propagam no vácuo e estão todos aí se acumulando sobre nossas cabeças.

Pelas caixas espalhadas na varanda ouvia-se algo como árvores derrubadas, espelhos partidos, feirantes desesperados e latas d’água rolando por escadas, sons que pareciam confirmar o delírio de um louco sonoplasta. Um raro silêncio deu-se nos aparelhos e eu aproveitei:

- Tantos sons produzidos desde que o planeta nasceu e não ouvimos nada, Valadares! - Ele sorriu para mim apontando o longo dedo para o ouvido.

- Somos os animais mais surdos do planeta. Uma surdez progressiva e degenerada. Apanhe um homem primitivo, um fenício, por exemplo, e ponha-o no silêncio destas colinas. Ele teria os tímpanos estourados! - Sua convicção profunda abalava-me. Continuou:

- Essa pletora de ruídos nesta sala é necessária, pois não consigo ainda integrar com acuidade o que os sensores captam e conto sempre com o acaso. Por três vezes nesta casa fui brindado por ele. Quer ouvir comigo as fitas?

Subimos ao laboratório. Ali ouvi atordoado um discurso inflamado que Valadares garantiu ser a voz de Getúlio Vargas mostrando-me a versão escrita nas páginas estioladas de um velho jornal. Ouvi o canto de um pássaro e uma fanfarra militar que hoje não se escuta mais. Mostrou-me a subatômica vibração originária nos sensores que ele próprio fabricara, os sintetizadores analógicos usados na ampliação e aplicou sobre eles as equações que permitiam deduzir o tempo de emissão pela altura da gama sonora captada. Bravo! Bravo! A voz humana hoje laicizada possuía na origem dos povos um estatuto mágico, traziam a verdade em seu bojo criando profetas e oráculos. Senti naquela audição, sem saber explicar, ser a voz de Getúlio genuína, isenta de todos os vestígios do falso. Meu ceticismo desapareceu como se um ouvido transcendental houvesse brotado em minha alma. Ouvi a gravação cinco vezes. Valadares encerrava suas noites trancado na sala, ouvindo uma fita com todos os ruídos semelhantes às vozes femininas selecionados durante o dia e muitas vezes arquivei a fita nas gavetas com o nome “Rainer”, mas passou-se um bom tempo antes de interessar-me os caprichos e a vida pessoal do meu anfitrião e amigo. Minha mente vivia então agitada pelas promessas da deslumbrante invenção. Em breve a história seria revolucionada por um cortejo fabuloso de testemunhas falastrãs. As musas do passado tornar-se-iam enfim audíveis para todos, não mais seriam exclusivas aos poetas inspirados e vislumbrei um futuro luminoso onde Terpsícore bailava... Meu espírito juvenil transbordava em possibilidades tangenciando a fantasia, o delírio e a divindade. Passei noites em claro, debruçado sobre equações e acreditando ouvir vozes como um alienado. Criminosos ouviriam as vítimas acusando-lhes na sala de um tribunal, o clamor das batalhas modificaria a lista dos heróis e dos covardes e fábulas perdidas na boca dos ágrafos insuflaria de vida nova o nosso moribundo espírito literário. Sentia-me um herói, o próprio “Angelus Novus”, o anjo da história de Paul Klee pintado com a espada voltada para o passado. De manhã cedo, muitas vezes sem ter dormido nada eu descia ao salão esperando o pontual café que Matilde servia às seis horas e um quarto. Na parede os olhos matreiros do retrato me fitavam e sua boca entreaberta parecia sussurrar alguma coisa que talvez ainda estivesse vibrando na atmosfera saturada de cigarros.

- Quem é essa mulher, Matilde? Por acaso se chama Rainer? - Perguntei à taciturna empregada.

- Alguém que não suporta mais o professor todas as noites nessa poltrona sufocando-a de suspiros e fumaça. Credo! Ele fuma demais! - Seu humor matinal surpreendia-me. Havia algo me atraindo naquele retrato, uma simpatia logo transmutada em mórbida curiosidade. Ao contrário da Gioconda de Leonardo ela sorria com os olhos e parecia expressar algo fatal e enigmático pêlos lábios aveludados. Sempre ao passar pelo salão corroía-me o desejo de saber o que estaria ela dizendo que os olhos não revelavam. Valadares, porém não me deixava livre. Nunca trabalhei tanto por tão mísero salário! Alguns dias depois, ao lhe apresentar uma série de cálculos integrais permitindo em tese sintetizar qualquer ruído registrado surpreendeu-me que ele não ficasse tão exultado.

- Estamos indo na direção errada! Temos que reconstituir épocas bem delimitadas. Não temos tecnologia para ouvir o murmúrio universal. - Sua voz retumbava pêlos corredores da casa.

Um cientista deve ter o espírito abnegado. Suas paixões não devem interferir nas pesquisas. O projeto estava bem encaminhado. Que gerações futuras pudessem gravar a sinfonia do mundo, a nós inacessível, não diminuiria a nossa glória. Percebi então que o professor possuía um objetivo pessoal e eu deveria ser-lhe sensível se quisesse continuar.

- Que época, por exemplo?

- Quinze de janeiro de mil novecentos e quarenta e quatro. - Disse-me incisivo sem fitar os meus olhos. Suspeitei que pelo espelho ele mirasse Rainer, a obsedante moça do quadro. - Quero gravar todos os sons dessa data se possível for.

Com isso o projeto complicou-se, pois, para identificar a origem provável de uma emissão, precisávamos tê-la individuada e a individuação era o ponto problemático. Contávamos somente com o acaso. Além do mais, a potência dos sensores não nos permitia aventurar em uma data tão remota. No futuro talvez ouviríamos o veneno gotejando na taça de Isolda, a maldição dos reis da Cornuálhia e o emocionante “terra à vista” de Pedro Álvares. No presente somente os sons com menos de quinze anos podiam ser registrados e, salvo os gemidos eróticos de um casal se amando, nada de audível conseguimos nos meses sucessivos. Meu professor parecia um demiurgo vencido pelas tonitruantes mãos do caos. Para garantir o meu salário tornei-me o seu secretário particular e um dia, indo pôr as suas cartas no correio, percebi várias delas endereçadas à Rainer Antonieta. Era o nome que Valadares suspirava e provavelmente a moça do retrato! Guardei na memória o endereço e o desejo de conhecê-la torturava-me sempre que eu sentava-se à mesa da sala fitando aquele semblante às vezes irônico, às vezes dramático de acordo com a janela por onde a luz do sol brilhava. Consegui no catálogo o número do telefone e usando dos mais insidiosos pretextos consegui ser convidado para almoçar em sua casa um domingo à tarde. Imediatamente o Professor entrou em uma fase extremamente criativa como se pressentisse os mínimos sinais da existência dela. Apresentou-me hipóteses geniais que acenderam esperanças de aprimorar as gravações. Importou uma série de equipamentos, fitando-me de um modo estranho e, paradoxalmente, habitual. Quem sabe ele não estava ouvindo meus telefonemas à Rainer, ele que poderia em tese ouvir todas as vozes planetárias? Às vezes, no longo silêncio após o jantar ele deixava escapar, como um cetáceo que sobe à superfície para respirar, um comentário dubitável:

- O rumor cresce! O rumor cresce! - Cesário acendia então a lareira. Era um criado perverso, mexia nos aparelhos procurando ouvir todos os gemidos eróticos possíveis. Meio-surdo, usava todo o volume transformando o silêncio da noite em um ruidoso cabaré. Ao perceber a minha incompreensão diante das palavras do professor, gesticulou para mim movendo os dedos próximos da boca querendo dizer “boatos, boatos”! Perguntei irritado qual a necessidade de se ter um criado surdo em tais circunstâncias e , calando-me com sagacidade, Valadares respondeu:

- É para sabermos por que coisas vale a pena gritar!

Rainer era de origem romena e apesar dos seus cinqüenta anos ainda era bela. Possuía a graça desses seres que vivem a favor do tempo recebendo dele um aprimoramento no lugar das previsíveis catástrofes. Seu corpo era bonito e coberto por elegantes indumentárias. Seu estilo, sua maneira de tratar qualquer trivialidade lembrava-nos esses frutos sumarentos que o tempo transmuta em saborosas passas. Havia chegado ao Brasil com dezessete anos fugindo da guerra na Europa e ainda expressava-se com um sotaque bem peculiar. Demonstrou-me um interesse sincero pelas pesquisas de Valadares, mas em momento nenhum insinuou a existência das cartas. Confessou-me que gostaria muito de ouvir alguns momentos da sua vida mais temia tais experiências fantasmagóricas. O esquecimento era-lhe uma grande virtude e senti que esquecer com facilidade era a causa da sua estólida juventude. Mostrou-me fotos antigas, ao lado do seu falecido marido chamado Nogueira e amigo de infância do professor Carlos Valadares.

- Fora o meu professor de português. - Dizia-me então sobre o seu marido. - Pensei estar apaixonada pela língua portuguesa e só depois descobri estar amando ele. Quando ele apresentou-me o seu belo amigo, Valadares era belíssimo, eu hesitei um pouco entre os dois, mas hoje penso ter feito a escolha certa!

Seus olhos se umedeceram e julguei conveniente mudar de assunto. Ë curioso como consigo lembrar-me de tão ínfimos detalhes. Talvez confundam a minha memória prodigiosa com um provável avanço nas pesquisas imaginando-me com sofisticados aparelhos ouvindo as bisbilhotices de outrora, o que seria um equívoco lamentável. Repito haver um bom motivo para tê-las abandonado. Alguém disse que a natureza é sábia nos seus limites e boa parte dos nossos males deriva da nossa curiosidade. Duas semanas depois, contudo, voltei ao assunto que me obcecava:

- Quinze de Janeiro de quarenta e quatro. Essa data lhe evoca alguma coisa? - Perguntei-lhe intimorato durante um café servido na varanda de sua casa. Ela franziu o rosto e ao folhear as páginas do tempo, desenhou para mim uma multifacetada personalidade como os variados papéis encenados que uma atriz folheia em seu álbum.

- Sim! Como poderia me esquecer? Fora a véspera do embarque. Muitos rapazes da nossa turma foram convocados para a guerra, o Valadares inclusive. Houve nesta noite um grande baile de despedida, lembro-me por ter sido também a véspera do meu noivado. Joguei as cartas antes da festa, um costume dos meus avôs ciganos, e já esperava ser pedida em casamento, você acredita?

Ela prosseguiu falando sobre a festa. Sua voz envolvente era capaz de evocar as mais inauditas imagens. Parecia-me estar ouvindo os metais da orquestra, o murmúrio dos casais entre as mesas e o tilintar dos cristais na bandeja dos garçons. Fechei os olhos e fui transportado como um barco bêbado aos dias de outrora.

- Você está parecido com o Valadares! - Rainer quase gritou. - Ele costumava fechar os olhos assim quando Nogueira lia em voz alta os seus poemas preferidos.

Lembrei-me do professor repousando na poltrona e ouvindo os morcegos amestrados circulando dentro da sala. Não gostei da semelhança.

- O Carlos também lhe pediu em casamento?

- Quase! Mas eu fugi. Tive medo. Havia algo de trágico pairando sobre ele. Além do mais ele estava partindo para a guerra...

- Você o amava?

- Vamos parar com este assunto? Ele pode estar nos ouvindo com as suas máquinas sofisticadas, - gracejou - fale-me sobre o seu trabalho.

Soava-me muito intempestivo falar de cálculos matemáticos a uma dama tão passional. Um bom disco seria mais agradável e ouvi em silêncio um pouco de Vivaldi antes de voltar para casa. Tornamos a nos encontrar em outros domingos mas para as lembranças distantes Rainer permanecia recalcitrante e fatigada.

Em um esforço sobre-humano que o manteve trancado vários dias em seu quarto, Valadares descobriu um caminho promissor no datamento e na identificação dos micro-sons. Os ruídos eram prolongados em canais gerando uma ressonância de fundo, um horizonte de eventos aonde eles iam naturalmente se diferenciando. Da minha parte não fiz por menos. Desenvolvi uma escala de freqüência identificando a duração de qualquer gama sonora. Quando ouvimos um som sabemos imediatamente qual a direção da fonte emissora graças ao labirinto do nosso ouvido que apreende a sensação em todas as direções possíveis com suas diferentes intensidades. Fora isso, acredito, o que levou meu professor a construir os radares em forma de gigantescas orelhas humanas espalhadas por toda a área do sítio e eu tinha a impressão, quando passeava pelo jardim, de estar dentro de uma tela surrealista. O nosso entusiasmo era transbordante, pois conseguíamos ouvir todos os sons emitidos no planeta nos últimos quinze anos. Éramos semideuses. Todas as preces e confissões, conspirações e segredinhos sujos estavam a nossa disposição. Sugeri que a nossa descoberta fosse comunicada à comunidade científica mas Valadares proibiu-me peremptoriamente. Queria ouvir a noite do baile a qualquer preço e esse motivo, muito mais do que a glória científica, respondia pelo brilho em seus olhos e pelo seu ânimo redivivo. Sua maior alegria era ouvir os raros poemas, os fragmentos de discursos amorosos que vibravam na alma do mundo e transcrevê-los em páginas que eu sabia ser Rainer a exclusiva destinatária.

- Li em um artigo de jornal que você lutou na segunda grande guerra, foi um herói condecorado. - Disse-lhe eu um dia enquanto testávamos alguns aparelhos.

- É verdade. Tenho o corpo cheio de cicatrizes, mas não fui herói de coisa nenhuma. Eu era nessa época um homem muito infeliz e queria morrer de qualquer maneira. Avançava gritando sobre os alemães entre chuva de balas e eles recuavam assustados. Eu tentava o suicídio e só conseguia medalhas. Encarava isso como uma grande ironia do destino, mas talvez houvesse aí o dedo da divina providência. Há mais coisas entre o céu e a terra, Horácio... - era um dos clichês shakespeareanos que ele usava quando queria um assunto encerrado. Rainer dissera-me que as cartas dele começaram quando ela ficou viúva logo após a guerra e pude fazer uma idéia do tipo de esperança que lhe espantou o fantasma da morte evitando contudo pensar isto em voz alta. Quando percebi a força daquele amor vencendo incólume o poderoso tempo fui tomado de uma grande simpatia pelo meu amigo. Sua paixão emulava-me tanto que quase me apaixonei pela moça do retrato. Dediquei então a minha vida ao programa “Suave É A Noite”, nome que déramos à gravação do antigo baile e o remorso parece não me abandonar mesmo após tanto tempo transcorrido. O meu amigo colhia todas as manhãs as flores que ornavam o vaso sob o quadro da sala e tecia mil considerações sobre o silêncio de Rainer às suas cartas não podendo aceitar o motivo aparente deste silêncio: Rainer jamais tivera qualquer afeto por ele. O mimo com o qual ela colecionava aquelas cartas e a sua recusa terminal em vê-lo ou falar-lhe confundia, contudo a minha psicologia rudimentar. Em nossos breves encontros nunca ouvi dos lábios dela um comentário espontâneo, um enunciado que me revelasse a sua alma - temo que esta palavra não lhe seja apropriada - tinha sempre maneiras ambíguas de falar, uma equivocidade e uma reflexão desmesurada na escolha de qualquer palavra. Talvez o professor conhecesse esse traço do seu caráter não se deixando vencer pelo silêncio secular supondo que ali um segredo luminoso habitasse.

Quando ele voltava do posto de correios cabisbaixo e resignado, eu lhe perguntava:

- Novidades? - E ouvia a sua resposta entre buzinas de automóveis, choro de crianças e miados de gatos vibrando nas caixas de som:

- Nada! Nada! O frio esplendor do nada! - E seus braços balançavam como um tímido protesto ao absurdo e à fatalidade. Era trágico ver o meu amigo ouvindo toda a música do planeta e convivendo ao mesmo tempo com o silêncio da sua amada. Finalmente ocorreu o previsível. Valadares iria mesmo ligar os sensores na potência máxima e gravar a noite que bailava a tantos anos em sua memória. Havia consultado um médico e talvez tivesse fortes motivos para não esperar mais uma década. Expliquei-lhe que não teríamos potência para prescutar todos os sons daquela noite; se soubéssemos precisamente o que deveríamos ouvir seria tudo mais fácil. Ele demorou uma eternidade para responder-me. Ponderou nesse momento todo o meu caráter e avaliou profundamente o grau da nossa amizade. Pela primeira vez, em um breve lampejo, vi o torturado rosto humano emergir na fria máscara de um cientista impávido. Rabiscou uma folha e entregou-me. Ela continha o seguinte diálogo:

“- NOGUEIRA NÃO FOI CONVOCADO, FICARÁ NO BRASIL...
- ISSO BEM! ESPERA LÍNGUAS MAIS APRENDER COM ELE.
- E QUANTO A NÓS, EU E VOCÊ, O QUE DEVO ESPERAR?
{segue-se um breve silêncio com fundo musical e o som de um beijo}
- AMO-TE, AMO, TE AMO...”

Esta última frase estava sublinhada. Todo o mistério estava revelado, ingenuamente acreditei. Não me era difícil supor que a primeira voz seria o professor emocionado sondando o indecifrável coração de Rainer e tentando iniciar um íntimo diálogo próximo de uma esfuziante orquestra tropical. A segunda voz seria a de Rainer em seu português mal articulado de imigrante recém-chegada. Ela dissera-me haver dado um longo beijo de despedida em Carlos Valadares, nada inconcebível em se tratando de uma alma tão passional. Por alguns segundos a imagem daquele baile assaltou minha imaginação. Um casal bailando, um diálogo sussurrado, ela beijando-lhe no final e logo fugindo dos seus braços. Depois o noivado com o outro, a notícia no dia seguinte e Valadares partindo dilacerado para a guerra como se todas as balas da batalha lhe fossem antecipadas. Ela o amava de fato? Logo eu saberia pela entonação da sua voz e mergulhei no trabalho. Assim que tudo ficou pronto corri à casa de Rainer. Queria que ela o fizesse desistir desta louca obsessão. Bastaria a ela fazer-lhe uma visita e conversar um pouco mas a minha amiga não moveu um passo sequer. Encontrei-a com o espírito sobressaltado e quando lhe contei o que estava se passando ela limitou-se a me atravessar os olhos dizendo para si mesma:

- As cartas não mentem jamais! - Teria ela enfim acreditado nas cartas apaixonadas do professor ou seriam às cartas do tarô, hábito não abandonado, que ela se referia? Eu não tinha tempo para análises psicológicas e usei o meu último argumento:
- Venha comigo, Rainer, ouvir a sua voz emergir do fundo do passado. É algo mágico, é fantástico! - Surpreendeu-me a sua reação. Escondeu o rosto entre as mãos e soluçava gritando:
- Oh! Pare com isso! Pare com esse pesadelo! Não mexam com o passado. Deixem que os mortos enterrem os seus mortos. - Foram estas as últimas e dramáticas palavras que ouvi “ao vivo” em seus cândidos lábios. Desculpei-me e retornei ao sítio em Teresópolis. Naquele momento Valadares já fazia os sensores funcionarem sem esperar por mim. Era um homem tímido e não queria ninguém bisbilhotando o seu passado. Eu temia pelos aparelhos delicados e ultrapassei imprudente muitos automóveis no manto de névoa sobre a estrada. Uma opressão no peito antecipava-me a catástrofe que logo iria presenciar. Encontrei Matilde agitando um lenço na porta do sítio e pedindo socorro aos motoristas que passavam. Pela torre no telhado vi subindo uma agourenta nuvem de negra fumaça. Corri gritando por Carlos e as grandes antenas em forma de orelhas devolviam meus gritos em ecos macabros. Encontrei-o caído próximo à mesa de som. Havia batido com a cabeça no piso e o pequeno aparelho contra surdez que usava rompera-lhe algum vaso que ainda sangrava. Não querendo acreditar, pensei ser a sirene da ambulância mais um som do passado na ilha de som. Os médicos diagnosticaram um infarto fulminante e levaram o corpo para a sala. O laboratório estava todo quebrado como se alguém houvesse lançado-lhe um furioso ataque. Fiquei sentado ali por quase meia hora completamente atordoado. A estupidez da morte envolvia-me como um sedante abraço e pelas chamas que crepitavam na lareira vi entre outras coisas as páginas da minha laboriosa pesquisa a queimar, mas não movi uma página; apenas sussurrava: “a parte do fogo, a parte do fogo”, como dizia o tenebroso Heráclito. Apanhei instintivamente a fita que Valadares estava gravando antes de morrer e guardei-a no bolso do meu casaco. Passei no meu quarto e fiz as malas. Quando desci ao salão a casa já estava cheia de parentes com indiscretos olhares avaliando os móveis no inventário. Carlos estava estendido sobre o sofá e parecia dormir tão leve que era a sua alma. Pela janela os últimos raios de sol brilhavam sobre o quadro na parede. O crepúsculo investia aqueles lábios sibilinos de uma mórbida aura e por toda a sala a imagem de Rainer parecia dizer algo que era o próprio e pesado silêncio pairando sobre nós. Despedi-me do meu amigo com um beijo na face e saí imperceptível como a pequena lágrima que rolava em meu rosto fatigado. Algo mais me pesava nos ombros além das duas malas. “É só um pouco de passado, meu caro”, dizia-me no ouvido uma voz etérea e seráfica que julguei ser algum aparelho não desligado. Matilde veio correndo até o carro com um grande objeto nas mãos envolto por um lençol.

- Leve o quadro, Cassiano, o professor pediu para lhe entregá-lo caso algo acontecesse com ele. - Ela soluçava. Eu tinha pressa em ir embora. Sentia-me como ainda hoje um pouco culpado. Quilômetros depois, coloquei a fita no carro e ouvi a gravação desde o início. Havia nela uma série de vozes superpostas e logo, destacando-se de um fundo musical, ouvia-se um cristalino diálogo:
- NOGUEIRA NÃO FOI CONVOCADO, FICARÁ NO BRASIL...
- ISSO BEM! ESPERA LÍNGUAS MAIS APRENDER COM ELE.
- E QUANTO A NÓS, EU E VOCÊ, O QUE DEVO ESPERAR?

A resposta que seguiu esta pergunta congelou-me o coração. Freei o automóvel saindo da estrada e quase fui esmagado por um caminhão. Voltei a fita incrédulo e ouvi tudo de novo. Rainer em seu sotaque europeu não lhe dissera “amo-te, amo-te” ou coisa do mesmo sentido. Sua voz rouca e depurada pelos filtros acústicos murmurava:

- A MORTE! A MORTE!

Saí do transe com o motorista do caminhão batendo no vidro e perguntando se estava tudo bem comigo. Disse-lhe que sim e continuei ali pensando. Ela o amava e teria ele gravado mal negligenciando meus cálculos? Tudo não passaria de alucinações de dois loucos sonoplastas? Teria Rainer previsto um acontecimento inevitável com aquele beijo de piedade e ele sucumbindo ao procurar e encontrar a potência da verdade revelada? Os aparelhos explodindo pela demanda excessiva seria a causa do enfarto? Definitivamente não tenho uma resposta acurada. No banco de trás do meu carro o quadro estava caído. Pensei em descobri-lo e olhar aqueles lábios proferindo as palavras mortais e reveladas feito uma sereia nas malhas do destino fisgada. Não tive coragem. Ainda hoje, vinte anos transcorridos, o quadro continua coberto no sótão da minha casa. As flores que o ornavam em um vaso, o jacinto e o mimulus, ainda compro todos os anos enviando-as, porém, ao túmulo do saudoso Carlos Valadares.
FIM


PÓS-ESCRITO ÀS “POTÊNCIAS DO FALSO”

Os poetas não têm pudor em relação às próprias experiências: Eles as exploram.
FRIEDRICH NIETZSCHE

“Avaliando a extensão de uma narrativa pelo tempo necessário em compreendê-la e não pelo número de páginas veríamos que muitas novelas seriam bastante mais curtas se não fossem mesmo tão curtas, porém a compreensão não é supostamente uma questão de clareza. Muitas novelas poderiam ser bem mais claras se não tivessem desejado ser tão claras. A clareza nas partes é freqüentemente nociva no conjunto recobrindo de cores brilhantes as articulações e a estrutura do sistema, o qual nos permite, mais que todo o resto, nos pronunciar sobre sua unidade e pertinência.”

Ao perceber que esta narrativa não correspondeu à vivacidade e ao teor dramático que experimentei na sua inspiração, responsabilizei imediatamente a extensão de suas páginas. Mais tarde percebi que esta desproporção possuía outras causas extrínsecas à gênese literária. A idéia era magnífica: um homem diante da possibilidade científica de ouvir todos os sons da história universal. Que teatro! Que sinfonia! Que paranóia! Um amor perdido no passado arrematando com primor os laços de Eros com Mnemósine; um mal entendido complicando toda uma vida e, principalmente, no estilo dos velhos dramaturgos gregos, um acontecimento expresso em uma fatídica proposição. Nas tragédias gregas o herói ouvia com clareza o seu destino revelado por um oráculo, fugia e tudo que conseguia era antecipar a fatalidade anunciada no ambíguo sentido da palavra mágica. Em nossa estória a personagem não apreende o sentido único e mau articulado de um enunciado. O acontecimento é protelado e fica vibrando nos ares por muitos anos numa espécie de suspense berkeleyano. Ela, a personagem, persegue o oráculo e ao compreender finalmente o sentido da proposição encarna o acontecimento que lhe estava destinado. Fiz o narrador passar perto da morte ao ouvir a profecia gravada para realçar a presença do acontecimento no bojo daquelas palavras independente do estado de corpo configurado na extensão {a causalidade ideal era a minha inclinação}. Considerando que na origem tudo é pequeno e insignificante penso que quase criei um novo gênero literário: a tragédia instantânea onde enunciado = transformação incorporal. Tudo isso se articulava nas partes ideais. Passo agora ao motivo que frustrou o efeito esperado. Amei com excessiva intensidade u’a mulher que ainda hoje rouba-me as palavras tamanha que era a singularidade do seu espírito e o encanto do seu talhe. Sua voz subia do grave à oitava e descia da oitava à voz grave passando adequadamente pelas terças, quartas, quintas e sextas vozes, tons e semitons - a mais justa definição de uma voz clara. Quando cantava era capaz de abraçar três oitavas estendendo do ré de contralto ao ré de soprano. Com esta voz capaz de enlouquecer tronos e arcanjos ela passava noites inteiras comigo beijando-me e dizendo-me ao ouvido: te amo, te amo..., mas, como dizia o “Cisne De Avon”, o curso do verdadeiro amor não corre sem obstáculos. Constrangida pela filha, pelo marido e pelo cansaço de mim, fui por ela abandonado. Passei noites inteiras deitado e alucinando suas palavras sem ânimo sequer para respirar. Definhei vertiginosamente e temi por minha vida. O temor talvez me tenha feito associar a morte com aquelas palavras de amor. Porfírio, um filósofo grego, pensando em se matar, ouviu do seu mestre Plotino a idéia de fazer uma viagem pelo mundo em despedida. Na viagem conseguiu ele expelir os maus humores que o atormentavam livrando-se do funesto projeto. Como ele, fui salvo por uma idéia. Iria eu fazer uma viagem literária por todos os diagramas da história. Não teria imagens como não as teve Homero, Milton, Borges e muito menos o gênio que nesses autores aflora, mas possuía, contudo, a musa, o daimon, a voz inspiratória. Em um pequeno ensaio intitulado “Notas Do Eterno Retorno” esboçamos toscamente a possibilidade de se ouvir, nas ressonâncias de um canto cristalino, todo o murmúrio do passado como Ulisses ouvindo no canto das sereias suas façanhas na guerra de Tróia. Não se trata de metáforas quando um amante de música nos fala de arrebatamentos e transportes. Nossa alma literalmente viaja na possessão de certas músicas. Elas nos permitem perceber simultaneamente o presente que foge e o passado que dura nas ressonâncias de uma nota. Quantas imagens e sentimentos esquecidos! Quantas reminiscências profundas invadem a nossa consciência ao ouvirmos u’a música antiga. Um empirista poderia explicar estas reminiscências como meras associações do espírito, contudo a recíproca não é verdadeira. Nunca a visão de uma rua, de um rosto esquecido ou velhas fotos fez-me lembrar uma canção de outrora. Há em nossa memória uma eminência musical embalando o sono dogmático de Mnemósine. Fora na reminiscência da voz feminina dizendo-me “amo-te, amo-te”, nas músicas que embalavam nosso breve e ardente amor que busquei a inspiração desta novela mas o cavalo negro da minha alma só pensava nos corpos, precisamente no corpo de onde emanava aquela voz e não pude assim experenciar articuladamente as sensações metafísicas que dariam vivacidade à minha narrativa. Quando disse a ela, meses depois, ter quase morrido ao recordar suas palavras ela sorriu, brilhou novamente o amor em seus olhos e descobri que por mais que u’a mulher ame um homem ela o amará mais ainda se ele vier a morrer por sua causa mas ainda não chegou a minha hora.

Cassiano Ribeiro Santos ( Rio de Janeiro - Salvador - Vitória da Conquista)







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