Paulo
Puqueiro era um rude bugre das encostas abruptas da Serra do Marçal,
sudoeste da Bahia.
Todos os dias, antes de sair para o trabalho, dava uns tabefes na mulher que com ele se amasiara sem que houvesse nenhum motivo para tal.
Dizia que, em caso dela fazer qualquer safadeza, já estaria castigada. E assim passava o dia na lavoura, só voltando com o sol enterrado. Uma dia, essa mulher, de nome Anália, encontrou um jeito de se vingar. Dois ginetes apressados apearam na porta da sua casa e pediram água para os cavalos. Estavam vindo de Itambé e pretendiam chegar ainda durante o dia em Vitória da Conquista. A filha do prefeito Zinho Santos estava morrendo em cima da cama e o patrão jurou que os mataria se eles não trouxessem um médico a tempo, pois as rezadeiras não davam mais conta. A moça agonizava. Contaram o causo sem sequer desmontarem e foi quando a mulher surrada teve uma ideia. Disse para eles que o marido dela era um grande médico, mas que, depois que a mãe morrera nos braços dele, ele jurou nunca mais exercer a profissão e virou bicho do mato, nunca mais vestindo seu branco avental. Os homens se entreolharam crédulos e perguntou onde estava esse médico renunciado. Ela apontou o local da lavoura e acrescentou:
_ Não adianta insistir que ele vai negar tudo! É promessa brava! Só quebra a jura no dia que apanhar! Só confessa na porrada!
_Não seja por isso! – Resmungaram os jagunços e partiram para o local indicado. Assim que viram Paulo Puqeiro batendo enxada ao sol inclemente, foram logo cumprimentando!
_ Ajuda nóis, Doutorzin! Ajuda que o caso é grave! A filha do prefeito tá morrendo!
_ Oxente, cumpadre! Que tal de doutor é esse que vocês tão procurando? Sou Paulo Puqueiro, filho de Otelino, seu criado! – E baixou a cabeça quase que envergonhado!
Os ginetes se entreolharam. A pressa era imensa e o desespero atiçava feito vento na fogueira!
– Bem que a mulher dele falou! Vai morrer teimando na promessa! Vamos ter que agir rápido!
Dizendo assim, um deles puxou do cinto, o outro desembainhou o facão. Partiram pra cima do pobre Paulo e começaram a sentar o reio no espinhaço.
_ Vumbora, desgraçado! Largue de teimosia senão morre Sinhazinha, morre eu e meu cumpadi nas mãos do Prefeito mas antes você vai nos anunciar lá nos quinto dos infa!
_ Larga sua jura, doutor! Que isso de nada lhe serve na hora da morte!
_ Confessa, sujeito, que você é doutor de anel e diploma e o escambau!
Falavam sem arrefecer o couro. Quase desmaiando de dor, e achando que estava sendo atacado por dois doidos varridos, Paulo Puquiero teve o bom senso de concordar para parar a corça e pensar em outra alternativa!
_ Sou mesmo! Sou médico, peste! Curo tudo que é maleita e ziquizira! Pare de me bater!
_ Tô dizendo! Cabra queixo duro! Trate de subir nessa montaria que vamos agora mesmo pra fazenda de Seu Zinho!
Montaram. Paulo puqueiro na garupa do jagunço Rudrigo e o outro atrás, vigiando o doutorzinho. Paulo Puqueiro ainda tentou ensaiar uma defesa, mas sempre que se exaltava o jagunço enfiava a mão no facão e o pobre ainda tinha as costas ardidas pela lâmina fria que se abateu sobre sua espinhela como um trovoada nos lajedos. Decidiu que era melhor seguir em silêncio até a casa do Prefeito e uma vez lá desfazer aquele pesadelo!
Chegaram ao meio dia. Zinho Santos assomou suas gordas carnes na varanda e sorriu esperançoso. O Jagunço Rudrigo deixou o outro segurando o “médico” e subiu as escadas. Cochichou longamente no ouvido do Prefeito, provavelmente contando as circunstâncias esquisitas do achado precioso. Um médico naquela região era mais raro que carne em pastel de rodoviária! Zinho Santos acenou para o médico se aproximar. Paulo Puqueiro, tão logo se viu livre, disparou escadacima e se jogou aos pés do Prefeito de Itambé:
_ Piedade, doutor! Pelo amor de Deus! Tá havendo um engano muito grande! Eu sou um pobre de um anarfabeto!
O gentil prefeito piscou o olho para Rudrigo que logo entendeu a ordem e sentou a bainha do facão com a lâmina dentro no lombo do pobre Paulinho que uma vaca no curral chegou a mugir pensando ser o golpe um estalo de cancela! Paulinho deitou e pediu a morte!
_ Levanta, peste! Largue de capricho e vá curar agora mesmo a minha sinhazinha! Se ela morrer você morre! Se ela escapar, caso ela contigo e lhe dou metade de minhas terras! – E o empurrou para o quarto escuro onde a pobre e amada filha única do prefeito padecia semi desmaiada sobre sedas alvíssaras da morte . Sinhazinha Sônia girava os olhos pelo quarto e muito se assustou quando viu aquele estrupício ser atirado dentro do seu quarto. Ela podia ouvir e ver tudo ao redor, apenas não conseguia falar nada nem se mexer. O sangue havia desaparecido do seu rosto e ela parecia uma alma penada. Paulo Puqueiro, com o corpo lacerado, caiu de joelhos ao pé da cama, as mãos amassando seu velho chapéu de palha e começou a chorar, contando, entre lágrimas, o que estava acontecendo, relatando sem poupar gemidos o pesadelo do qual não conseguia acordar. Os tabefes que lhe desconjuntara os ossos, as ameaças, a fome e a sede pois não pusera nada na boca desde manhã cedo! Sinhazinha Sônia ouvia tudo atordoada, chegou a pensar que era um palhaço do circo que havia chegado na cidade e que seu pai pudesse tê-lo contratado para lhe divertir e aliviar o sofrimento, mas as feridas no lombo do coitado eram muito visíveis.
Foi olhando para a pobre doente que, talvez, uma luz se acendeu no cérebro rude do lavrador. Ele se lembrou da sua mulher Anália e desconfiou que tudo aquilo fora arte dela. No desespero de encontrar um sentido para aquela loucura, acabou acertando em cheio, pois não era mesmo, conforme disse eu logo no início, que, para esse sujeito ignorante, tudo era sempre culpa da mulher? Sempre lhe surrando antecipadamente por coisas sequer acontecidas?! Pensava nessa hipótese em voz alta, no chão ao lado da cama de Sinhazinha Sônia, e logo o seu pânico e sua gemedeira foram se convertendo em ódio e juras de maldição!
_ Há! Disgraçada! Foi tu que armou isso, infiliz dos infa! Chegando em casa vou descontar tudo no seu lombo, sua jararaca traiçoeira! – E mordia o chapéu, e soltava faísca dos olhos, e espumava de fúria feito um cão hidrófobo!
Sinhazinha Sônia, quando viu esse desfecho, essa transformação súbita de um miserável e impotente analfabeto forçado a ser médico em um marido furioso e ameaçando destruir o mundo como se tivesse levado um corno, o sangue dos sopapos misturado com a baba da raiva sem fim, Sinhazinha não se conteve e começou a rir! Riu e riu! Riu tanto que acabou por cuspir uma espinha imensa de traíra engasgada na sua delicada garganta e que era a causa do seu mal profundo. Gritou:
_Ai, meu Deus! Tô curada minha mãe! Esse bendito homem me curou!
Foi a senha para a família inteira do prefeito invadir o quarto correndo, a tempo de ver a pobre enferma, rindo, chorando, amparando pelos braços o pobre lavrador e pedir que cuidassem dele com todo o respeito possível. Chegou até a lhe chamar de “Meu doutor”! No que fora imitada por todos da grande casa!
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * *
Todos os dias, antes de sair para o trabalho, dava uns tabefes na mulher que com ele se amasiara sem que houvesse nenhum motivo para tal.
Dizia que, em caso dela fazer qualquer safadeza, já estaria castigada. E assim passava o dia na lavoura, só voltando com o sol enterrado. Uma dia, essa mulher, de nome Anália, encontrou um jeito de se vingar. Dois ginetes apressados apearam na porta da sua casa e pediram água para os cavalos. Estavam vindo de Itambé e pretendiam chegar ainda durante o dia em Vitória da Conquista. A filha do prefeito Zinho Santos estava morrendo em cima da cama e o patrão jurou que os mataria se eles não trouxessem um médico a tempo, pois as rezadeiras não davam mais conta. A moça agonizava. Contaram o causo sem sequer desmontarem e foi quando a mulher surrada teve uma ideia. Disse para eles que o marido dela era um grande médico, mas que, depois que a mãe morrera nos braços dele, ele jurou nunca mais exercer a profissão e virou bicho do mato, nunca mais vestindo seu branco avental. Os homens se entreolharam crédulos e perguntou onde estava esse médico renunciado. Ela apontou o local da lavoura e acrescentou:
_ Não adianta insistir que ele vai negar tudo! É promessa brava! Só quebra a jura no dia que apanhar! Só confessa na porrada!
_Não seja por isso! – Resmungaram os jagunços e partiram para o local indicado. Assim que viram Paulo Puqeiro batendo enxada ao sol inclemente, foram logo cumprimentando!
_ Ajuda nóis, Doutorzin! Ajuda que o caso é grave! A filha do prefeito tá morrendo!
_ Oxente, cumpadre! Que tal de doutor é esse que vocês tão procurando? Sou Paulo Puqueiro, filho de Otelino, seu criado! – E baixou a cabeça quase que envergonhado!
Os ginetes se entreolharam. A pressa era imensa e o desespero atiçava feito vento na fogueira!
– Bem que a mulher dele falou! Vai morrer teimando na promessa! Vamos ter que agir rápido!
Dizendo assim, um deles puxou do cinto, o outro desembainhou o facão. Partiram pra cima do pobre Paulo e começaram a sentar o reio no espinhaço.
_ Vumbora, desgraçado! Largue de teimosia senão morre Sinhazinha, morre eu e meu cumpadi nas mãos do Prefeito mas antes você vai nos anunciar lá nos quinto dos infa!
_ Larga sua jura, doutor! Que isso de nada lhe serve na hora da morte!
_ Confessa, sujeito, que você é doutor de anel e diploma e o escambau!
Falavam sem arrefecer o couro. Quase desmaiando de dor, e achando que estava sendo atacado por dois doidos varridos, Paulo Puquiero teve o bom senso de concordar para parar a corça e pensar em outra alternativa!
_ Sou mesmo! Sou médico, peste! Curo tudo que é maleita e ziquizira! Pare de me bater!
_ Tô dizendo! Cabra queixo duro! Trate de subir nessa montaria que vamos agora mesmo pra fazenda de Seu Zinho!
Montaram. Paulo puqueiro na garupa do jagunço Rudrigo e o outro atrás, vigiando o doutorzinho. Paulo Puqueiro ainda tentou ensaiar uma defesa, mas sempre que se exaltava o jagunço enfiava a mão no facão e o pobre ainda tinha as costas ardidas pela lâmina fria que se abateu sobre sua espinhela como um trovoada nos lajedos. Decidiu que era melhor seguir em silêncio até a casa do Prefeito e uma vez lá desfazer aquele pesadelo!
Chegaram ao meio dia. Zinho Santos assomou suas gordas carnes na varanda e sorriu esperançoso. O Jagunço Rudrigo deixou o outro segurando o “médico” e subiu as escadas. Cochichou longamente no ouvido do Prefeito, provavelmente contando as circunstâncias esquisitas do achado precioso. Um médico naquela região era mais raro que carne em pastel de rodoviária! Zinho Santos acenou para o médico se aproximar. Paulo Puqueiro, tão logo se viu livre, disparou escadacima e se jogou aos pés do Prefeito de Itambé:
_ Piedade, doutor! Pelo amor de Deus! Tá havendo um engano muito grande! Eu sou um pobre de um anarfabeto!
O gentil prefeito piscou o olho para Rudrigo que logo entendeu a ordem e sentou a bainha do facão com a lâmina dentro no lombo do pobre Paulinho que uma vaca no curral chegou a mugir pensando ser o golpe um estalo de cancela! Paulinho deitou e pediu a morte!
_ Levanta, peste! Largue de capricho e vá curar agora mesmo a minha sinhazinha! Se ela morrer você morre! Se ela escapar, caso ela contigo e lhe dou metade de minhas terras! – E o empurrou para o quarto escuro onde a pobre e amada filha única do prefeito padecia semi desmaiada sobre sedas alvíssaras da morte . Sinhazinha Sônia girava os olhos pelo quarto e muito se assustou quando viu aquele estrupício ser atirado dentro do seu quarto. Ela podia ouvir e ver tudo ao redor, apenas não conseguia falar nada nem se mexer. O sangue havia desaparecido do seu rosto e ela parecia uma alma penada. Paulo Puqueiro, com o corpo lacerado, caiu de joelhos ao pé da cama, as mãos amassando seu velho chapéu de palha e começou a chorar, contando, entre lágrimas, o que estava acontecendo, relatando sem poupar gemidos o pesadelo do qual não conseguia acordar. Os tabefes que lhe desconjuntara os ossos, as ameaças, a fome e a sede pois não pusera nada na boca desde manhã cedo! Sinhazinha Sônia ouvia tudo atordoada, chegou a pensar que era um palhaço do circo que havia chegado na cidade e que seu pai pudesse tê-lo contratado para lhe divertir e aliviar o sofrimento, mas as feridas no lombo do coitado eram muito visíveis.
Foi olhando para a pobre doente que, talvez, uma luz se acendeu no cérebro rude do lavrador. Ele se lembrou da sua mulher Anália e desconfiou que tudo aquilo fora arte dela. No desespero de encontrar um sentido para aquela loucura, acabou acertando em cheio, pois não era mesmo, conforme disse eu logo no início, que, para esse sujeito ignorante, tudo era sempre culpa da mulher? Sempre lhe surrando antecipadamente por coisas sequer acontecidas?! Pensava nessa hipótese em voz alta, no chão ao lado da cama de Sinhazinha Sônia, e logo o seu pânico e sua gemedeira foram se convertendo em ódio e juras de maldição!
_ Há! Disgraçada! Foi tu que armou isso, infiliz dos infa! Chegando em casa vou descontar tudo no seu lombo, sua jararaca traiçoeira! – E mordia o chapéu, e soltava faísca dos olhos, e espumava de fúria feito um cão hidrófobo!
Sinhazinha Sônia, quando viu esse desfecho, essa transformação súbita de um miserável e impotente analfabeto forçado a ser médico em um marido furioso e ameaçando destruir o mundo como se tivesse levado um corno, o sangue dos sopapos misturado com a baba da raiva sem fim, Sinhazinha não se conteve e começou a rir! Riu e riu! Riu tanto que acabou por cuspir uma espinha imensa de traíra engasgada na sua delicada garganta e que era a causa do seu mal profundo. Gritou:
_Ai, meu Deus! Tô curada minha mãe! Esse bendito homem me curou!
Foi a senha para a família inteira do prefeito invadir o quarto correndo, a tempo de ver a pobre enferma, rindo, chorando, amparando pelos braços o pobre lavrador e pedir que cuidassem dele com todo o respeito possível. Chegou até a lhe chamar de “Meu doutor”! No que fora imitada por todos da grande casa!
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * *
Um milagre espalha suas ondas salvíticas por todo o ambiente. Toda a
casa do Prefeito Zinho Santos se transformou em um palácio encantado
após Dr Paulo Puqueiro curar sua filha única da morte escabrosa.
Deram-lhe um banho, barbearam o rude lavrador, brilhantina Glostora,
camisa Volta-ao-mundo, colônia Acqua-Velva... Até um velho Eternamatic
suiço foi pendurado em seu braço. Serviram o almoço com toda a família
impressionada com a panca do sujeito, relevando seus maus modos ao
trinchar um frango e esquecendo do estrupício que ele era ao chegar. O
Pai da moça era só sorrisos e bajulação. Zinho Santos era um homem de
palavra e, se prometeu mesmo casar a filha com o homem que a salvou da
morte, era só chamar o vigário. Sinhazinha viu que o homem era taludo,
viril e pouco se importava se ele era médico, verdureiro ou um ladino
mandrião... Era mesmo tempo de casar! Diante de tanta afeição, Paulo
Puqueiro esqueceu tudo o que sofreu, se esqueceu de Anália, a sua amásia
jararaca, esqueceu até que não era médico, nem enfermeiro, nem raizeiro
sequer. Agora ele era o Drº Sucupira (embora esse nome só lhe fosse
atribuído mais tarde, anos depois, depois da sua fama se espalhar por
Itambé). Durante o almoço, o café na varanda e a pestana na rede, falou
aos cotovelos da árdua vida de médico que levara antes da sua santa
mãezinha falecer em seus impotentes braços (Sinhazinha lhe pôs a par de
toda a conversa e era agora a sua cúmplice mais fanática).
_ Minha mãezinha não tinha mesmo cura! Quando fizemos uma autópsia, verificamos que os pulmões, os rins, o fígado, o estômago... O INTESTINO todo de um modo geral estava completamente tomado pela doença! – Falava assim passando a mão por todo o tórax, o “intestino” todo! As criadas na janela se emocionavam. Uma chegou até a assoar o nariz como um fole de esquentar ferro de passar roupa! Hospedaram o noivo no quarto de hóspedes e o resto da tarde ele passou visitando as terras do sogro ao lado dele e da sua futura esposa. Parecia flutuar, viver dentro de um sonho. No outro dia, durante o café da manhã, anunciou que iria em casa apanhar alguns documentos, acertar o pagamento da sua empregada (Anália foi sumariamente rebaixada) e voltaria na mesma semana! Mas teve uma ingrata surpresa. A notícia de sua milagrosa intervenção havia se espalhado por toda a cidade e o pátio da casa do Prefeito estava apinhada de gente a ilustrar todo o vade-mecum da enfermidade humana! Todo mundo queria ser examinado, diagnosticado e era tudo eleitores do Prefeito Zinho Santos! Até o local das consultas já fora providenciado, um galpão nos fundos da casa usado como silagem e casa de ferragens. Paulo Puqueiro quase desmaiou, perdeu a voz como se fosse ele desta vez a engolir uma espinha de traíra. Pensou em negar tudo, confessar sua fraqueza e mentira deslavada, mas quando viu os dois jagunços na porta, Rudrigo e seu ajudante, suas pernas tremeram mais ainda! Sorte dele que Sinhazinha percebeu tudo e resolveu ajudá-lo nesse cômico imbróglio que ele se metera por causa dela! Chamou-o a um quarto, sussurrou algo em seu ouvido, saiu, voltou, foi ao galpão, sussurrou de novo...
Dr Sucupira tomou alento, bebeu o último gole de café com um ar que diríamos trágico se não fosse o arroto tenebroso que deixou escapar, e rumou para o galpão a preparar sua encenação trambiqueira!
Sinhazinha parecia encantada com seu papel de assistente e diretora de teatro. Acenderam o fogo de um fogão a lenha no fundo do galpão e sobre ele colocaram um tacho de água a ferver. Lá fora, ela organizou uma fila quilométrica por ordem de gemidos mais altos. Ali se gemia de lumbago, caroço, vista-curta, espinhela-caída, zumbido, catarro, reumatismo, hérnia, repuxo, íngua, furúnculo, erisipela, febre, caganeira e tosse seca... À caixa de Pandora inteira o passeio de Zinho Santos era serventia! Sinhazinha cumprimentava o doente e o levava pela mão até o fundo do galpão, onde, sentado em frente a uma grande mesa de mogno, improvisada de consultório, Dr Sucupira ouvia o doente relatar seus queixumes. Assim que o coitado expunha o relato de suas dores, o vigarista lhe dizia, ameaçador e sorumbático:
_ Escute bem, Dona Pombinha! Eu me encontro desprevenido. Sem aparelhos, instrumentos, nem sequer remédios! Mas temos uma solução maravilhosa que é coisa secreta da nossa profissão. A Senhora está vendo aquele caldeirão de água fervendo ali no fundo? Muito bem! Todos os pacientes irão sair por essa porta aqui na lateral e irão dar a volta até chegar na varanda onde meu sogro está sentado. Chegando lá a senhora vai lhe dizer tudo o que me disse aqui, qual o seu mal, do que a senhora está sofrendo! O nosso amado prefeito vai decidir qual de vocês está em pior estado, qual está na boca da morte sem remédio ou salvação! Essa pessoa então, como prova de amor aos seus conterrâneos, vai doar o seu corpo para a ciência, nós iremos então despejar o sangue dela, as tripas e o miolo dentro desse caldeirão, e com estes ingredientes iremos fazer um remédio milagroso que vai curar todo o resto do povo. A pessoa vai morrer um pouco mais cedo mais vai virar um herói do povo de Itambé. Vai virar estátua! Quem sabe não vira até beato e padroeiro? Já imaginou? – E, diante da paciente esbaforida e trêmula de medo ao ver o caldeirão fumegante e as lâminas penduradas, Dr Sucupira mostrava o lugar na mesa onde o voluntário seria estripado em nome do amor!
_ Muito bem! Vá agora e diga ao coronel como vocês está se sentindo! Que entre o próximo! – Gritava para sua atendente enquanto conduzia a paciente até a porta lateral do galpão.
Tão logo se via fora do ambiente macabro, o paciente – e isso para todos, sem tirar nem por, fosse Tião, Dovadir, Eleutério, Dona Celuta, Mauro encanador, Sula, Pé de gás, Joaquim Vermelho, João Barroca, Mariquinha, Zé Cabrito, Rosalvão... – Todos que passaram pela consulta com o charlatão do Marçal, todos se aproximavam do Prefeito na varanda exibindo a mais robusta e esplêndida saúde física e mental:
_ Seu Zinho! Eu rejuvenesci vinte anos! Que espetáculo esse doutorzinho! Que Deus abençoe seu genro! – Dizia um.
_ Seu prefeito! Me empreste aí uma enxada que eu vou capinar esse seu quintal inteiro! Tô me sentindo um leão! – Dizia outro.
- O senhor me faça a gentileza de doar a um necessitado esse cajado. Não preciso mais disso! Estou no azeite! – e dizendo isso, fazia flexões na frente do Prefeito pra mostrar sua vitalidade milagrosamente adquirida!
As onze horas no jardim nem se abriram ainda e as consultas estavam encerradas. O povo de Itambé nesse dia milagroso poderia entrar para o Guinness como o povo mais saudável do planeta! Parecia uma cidade sede de olimpíada. A fama de doutor Sucupira se espalhou. Quem espiasse os dois no galpão, Paulo Puqueiro e Sinhazinha dobrando de risos e alegria, poderia ainda ouvir um último e zombeteiro diálogo entre os dois:
_ Teve um, coitado, que chegou a me dizer que estava sentindo uma dor imensa nos quartos que subia e respondia atrás da orelha!
_ E você, o que disse pra ele?
_ Eu disse: ATENDE QUE PODE SER INTERURBANO!
E assim, dobrados de riso, os dois noivos subiram para o casarão a receber as honras e preparar o casório!
_ Minha mãezinha não tinha mesmo cura! Quando fizemos uma autópsia, verificamos que os pulmões, os rins, o fígado, o estômago... O INTESTINO todo de um modo geral estava completamente tomado pela doença! – Falava assim passando a mão por todo o tórax, o “intestino” todo! As criadas na janela se emocionavam. Uma chegou até a assoar o nariz como um fole de esquentar ferro de passar roupa! Hospedaram o noivo no quarto de hóspedes e o resto da tarde ele passou visitando as terras do sogro ao lado dele e da sua futura esposa. Parecia flutuar, viver dentro de um sonho. No outro dia, durante o café da manhã, anunciou que iria em casa apanhar alguns documentos, acertar o pagamento da sua empregada (Anália foi sumariamente rebaixada) e voltaria na mesma semana! Mas teve uma ingrata surpresa. A notícia de sua milagrosa intervenção havia se espalhado por toda a cidade e o pátio da casa do Prefeito estava apinhada de gente a ilustrar todo o vade-mecum da enfermidade humana! Todo mundo queria ser examinado, diagnosticado e era tudo eleitores do Prefeito Zinho Santos! Até o local das consultas já fora providenciado, um galpão nos fundos da casa usado como silagem e casa de ferragens. Paulo Puqueiro quase desmaiou, perdeu a voz como se fosse ele desta vez a engolir uma espinha de traíra. Pensou em negar tudo, confessar sua fraqueza e mentira deslavada, mas quando viu os dois jagunços na porta, Rudrigo e seu ajudante, suas pernas tremeram mais ainda! Sorte dele que Sinhazinha percebeu tudo e resolveu ajudá-lo nesse cômico imbróglio que ele se metera por causa dela! Chamou-o a um quarto, sussurrou algo em seu ouvido, saiu, voltou, foi ao galpão, sussurrou de novo...
Dr Sucupira tomou alento, bebeu o último gole de café com um ar que diríamos trágico se não fosse o arroto tenebroso que deixou escapar, e rumou para o galpão a preparar sua encenação trambiqueira!
Sinhazinha parecia encantada com seu papel de assistente e diretora de teatro. Acenderam o fogo de um fogão a lenha no fundo do galpão e sobre ele colocaram um tacho de água a ferver. Lá fora, ela organizou uma fila quilométrica por ordem de gemidos mais altos. Ali se gemia de lumbago, caroço, vista-curta, espinhela-caída, zumbido, catarro, reumatismo, hérnia, repuxo, íngua, furúnculo, erisipela, febre, caganeira e tosse seca... À caixa de Pandora inteira o passeio de Zinho Santos era serventia! Sinhazinha cumprimentava o doente e o levava pela mão até o fundo do galpão, onde, sentado em frente a uma grande mesa de mogno, improvisada de consultório, Dr Sucupira ouvia o doente relatar seus queixumes. Assim que o coitado expunha o relato de suas dores, o vigarista lhe dizia, ameaçador e sorumbático:
_ Escute bem, Dona Pombinha! Eu me encontro desprevenido. Sem aparelhos, instrumentos, nem sequer remédios! Mas temos uma solução maravilhosa que é coisa secreta da nossa profissão. A Senhora está vendo aquele caldeirão de água fervendo ali no fundo? Muito bem! Todos os pacientes irão sair por essa porta aqui na lateral e irão dar a volta até chegar na varanda onde meu sogro está sentado. Chegando lá a senhora vai lhe dizer tudo o que me disse aqui, qual o seu mal, do que a senhora está sofrendo! O nosso amado prefeito vai decidir qual de vocês está em pior estado, qual está na boca da morte sem remédio ou salvação! Essa pessoa então, como prova de amor aos seus conterrâneos, vai doar o seu corpo para a ciência, nós iremos então despejar o sangue dela, as tripas e o miolo dentro desse caldeirão, e com estes ingredientes iremos fazer um remédio milagroso que vai curar todo o resto do povo. A pessoa vai morrer um pouco mais cedo mais vai virar um herói do povo de Itambé. Vai virar estátua! Quem sabe não vira até beato e padroeiro? Já imaginou? – E, diante da paciente esbaforida e trêmula de medo ao ver o caldeirão fumegante e as lâminas penduradas, Dr Sucupira mostrava o lugar na mesa onde o voluntário seria estripado em nome do amor!
_ Muito bem! Vá agora e diga ao coronel como vocês está se sentindo! Que entre o próximo! – Gritava para sua atendente enquanto conduzia a paciente até a porta lateral do galpão.
Tão logo se via fora do ambiente macabro, o paciente – e isso para todos, sem tirar nem por, fosse Tião, Dovadir, Eleutério, Dona Celuta, Mauro encanador, Sula, Pé de gás, Joaquim Vermelho, João Barroca, Mariquinha, Zé Cabrito, Rosalvão... – Todos que passaram pela consulta com o charlatão do Marçal, todos se aproximavam do Prefeito na varanda exibindo a mais robusta e esplêndida saúde física e mental:
_ Seu Zinho! Eu rejuvenesci vinte anos! Que espetáculo esse doutorzinho! Que Deus abençoe seu genro! – Dizia um.
_ Seu prefeito! Me empreste aí uma enxada que eu vou capinar esse seu quintal inteiro! Tô me sentindo um leão! – Dizia outro.
- O senhor me faça a gentileza de doar a um necessitado esse cajado. Não preciso mais disso! Estou no azeite! – e dizendo isso, fazia flexões na frente do Prefeito pra mostrar sua vitalidade milagrosamente adquirida!
As onze horas no jardim nem se abriram ainda e as consultas estavam encerradas. O povo de Itambé nesse dia milagroso poderia entrar para o Guinness como o povo mais saudável do planeta! Parecia uma cidade sede de olimpíada. A fama de doutor Sucupira se espalhou. Quem espiasse os dois no galpão, Paulo Puqueiro e Sinhazinha dobrando de risos e alegria, poderia ainda ouvir um último e zombeteiro diálogo entre os dois:
_ Teve um, coitado, que chegou a me dizer que estava sentindo uma dor imensa nos quartos que subia e respondia atrás da orelha!
_ E você, o que disse pra ele?
_ Eu disse: ATENDE QUE PODE SER INTERURBANO!
E assim, dobrados de riso, os dois noivos subiram para o casarão a receber as honras e preparar o casório!
* * * * * * * * * * * * * * ** ** * * * * * * *
Os anos se passaram e, com o auxílio do poderoso sogro, Paulo Puqueiro se tornou um renomado médico, em uma época em que bastava vigarice e esperteza para ser um (não mudou muita coisa). Abriu seu consultório, empregou-se no hospital e passou a ler toda a literatura que os propagandistas farmacêuticos deixavam com ele. Estes foram, de fato, seus verdadeiros professores. Bastava um propagandista chegar a Itambé, nos idos dos anos sessenta, para um banquete ser oferecido e, após um laudo almoço e uns aperitivos, o coitado ser obrigado a repetir todas as informações que havia decorado... No resto, o vade-mecum comia solto e sua esposa, dedicada, cuidava de manter as aparências no hospital. Do antigo casamento de Drº Sucupira com Anália, nada restou, exceto um filho retardado, Wanderley, que veio morar na cidade, para horror do seu pai que não o reconhecia como filho e afirmava ser delírios da febre reumática tal presunção. Wanderley andava descalço pelas ruas, dormia no mato ou na varanda de alguma casa por um tempo até ser dali enxotado. Ganhava roupas usadas e comia de favor. Se ousasse mendigar perto da casa do seu pai, ou do consultório, era severamente espancado. Sua vida semi selvagem dava margens a muitas especulações por parte do povo mais humilde e supersticioso. Diziam que ele era zoófilo, abusando das mulas, cabras e galinhas que encontrava pela zona rural e que tinha parte com o tinhoso. De fato, sua febre reumática, ou epilepsia – nunca ficamos sabendo – lhe fazia ter surtos e síncopes, caindo pelos passeios com a boca espumando e os olhos exsudados de uma remela lilás que parecia anteceder em décadas a existência do lendário chupa-cabras (minha filha, Israela, aqui ao meu lado, sugere que ele bem poderia ser o pai do chupa-cabra atual, enxertando alguma leitoa no fundo de uma pocilga ou atrás do curral). Tais lendas, ampliadas pelo brusco amadurecimento de Wanderlei, agravavam a situação do rapaz seminu de sexualidade aflorada, sem termos, no meio de mulheres pudicas e de uma vigilante moral agrária. Parece ter sido desse ambiente castiço, entre as beatas fervorosas e católicas que surgiu a obsessão de levar à força o garoto Wandeco para ser batizado. A genial proposta correu a cidade como um rastilho de pólvora e logo um batalhão de homens desocupados e vetustas viúvas marcharam pelas ruas de Itambé à procura de Wanderley, seguidas pelo Padre Geraldino e seus penduricalhos de sacristia, seus aparatos necessários para um batismo improvisado. Talvez não houvesse tanta resistência do pobre Wandeco se não fosse um mal entendido na sua mente obnubilada pelo retardo mental. Nessa mesma época, corria entre os estudantes da cidade um boato, uma fabrica de salsichas havia sido inaugurada em uma cidade vizinha, a pachorrenta Itapetinga, e homens de branco, contratados por essa fábrica, percorriam sorrateiros a cidade, dentro de um automóvel, sequestrando crianças da periferia, levando-as para serem abatidas e suas carnes misturadas à carne dos porcos e aves embutidos (teve até o caso de uma mãe, cujo filho havia desaparecido por essa época, que jurou ter encontrado o dedo do seu pobre Ronildo dentro de um chouriço, e andava pela cidade mostrando o dedo a todos os incrédulos cidadãos). Wanderley ouvia essas histórias e tremia de medo nas madrugadas insones. Não tinha coragem de dormir sozinho de noite e passava o dia sonolento entre os caixotes de verduras recolhidos no fundo do mercado em dias que não havia feira. Foi ali que o batalhão de católicos veio a encontrá-lo. Wanderlei dormia com a cabeça sobre um caixote de tomate quando algum perverso o acordou e lhe apontou a malta ensandecida a clamar pelo seu nome. Esse alguém deve ter lhe dito:
_ Acorda, Wandeco, que você foi vendido pra fábrica de salsicha e vieram lhe buscar para lhe darem um banho e fritar suas carnes! - Ou algo semelhante. No previsível pânico, no desespero medonho que se abatera sobre sua alma, não passou outra ideia na mente do coitado senão correr em busca do auxílio do seu pai, alheio às ameaças, sovas e proibições. Partiu como um foguete em direção à casa do Prefeito Zinho Santos em cujos fundos funcionava também o consultório do seu pai, Paulo Puqueiro vulgo Drº Sucupira. Nesse exato instante, nosso glorioso médico rural estava se preparando para uma sessão de ortopedia natural, a cura de todos os males e afecções reumáticas pela aplicação de veneno de abelha. Vivíamos o início dos modismos da contra cultura e não se falava outra coisa nas revistas médicas e no rádio. Paulo fazia um sucesso estrondoso aplicando sobre seus pacientes, na articulação afetada, um vidro contendo uma abelha, que ele agitava bastante para enfurecê-la. Assim que sentia a presença da pele, a abelha sentava o vingativo ferrão e injetava na articulação do paciente o seu preciso veneno anti-inflamatório. A cura era certa e o sucesso, retumbante! No fundo do quintal, por onde Wanderlei subiu esbaforido e espirrando remela por todos os poros, ficavam as colmeias onde o pai do monstrinho se abastecia. Wandeco achou de derrubar e pisotear a primeira colmeia que apareceu em sua frente, esmagando uma dúzia de abelhas atordoadas sob a sola grossa do seus pés enlameados. Logo uma nuvem de furiosas abelhas se formou e partiu em direção do atabalhoado Shrek do sertão. Wandeco entrou aos gritos (com o pânico redobrado pelo consórcio das abelhas com as fanáticas beatas já dobradas a esquina {e que ele confundia com açougueiros a embutir suas carnes temperadas. De fato, eu que via tudo da janela, me lembro de ser mesmo muito parecido o Pe. Geraldino com um açougueiro sanguinário}) no galpão onde seu pai se encontrava cercado por uma dúzia de pacientes e se atirou aos pés do pai clamando proteção e piedade. As abelhas entraram em seguida. Só lhes interessava o cheiro sebento do assassino de abelhas. Assim, obstinadas, as abelhas rodavam cada um dos pacientes, quase a roçar seus rostos como se os farejassem, zumbindo o zumbido da morte dolorosa, para depois, sem dano nenhum, circundarem o próximo, girando ameaçadoras em torno dos reumáticos paralisados de medo. Por fim nada encontraram (Wandeco tremia embaixo do guarda-pó do seu pai e seu cheiro fora ofuscado por um cheiro mais forte e mais acre, os fundilhos sempre mal lavados do Vigarista do Marçal). Sumiram pela janela dos fundos e, feito um desencantamento, todos voltaram ao normal, refeitos do susto e da sinistra inspeção das abelhas furiosas. Paulo Puqueiro conduziu o filho rejeitado até os fundos do galpão e o prendeu em um quarto. Quando retornou, seus pacientes pareciam dispostos a irem embora. Ele correu até a porta, os conteve e começou a entabular uma conversa, um argumento fajuto entabulado no átimo daquela confusão.
_ Meus amigos! Meus irmãos! Porque a pressa? Não querem me pagar a sessão, antes de irem embora?
_Como assim? Que sessão?
_Entendam! Eu hoje calhei de aplicar um novo método. Um método chamado de homeopático. Na homeopatia, não aplicamos o sal, o fármaco diretamente no corpo do paciente, mas usamos uma dinamização onde o princípio ativo, a essência etérea do produto é extraída. E é essa energia, essa substância abstraída e incorporal, como toda verdadeira substância, essa alma Elemental é que vai curar a doença. Observem vocês que o veneno, dentro do ferrão das abelhas, giraram em torno de todos vocês, centenas de voltas, dinamizando ao redor seus membros condolentes, o veneno medicinal, o "pharmakói" cuja energia acabou de passar para eles. Por acaso algum de vocês está sentindo alguma coisa? Se estiver, não precisa me pagar!
Paulo Sabia que, com o susto, a adrenalina e o corre-corre posterior à toda aquela agitação, não haveria mesmo dor nenhuma nos membros e articulações afetadas. Nenhum paciente se queixou, pelo contrário, tomaram consciência, ainda que ascendidos pela lábia capciosa, de estarem em ótimo estado. Reverentes e agradecidos, se dirigiram radiantes para a mesa nos fundos onde sua dedicada esposa cobrava a consulta e emitia um solene recibo que mais parecia um científico certificado. A fama de Drº Sucupira até hoje não parou de crescer. Morreu rico e sem se aposentar. Vocês leitores, ao passarem lá por Itambé, deem uma olhadinha nos fundos da velha casa. Suspeito que Wanderlei esteja lá, em um dos quartinhos arruinados do fundo do quintal, velhinho, gagá e de cabelos brancos, sustentado por alguma piedosa marmita vegan, e tremendo sempre que falam de salcinhas, chouriços, salames e embutidos em geral!
Os anos se passaram e, com o auxílio do poderoso sogro, Paulo Puqueiro se tornou um renomado médico, em uma época em que bastava vigarice e esperteza para ser um (não mudou muita coisa). Abriu seu consultório, empregou-se no hospital e passou a ler toda a literatura que os propagandistas farmacêuticos deixavam com ele. Estes foram, de fato, seus verdadeiros professores. Bastava um propagandista chegar a Itambé, nos idos dos anos sessenta, para um banquete ser oferecido e, após um laudo almoço e uns aperitivos, o coitado ser obrigado a repetir todas as informações que havia decorado... No resto, o vade-mecum comia solto e sua esposa, dedicada, cuidava de manter as aparências no hospital. Do antigo casamento de Drº Sucupira com Anália, nada restou, exceto um filho retardado, Wanderley, que veio morar na cidade, para horror do seu pai que não o reconhecia como filho e afirmava ser delírios da febre reumática tal presunção. Wanderley andava descalço pelas ruas, dormia no mato ou na varanda de alguma casa por um tempo até ser dali enxotado. Ganhava roupas usadas e comia de favor. Se ousasse mendigar perto da casa do seu pai, ou do consultório, era severamente espancado. Sua vida semi selvagem dava margens a muitas especulações por parte do povo mais humilde e supersticioso. Diziam que ele era zoófilo, abusando das mulas, cabras e galinhas que encontrava pela zona rural e que tinha parte com o tinhoso. De fato, sua febre reumática, ou epilepsia – nunca ficamos sabendo – lhe fazia ter surtos e síncopes, caindo pelos passeios com a boca espumando e os olhos exsudados de uma remela lilás que parecia anteceder em décadas a existência do lendário chupa-cabras (minha filha, Israela, aqui ao meu lado, sugere que ele bem poderia ser o pai do chupa-cabra atual, enxertando alguma leitoa no fundo de uma pocilga ou atrás do curral). Tais lendas, ampliadas pelo brusco amadurecimento de Wanderlei, agravavam a situação do rapaz seminu de sexualidade aflorada, sem termos, no meio de mulheres pudicas e de uma vigilante moral agrária. Parece ter sido desse ambiente castiço, entre as beatas fervorosas e católicas que surgiu a obsessão de levar à força o garoto Wandeco para ser batizado. A genial proposta correu a cidade como um rastilho de pólvora e logo um batalhão de homens desocupados e vetustas viúvas marcharam pelas ruas de Itambé à procura de Wanderley, seguidas pelo Padre Geraldino e seus penduricalhos de sacristia, seus aparatos necessários para um batismo improvisado. Talvez não houvesse tanta resistência do pobre Wandeco se não fosse um mal entendido na sua mente obnubilada pelo retardo mental. Nessa mesma época, corria entre os estudantes da cidade um boato, uma fabrica de salsichas havia sido inaugurada em uma cidade vizinha, a pachorrenta Itapetinga, e homens de branco, contratados por essa fábrica, percorriam sorrateiros a cidade, dentro de um automóvel, sequestrando crianças da periferia, levando-as para serem abatidas e suas carnes misturadas à carne dos porcos e aves embutidos (teve até o caso de uma mãe, cujo filho havia desaparecido por essa época, que jurou ter encontrado o dedo do seu pobre Ronildo dentro de um chouriço, e andava pela cidade mostrando o dedo a todos os incrédulos cidadãos). Wanderley ouvia essas histórias e tremia de medo nas madrugadas insones. Não tinha coragem de dormir sozinho de noite e passava o dia sonolento entre os caixotes de verduras recolhidos no fundo do mercado em dias que não havia feira. Foi ali que o batalhão de católicos veio a encontrá-lo. Wanderlei dormia com a cabeça sobre um caixote de tomate quando algum perverso o acordou e lhe apontou a malta ensandecida a clamar pelo seu nome. Esse alguém deve ter lhe dito:
_ Acorda, Wandeco, que você foi vendido pra fábrica de salsicha e vieram lhe buscar para lhe darem um banho e fritar suas carnes! - Ou algo semelhante. No previsível pânico, no desespero medonho que se abatera sobre sua alma, não passou outra ideia na mente do coitado senão correr em busca do auxílio do seu pai, alheio às ameaças, sovas e proibições. Partiu como um foguete em direção à casa do Prefeito Zinho Santos em cujos fundos funcionava também o consultório do seu pai, Paulo Puqueiro vulgo Drº Sucupira. Nesse exato instante, nosso glorioso médico rural estava se preparando para uma sessão de ortopedia natural, a cura de todos os males e afecções reumáticas pela aplicação de veneno de abelha. Vivíamos o início dos modismos da contra cultura e não se falava outra coisa nas revistas médicas e no rádio. Paulo fazia um sucesso estrondoso aplicando sobre seus pacientes, na articulação afetada, um vidro contendo uma abelha, que ele agitava bastante para enfurecê-la. Assim que sentia a presença da pele, a abelha sentava o vingativo ferrão e injetava na articulação do paciente o seu preciso veneno anti-inflamatório. A cura era certa e o sucesso, retumbante! No fundo do quintal, por onde Wanderlei subiu esbaforido e espirrando remela por todos os poros, ficavam as colmeias onde o pai do monstrinho se abastecia. Wandeco achou de derrubar e pisotear a primeira colmeia que apareceu em sua frente, esmagando uma dúzia de abelhas atordoadas sob a sola grossa do seus pés enlameados. Logo uma nuvem de furiosas abelhas se formou e partiu em direção do atabalhoado Shrek do sertão. Wandeco entrou aos gritos (com o pânico redobrado pelo consórcio das abelhas com as fanáticas beatas já dobradas a esquina {e que ele confundia com açougueiros a embutir suas carnes temperadas. De fato, eu que via tudo da janela, me lembro de ser mesmo muito parecido o Pe. Geraldino com um açougueiro sanguinário}) no galpão onde seu pai se encontrava cercado por uma dúzia de pacientes e se atirou aos pés do pai clamando proteção e piedade. As abelhas entraram em seguida. Só lhes interessava o cheiro sebento do assassino de abelhas. Assim, obstinadas, as abelhas rodavam cada um dos pacientes, quase a roçar seus rostos como se os farejassem, zumbindo o zumbido da morte dolorosa, para depois, sem dano nenhum, circundarem o próximo, girando ameaçadoras em torno dos reumáticos paralisados de medo. Por fim nada encontraram (Wandeco tremia embaixo do guarda-pó do seu pai e seu cheiro fora ofuscado por um cheiro mais forte e mais acre, os fundilhos sempre mal lavados do Vigarista do Marçal). Sumiram pela janela dos fundos e, feito um desencantamento, todos voltaram ao normal, refeitos do susto e da sinistra inspeção das abelhas furiosas. Paulo Puqueiro conduziu o filho rejeitado até os fundos do galpão e o prendeu em um quarto. Quando retornou, seus pacientes pareciam dispostos a irem embora. Ele correu até a porta, os conteve e começou a entabular uma conversa, um argumento fajuto entabulado no átimo daquela confusão.
_ Meus amigos! Meus irmãos! Porque a pressa? Não querem me pagar a sessão, antes de irem embora?
_Como assim? Que sessão?
_Entendam! Eu hoje calhei de aplicar um novo método. Um método chamado de homeopático. Na homeopatia, não aplicamos o sal, o fármaco diretamente no corpo do paciente, mas usamos uma dinamização onde o princípio ativo, a essência etérea do produto é extraída. E é essa energia, essa substância abstraída e incorporal, como toda verdadeira substância, essa alma Elemental é que vai curar a doença. Observem vocês que o veneno, dentro do ferrão das abelhas, giraram em torno de todos vocês, centenas de voltas, dinamizando ao redor seus membros condolentes, o veneno medicinal, o "pharmakói" cuja energia acabou de passar para eles. Por acaso algum de vocês está sentindo alguma coisa? Se estiver, não precisa me pagar!
Paulo Sabia que, com o susto, a adrenalina e o corre-corre posterior à toda aquela agitação, não haveria mesmo dor nenhuma nos membros e articulações afetadas. Nenhum paciente se queixou, pelo contrário, tomaram consciência, ainda que ascendidos pela lábia capciosa, de estarem em ótimo estado. Reverentes e agradecidos, se dirigiram radiantes para a mesa nos fundos onde sua dedicada esposa cobrava a consulta e emitia um solene recibo que mais parecia um científico certificado. A fama de Drº Sucupira até hoje não parou de crescer. Morreu rico e sem se aposentar. Vocês leitores, ao passarem lá por Itambé, deem uma olhadinha nos fundos da velha casa. Suspeito que Wanderlei esteja lá, em um dos quartinhos arruinados do fundo do quintal, velhinho, gagá e de cabelos brancos, sustentado por alguma piedosa marmita vegan, e tremendo sempre que falam de salcinhas, chouriços, salames e embutidos em geral!
2 comentários :
Gostei desse conto, engraçado.
Compartilhou, gentil leitora?
Postar um comentário